Roberto Heloani “A reforma administrativa será para o serviço público o que foi a reforma trabalhista para o setor privado”

Foto: TRT12

Estamos em meio a tramitação da reforma administrativa, uma medida que está pairando no cenário político há muitos anos e agora vem caminhando dentro do Congresso Nacional. Essa reforma vem sendo apresentada como uma medida de “racionalização” do Estado, mas na prática aprofunda a lógica de mercado no setor público. Sob a ótica crítica que o senhor desenvolve, até que ponto essa reforma representa um projeto de subordinação do trabalho público às exigências do capital? E como essa transformação impacta os serviços públicos para a população, pensando a relação dessa medida com o próprio Arcabouço Fiscal que já vem cortando orçamentos públicos?

 A dita “Reforma Administrativa” não é uma “reforma”; ela é uma “deforma”.  Pela leitura que fiz, o desenho desse projeto foi fortemente influenciado pela teoria da reengenharia de processos (Business Process Reengineering – BPR), popularizada em 1994, pelos autores Michael Hammer e James Champy. Eles publicaram o livro “Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution , em 1993, que teve grande impacto no meio empresarial e resultou na disseminação e popularização do conceito em 1994. Este livro é uma versão ampliada e uma revisão cuidadosa, mas não menos ideológica (o ideal neoliberal e o gerencialismo são facilmente identificáveis na obra) do conceito de reengenharia, desde seus conceitos seminais a partir do artigo acadêmico de Hammer, em 1990, “Reengineering Work: Don’t Automate, Obliterate”(Reengenharia do Trabalho: Não Automatize, Elimine). 

A teoria defende a reestruturação radical dos processos de negócios e define reengenharia como a “re-concepção” fundamental e reprojeto radical dos processos empresariais para obter ganhos significativos em custos, qualidade, serviço e resultados. Em síntese apertada, ela pode ser descrita como uma forma de reestruturar processos internos para otimizar os resultados da organização.         

 Imperioso dizer que os mesmos autores tiveram a dignidade de admitir e se desculpar, perante o seu público, anos depois, em artigo bombástico, que a teoria por eles criada e defendida estava sendo mal aplicada e que muitas organizações, ao invés de utilizar seus princípios objetivando a simplificação e diminuição dos processos, enfocavam – quando não se restringiam -, a eliminar pessoas! Ou seja, aplicavam um processo de “downsizing” mal-ajambrado geralmente cortando custos mediante a redução do quadro de trabalhadores na iniciativa privado ou funcionários no serviço público (o mantra “fazer mais com menos”).                    

É por isso que encaro essa PEC como uma “deforma”. Não sou contra a melhoria do serviço prestado pelo Estado; ao contrário, sou a favor. O servidor pode e deve lutar para que isso aconteça. Entretanto, o que essa PEC propõe é a destruição do conceito de “carreira” no setor público e o desmonte de direitos trabalhistas e sociais arduamente conquistados. É a implantação do Estado-Mínimo dentro do próprio Estado (2018b). Em um país com carências brutais, no qual a população depende do Estado para sobreviver, para ter condições mínimas de saúde, educação, habitação, segurança etc., comprometer o funcionalismo é atacar o que este pode outorgar à população; roubar-lhe a motivação, sua identidade profissional e sua dignidade pessoal. Vender, ainda, a ideia de marajás – depois do que se dedicaram e arriscaram, os servidores da área da saúde na pandemia, é obsceno. A maioria ganha pouco e trabalha muito.               

Só para que se tenha uma ideia, no Brasil, 12% da população ativa possui vínculo com o serviço público; na Dinamarca 30,22% estão no serviço público e os demais países escandinavos trilham esse caminho. São sociais-democracias que funcionam e funcional porque ganham bem, são respeitados e sentem orgulho do que fazem. Mesmo nos Estados Unidos, 13,56% têm vínculo direto com o Estado. Quanto ao salário, o famoso “custo Brasil”, a mentira é ainda maior. A grande maioria, ou melhor, a base da pirâmide, é composta por pessoas que ganham até 5 mil reais. Apenas uma minoria, no topo da pirâmide estatística, ganha, de fato, muito e…  ninguém toca!

 Professor, os seus trabalhos, como o livro Assédio Moral: Gestão por Humilhação,   junto a Margarida Barreto, vêm demonstrando como o assédio moral não é apenas uma questão interpessoal, mas uma estratégia de gestão do trabalho. De que modo a reforma administrativa, ao introduzir ainda mais a lógica da “eficiência” e da “meritocracia” empresariais no setor público, tende a institucionalizar práticas de assédio moral como instrumentos de controle e coerção sobre os servidores?

 A cultura organizacional tem reflexos nas relações interpessoais, especialmente quando as premiações e incentivos podem adquirir aspectos negativos para aqueles que os recebem, levando ao constrangimento público e à violação dos direitos do outro. Esta situação de desconforto também pode ocorrer em um ambiente laboral em que as redes de comunicação sejam cortadas, induzindo a uma comunicação dúbia, de teor próximo a “fofocas”, o que dissemina discórdias e maledicências.  

No site sobre assédio moral administrado por Margarida Barreto e por mim, tivemos a oportunidade de colher depoimentos de milhares de pessoas; foram mais de duas décadas. Muitas cartas eram provenientes de servidores dedicados, avessos a qualquer tipo de corrupção e que estavam sofrendo por isso. Alguns eram representantes sindicais e estavam sendo perseguidos por não se curvarem ao autoritarismo. A Reforma Administrativa é a concretização do modelo neoliberal na gestão pública. O ideário neoliberal amalgamado com o fetiche por metas e resultados fará com que o assédio seja o instrumento da “Gestão por Humilhação”. Aliás, quando Margarida Barreto e eu escolhemos esse título para o nosso livro “Assédio Moral: Gestão por Humilhação (2018 a), pensamos exatamente nisso. Me comprometo com você, em uma futura entrevista, a pedir desculpas ao leitor se isso não ocorrer! 

 Os serviços públicos vêm sendo fortemente atingidos por um intenso processo de fragmentação, contratos temporários e terceirização, principalmente após a reforma trabalhista (que até agora não foi revogada). Como a reforma administrativa contribui para aprofundar os mecanismos de fragmentação e terceirização dos trabalhadores?

 Os três princípios básicos da Constituição Federal de 1988- e o que a distingue fortemente das cartas magnas anteriores- são os seguintes: 1) o compromisso com um Estado Democrático de Direito; 2) o compromisso com uma concepção humanística e social; 3) o compromisso com a concepção constitucional de direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, a matriz constitucional de 1988 tem por escopo a concepção de Direito como instrumento de civilização e emancipação, ao invés da ultrapassada, mas renitente, concepção de Direito como mecanismo de segregação, exclusão e desigualdade entre grupos sociais e pessoas. No livro “Assédio Moral: Gestão por Humilhação, explicamos bem isso e há outras fontes que aprofundam essa questão.            

A reforma trabalhista implementada no Brasil por meio da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, caracteriza-se pela tendência ao retorno à antiga concepção do ordenamento jurídico como mecanismo de exclusão, segregação social e legalização da desigualdade social. Seu caráter regressivo, destoa da compreensão do Direito como instrumento de civilização. Isto foi desconsiderado pela nova legislação, como nos ensinam os grandes juristas Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado, na obra “A reforma trabalhista no Brasil com os comentários à Lei n. 13.467/2017 (DELGADO; DELGADO, 2017).                      

 O jornal Folha de São Paulo, em seu Caderno Mercado, no dia 13 de dezembro de 2017, noticiou um fato difícil de se crer, mas, infelizmente, verídico: uma bancária de um dos maiores bancos brasileiros foi condenada a pagar R$ 67,5 mil ao banco para cobrir os custos com advogados, depois de sucumbir a uma ação ajuizada em 11 de julho de 2017. A decisão do magistrado, de uma Vara do Trabalho, de importante município do Estado do Rio de Janeiro, só foi publicada no final de novembro, e foi fundamentada nas novas regras da Lei 13.467, denominada Reforma Trabalhista.                   

Outros princípios da Carta Magna de 1988 foram deliberadamente desrespeitados pela Reforma “Modernizadora”, o que nos leva a crer que a continuar essa tendência corremos o risco de termos o conceito de emprego (que é espécie) muito próximo ao conceito de trabalho (que é gênero), ou seja, de termos de aceitar empregos sem direitos. A reforma administrativa irá contribuir para aprofundar os mecanismos de fragmentação e terceirização dos trabalhadores, sim. No meu entender, será para o serviço público o que foi a reforma trabalhista para o setor privado

Como o senhor analisa o impacto dessa reforma sobre a consciência e a ação política dos trabalhadores do setor público? Podemos dizer que ela faz parte de uma estratégia deliberada de desarticulação sindical e de enfraquecimento da resistência no interior do Estado?      

Nessa “Reforma Administrativa” a meritocracia é implementada de modo ortodoxo; para os seus articuladores, os fins justificam os meios.  Amplia o controle e gerenciamento sobre o trabalho, ou melhor, sobre o resultado do trabalho, aproximando o serviço público à lógica empresarial da iniciativa privada (Gerencialismo da década de 1980). Ademais, a reforma extingue direitos, como as licenças-prêmios e franquia espaços generosos para congelamentos salariais e autoritarismos de vários matizes, mediante punições pelo não cumprimento de metas e resultados quantitativos (“quantofrenia”), atrasos na progressão da carreira – que poderá ter 20 “dégradés” – e até eventual demissão do serviço público para aqueles que ainda não cumpriram o estágio probatório ou equivalente.                      

A instituição do bônus acentuará as desigualdades salariais, mas não só. Em escalões mais modestos poderá transformar-se no “verdadeiro salário” a ser disputado, como já acontece em alguns setores da administração pública. Por último, fere, no meu entender, o princípio constitucional da isonomia, pois distingue os servidores públicos dos demais brasileiros ao impedir acesso ao judiciário mediante obstáculos quase instransponíveis para que o servidor acesse o reconhecimento de direito tolhido pelo Estado, no caso, seu “patrão”.                         

Portanto, sendo sincero, não sei se a Reforma Administrativa faz parte de uma estratégia deliberada de desarticulação sindical e de enfraquecimento da resistência no interior do Estado, mas que vai levar a isso, não tenho dúvidas.  A única forma de impedir que isso aconteça é não permitir a sua existência.

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Roberto Heloani* é Professor Titular na Faculdade de Educação e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Pesquisa e estudo o tema Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Ética no Trabalho há 26 anos. Com Margarida Barreto, fundou o primeiro site sobre Assédio Moral no Brasil e a Rede de pesquisa “Red Iberoamericana por la Dignidad en el Trabajo y en las Organizaciones”. Coordena o primeiro projeto de aplicativo informativo sobre Assédio Moral, Sexual e Discriminação laboral, em colaboração com o MPT, OIT e UFSC. Com o Prof. Evaldo Piolli fundou o NETSS e o Observatorio do Trabalho Docente.

Referências:

DELGADO, Maurício Godinho ; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTR, 2017.

HAMMER, Michel. Reengineering Work: Don’t Automate, Obliterate. Harvard Business Review. July-August, 1990.

HAMMER, Michel; CHAMPY, James. Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution. Nicholas Brealey Publishing, 2001.

HELOANI, Roberto & BARRETO, Margarida. Assédio moral: gestão por humilhação. Curitiba, Editora JURUA, 2018 a

HELOANI, Roberto. Modelos de gestão e educação: gerencialismo e subjetividade. São Paulo, Editora CORTEZ, 2018 b.

Fonte: Casa Marx
Texto: Flávia Telles
Data original da publicação: 09/11/2025


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