Salários, lucros e desigualdade: o Brasil sob a lente de Piketty

Favela do Moinho no centro de São Paulo
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Renda do capital se multiplica a uma velocidade incomparável em relação à renda do trabalho, corroendo o poder de compra dos assalariados e aprofundando a concentração de riqueza.

Juliano Giassi Goularti

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 18/11/2025

A desigualdade no Brasil não é um fenômeno acidental, mas uma construção histórica estrutural. É um legado que se manifesta hoje com a mesma intensidade de séculos atrás, embora em novas roupagens. A jornada da Senzala, onde a exploração do trabalho escravizado cimentou uma estrutura social profundamente injusta, até a Bolsa de Valores, onde a acumulação de capital se acelera, é a história de um país que nunca conseguiu quebrar o ciclo da concentração de riqueza. Para compreender a dinâmica que mantém essa profunda desigualdade, é fundamental analisar a tese de Thomas Piketty, exposta em sua obra O capital no século XXI. O economista francês argumenta que, quando a taxa de retorno sobre o capital (r) supera a taxa de crescimento da economia (g), a riqueza tende a se concentrar em poucas mãos, perpetuando as disparidades. O Brasil é, infelizmente, um caso emblemático dessa teoria, servindo como um estudo de caso perfeito para os conceitos do livro.

O cerne da questão é que, em um cenário onde o r supera o g, o dinheiro de quem já é rico se multiplica mais rápido do que a renda de quem depende do próprio trabalho. Como demonstra Piketty, isso cria um ciclo vicioso: os detentores de capital veem seus ativos crescerem exponencialmente, sem a necessidade de grande esforço ou inovação, enquanto a maioria da população não consegue acompanhar esse ritmo. A herança torna-se um fator decisivo, pois a riqueza acumulada em uma geração é transferida e continua a crescer, perpetuando o privilégio e a falta de mobilidade social.

O contraste entre João e Paulo ilustra de forma concreta a dinâmica de desigualdade apontada por Piketty. João, que recebe um salário mínimo de R$ 1.550, vê sua renda crescer 4,5% ao ano, apenas acompanhando a inflação, o que representa um ganho anual de R$ 69,75. Paulo, herdeiro de um patrimônio de R$ 10 milhões investido em ativos atrelados à Selic de 12,5% ao ano, sem necessidade de esforço laboral, obtém em um ano R$ 1.250.000 de acréscimo patrimonial. A diferença evidencia como a renda do capital se multiplica a uma velocidade incomparável em relação à renda do trabalho, corroendo o poder de compra dos assalariados e aprofundando a concentração de riqueza. Ainda no Brasil, a tributação regressiva onera o consumo e, ao mesmo tempo, isenta lucros e dividendos, reforçando a renda de Paulo em detrimento da renda de João, cristalizando um ciclo de desigualdade estrutural.

O gráfico 1 analisa a evolução real dos salários (INPC) e da taxa Selic[1] entre 2004 e 2025, ilustrando a dinâmica da desigualdade no Brasil em linha com as ideias de Thomas Piketty.

Comparativo de reajustes salariais e taxa de juros (Selic): Brasil, 2004-2025 Fonte: IBGE e Banco Central

No período de 2004 a 2015, o Brasil vivenciou um cenário em que, apesar de alguns anos com reajustes salariais robustos, a taxa Selic, que serve de referência para o retorno de investimentos financeiros, se manteve em patamares consistentemente elevados. Por exemplo, em 2005, o salário mínimo teve um aumento de 15,38%, mas a Selic atingiu um pico de 19,75%. Em 2006, o reajuste salarial foi de 16,67%, mas a Selic estava em 17,26%. Nesses casos, o rendimento do trabalho, por mais expressivo que fosse seu crescimento nominal, perdeu a corrida contra o retorno do capital. Essa dinâmica reforça a tese de Piketty. O capital, especialmente o financeiro, se valoriza a uma velocidade superior à renda do trabalho. Enquanto os salários crescem por meio de reajustes anuais que buscam compensar a inflação, os juros sobre ativos financeiros, em um ambiente de Selic alta, geram retornos que ampliam o fosso entre quem vive do trabalho e quem vive da renda do capital.

Após 2015, houve uma mudança no cenário. A taxa Selic começou a cair, atingindo níveis historicamente baixos em 2018 e 2019 (6,65% e 6,40%, respectivamente). No entanto, os reajustes do salário mínimo também desaceleraram drasticamente, como em 2018 (1,81%) e 2019 (4,61%). Essa fase de “juros baixos” não foi acompanhada por um aumento significativo do poder de compra dos trabalhadores. A tese de Piketty, nesse contexto, mostra que mesmo com o retorno do capital financeiro mais baixo, o ganho real dos salários se mostrou insuficiente para reduzir a distância histórica entre capital e trabalho. Já nos últimos anos, a tendência de retorno superior do capital se reafirma. Em 2025, enquanto o reajuste salarial foi de 7,95%, a Selic alcançou 15%. Essa lacuna de mais de 7% ilustra, de forma contundente, a essência do argumento de Piketty: quando a taxa de retorno do capital (r) supera a taxa de crescimento da economia (g), a tendência é de ampliação da desigualdade, pois o capital rende mais que o trabalho e a produção.

Destarte, a tributação da renda no Brasil reforça a tese de Piketty sobre a concentração de riqueza. Não bastasse a tributação direta na fonte, a renda do trabalho do brasileiro enfrenta uma dupla carga de impostos. Além do Imposto de Renda progressivo em quatro faixas – 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%, desconsiderando a isenção – que incide diretamente sobre os salários, os trabalhadores arcam com os tributos indiretos, como ICMS e IPI, embutidos nos preços de produtos e serviços. Essa combinação reduz o poder de compra do trabalho e recai de forma mais pesada sobre os mais pobres, que gastam o que ganham. Enquanto isso, a renda do capital usufrui de mecanismos de isenção, como a não tributação de lucros e dividendos, aprofundando o abismo que favorece a acumulação patrimonial em detrimento do esforço laboral. Logo, como a renda do capital cresce mais rapidamente que a renda do trabalho, isso acaba ampliando desigualdades estruturais em suas múltiplas escalas no país.

Nesse mesmo sentido, a manutenção de uma Selic elevada atua como outro vetor de concentração e entrave ao desenvolvimento. Os juros altos encarecem o crédito, inibem o investimento produtivo e a modernização industrial; ao mesmo tempo, desestimulam o consumo das famílias ao encarecer financiamentos e empréstimos, afetando produção e emprego; ampliam o peso da dívida pública, drenando recursos que poderiam ser destinados a áreas sociais e infraestrutura; e, por fim, aceleram a financeirização da riqueza, ao tornar mais rentáveis e seguros os títulos públicos, deslocando capitais do setor produtivo para o mercado financeiro e reforçando a lógica especulativa.

Se o Brasil quiser romper com a lógica de concentração de renda representada por Paulo – uma lógica que atravessa a história nacional, da Senzala à Bolsa de Valores – será indispensável a adoção de medidas estruturais, como a tributação progressiva sobre grandes fortunas e heranças, a taxação de lucros e dividendos e a implementação de políticas públicas de inclusão social e redistribuição de renda. Todavia, a Reforma Tributária se furtou disso, ou seja, de tornar o imposto progressivo e tributar a renda e patrimônio.

[1] Selic significa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, mas no dia a dia se refere à taxa básica de juros da economia brasileira, definida pelo Banco Central (BC). Ela serve como referência para todas as outras taxas de juros: empréstimos, financiamentos, investimentos. Também é um instrumento de política monetária, usada para controlar a inflação. Quando o BC aumenta a Selic, crédito fica mais caro. Consumo e inflação tendem a cair. Quando o BC reduz a Selic, crédito fica mais barato. Consumo e investimento tendem a aumentar.

Juliano Giassi Goularti é doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp


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