Revolução tecnológica e reforma trabalhista: dois assuntos imbricados

Os estudos que compõem o livro “A quarta revolução industrial e a reforma trabalhista: Impactos nas relações de trabalho no Brasil” lançam luzes sobre os novos padrões de organização do trabalho perante a sociedade informacional e apontam caminhos contrahegemônicos para mitigar tais desafios.

Nívea Maria Santos Souto Maior

Fonte: Revista Brasileira de Economia Social e do Trabalho
Data original da publicação: 02/12/2021

O livro “A quarta revolução industrial e a reforma trabalhista: Impactos nas relações de trabalho no Brasil” (2020), organizado por Cássio Calvete e Carlos Henrique Horn, não é uma simples coletânea de artigos, mas fruto dos debates e pesquisas desenvolvidos ao longo do Curso de Especialização em Relações de Trabalho (pós-graduação lato sensu) ministrado no biênio 2019/2020 pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS em parceria com a Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.

Os autores do livro são professores e alunos do referido curso e possuem uma grande vivência nas discussões dos temas pertinentes ao mundo do trabalho, seja como pesquisadores acadêmicos, seja como membros do poder judiciário trabalhista, advogados, sindicalistas ou assessores. No entanto, tão ou mais importante para o nível de excelência da publicação são os aspectos que diferenciam os autores: as diversas formas de inserção no mundo do trabalho reforça a multidisciplinaridade. Nesse sentido, entre os autores encontramse médicos, pedagogos, sociólogos, advogados, juízes e economistas que trazem diferentes aportes teóricos, os quais permitem uma melhor compreensão dos complexos problemas enfrentados nas atuais relações de trabalho no Brasil.

O escopo principal do livro é evidenciar os impactos da Quarta Revolução Industrial nas relações de trabalho no país. Ao longo dos quatorze capítulos que o compõe, em momento algum o tema se perde de vista. Tal fenômeno é conhecido por uma multicausalidade que, por óbvio, tem no seu centro as inovações tecnológicas, mas não se limita a isso e muito menos admite a existência de um determinismo tecnológico. Todos os capítulos se esforçam para evidenciar essa pluralidade de fatores contemporâneos da “Indústria 4.0”[1], como o fim da égide fordista-keynesiana, a financeirização, a hegemonia do pensamento neoliberal e as mudanças de valores da sociedade que atuam para impor aos trabalhadores os interesses do capital. Como se trata de um livro escrito por atores que atuam no mundo do trabalho, especial destaque é dado às alterações na legislação trabalhista[2]. E apesar de ser um livro no qua cada capítulo é escrito por autores distintos e ter diferentes aportes teóricos e temas, a obra tem unidade e coerência na sua construção e desenvolvimento.

Os estudos que compõem o livro lançam luzes sobre os novos padrões de organização do trabalho perante a sociedade informacional e apontam caminhos contrahegemônicos para mitigar tais desafios. O livro não se limita a explicitar as alterações que vêm ocorrendo nos postos de trabalho, seja no conteúdo das tarefas ou no surgimento de novas ocupações. Ele vai além, discutindo mudanças na organização da sociedade, em especial na alteração da legislação trabalhista, no desmonte do sistema protetivo de relações do trabalho e no crescimento da ideologia neoliberal.

A publicação tem quatorze capítulos, que estão organizados em duas partes. Na primeira parte, encontram-se os artigos que tratam em específico dos impactos da Reforma Trabalhista; e, na segunda parte, estão os estudos direcionados para as repercussões da Quarta Revolução Industrial nas relações trabalhistas. A divisão em duas partes tem finalidade didática, haja vista a Reforma Trabalhista e as inovações tecnológicas serem objetos de estudo inexoravelmente imbricados.

O livro inicia, na sua Parte I, com estudos que colocam em destaque os impactos da Reforma Trabalhista implantada pela Lei nº 13.467/2017. O primeiro capítulo, escrito pelo magistrado Almiro Eduardo de Almeida, faz uma abordagem sobre o contexto econômico e social da época, e destaca as causas que levaram à aprovação legislativa da Reforma. A partir dessa contextualização, o autor segue com uma análise pormenorizada, destacando seus eixos e principais alterações normativas, ao final infere as consequências socioeconômicas advindas da mesma. Assim, esse primeiro artigo dá um panorama amplo do contexto, fornecendo ao leitor um subsídio importante para o entendimento do que será apresentado ao longo do livro.

O segundo capítulo, redigido por Silvio Eduardo Boff e Carlos Henrique Horn, analisa as consequências da Reforma Trabalhista na normatização coletiva do trabalho. Os autores concluem que as alterações intensificaram a assimetria nas negociações de modo a fortalecer demasiadamente os empregadores e enfraquecer os coletivos de trabalhadores.

No terceiro capítulo, Fernanda Moralles e Carlos Henrique Horn utilizam o voto do Ministro Roberto Barroso na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 324 (ADPF 324) para aprofundar investigação sobre os impactos da terceirização no mercado de trabalho brasileiro. Concluem que a ampliação nas hipóteses da terceirização resultou, no biênio subsequente, no aumento da informalidade e da desigualdade socioeconômica. A generalização indistinta da terceirização, como uma das inovações advindas com a Reforma Trabalhista, ao contrário do que era propugnado pelos seus defensores, contribuiu também para o aumento do desemprego e o rebaixamento da renda média da população ocupada.

No capítulo quarto, dando sequência à análise dos impactos da terceirização, mas doravante com foco sobre a subjetividade do trabalhador, Fábio dos Santos e Anelise Manganelli apontam que esse tipo de vínculo, dada as suas particularidades e precariedade, acaba por deixar os trabalhadores terceirizados mais propícios de serem vítimas de assédio moral.

No quinto capítulo, Gilberto dos Santos e Cinara Rosenfield observam os impactos da reforma trabalhista no movimento sindical. Destacam a legitimação das reformas por intermédio do Poder Judiciário, particularmente nas decisões do Supremo Tribunal Federal que sofreram forte influência das teorias neoclássicas de viés liberal. E defendem que a mais alta corte jurisdicional negligencia os ensinamentos da teoria keynesiana, na qual o ganho de renda dos trabalhadores contribui para o crescimento da demanda agregada e para dar início a um círculo virtuoso na economia.

Raquel Gibrowski Faé, autora do sexto capítulo, realiza um resgate histórico da importância dos sindicatos para o sistema econômico e analisa as alterações promovidas pela Reforma Trabalhista que impactaram na estrutura do modelo sindical brasileiro, a exemplo do fim da contribuição obrigatória.

Finalizando a Parte I, Élido Moreira e Cássio Calvete buscam vislumbrar opções propositivas de reestruturação e, também, sugerir para o Movimento Sindical brasileiro novas formas de enfrentamento diante dos obstáculos colocados pela nova conjuntura da Reforma Trabalhista e das inovações tecnológicas.

Na Parte II, o enfoque é colocado sobre os impactos da Quarta Revolução Industrial sobre as relações de trabalho. Os dois capítulos que abrem esse segundo modulo têm por objetivo demonstrar como ocorre a interrelação entre a Revolução Tecnológica e a Reforma Trabalhista, e argumentar que ambos fazem parte do projeto neoliberal. Não obstante, apontam possíveis caminhos para mitigar os efeitos sobre os postos de trabalho.

O oitavo capítulo, de Fábio Rosa e Cássio Calvete, discute duas questões: A difusão das novas tecnologias vai acarretar o fim dos empregos no Brasil? As alterações na legislação trabalhistas podem solucionar o problema do desemprego? Nem uma coisa, nem outra.

O nono, de Frederico Burger e Fernando Cotanda, argumenta que as inovações tecnológicas e organizacionais – as quais balizaram a reestruturação produtiva e as drástica alterações nas normas trabalhistas – fazem parte de um mesmo movimento geral em busca de maior flexibilidade no mundo do trabalho, isto é, maior livre arbítrio para o empregador.

Os três próximos capítulos são dedicados a questões pontuais trazidas pela Quarta Revolução Industrial.

No décimo, Michele Kappel e Álvaro Merlo, baseadas em um estudo de caso de teletrabalho, concluíram que a avaliação quantitativa do desempenho, o individualismo e o isolamento social dessa modalidade impactaram a saúde mental da entrevistada, levando-a a um quadro de depressão.

No capítulo seguinte, Jefferson Alves avalia com sua expertise o tema “A advocacia na era da Revolução 4.0” e conclui que as novas tecnologias já avançaram nessa área e a substituição de operadores do Direito por robôs e pela inteligência artificial já é uma realidade; e que, se por um lado, há o aspecto positivo de aumento da produtividade, por outro, tal inovação elimina postos de trabalho e precariza muitos dos existentes.

Cristiano Castilho e Janice Castro, por sua vez, propõem o estudo sobre imigrantes no mercado de trabalho brasileiro e destacam que o movimento migratório se intensificou com a globalização, sendo importante considerar que muitos postos de trabalho podem ser transferidos para outras nações e que os imigrantes são os mais vulneráveis diante de crises econômicas, políticas e humanitárias.

No penúltimo capítulo, Alethea Costa e Hélio Henkin expõem que a valorização do trabalho humano através de práticas sustentáveis no meio ambiente laboral, além de cumprir seu papel social, trazem retornos concretos para as empresas com trabalhadores mais motivados e produtivos.

No último capítulo, Roberto Carlos Duarte e Naira Franzoi demonstram a interrelação entre educação e desenvolvimento econômico e, ao final, concluem pela premente necessidade de expansão do ensino como principal meio para diminuir as desigualdades sociais, refutando a teoria da segmentação dos mercados.

O livro como um todo – e a maioria dos capítulos – utiliza um percurso metodológico que parte do concreto para o subjetivo, depois volta o olhar novamente para o concreto; muitas vezes, a análise transita do particular para o geral, ou do geral para o particular. Os textos foram redigidos de forma acessível, tornando a leitura fluida, sem perder a profundidade e o rigor acadêmico.

A obra atinge plenamente seus objetivos, apontando que os impactos negativos da Quarta Revolução Industrial sobre o emprego não serão minimizados pela Reforma Trabalhista recente, prevalecendo um cenário de precarização das relações de trabalho no Brasil na década atual. Os capítulos apresentam diferentes facetas, contribuindo no seu conjunto para reforçar o entendimento das tendências em curso.

Enfim, o livro demonstra, de forma inequívoca, um hodierno período de grande retrocesso das conquistas dos trabalhadores, observado na piora das condições de trabalho e aumento do desemprego, intensificado pelas novas tecnologias no processo produtivo.

Notas

[1] Há diferentes entendimentos sobre esse tema. Ver, por exemplo, Schwab (2016) e Kon (2020).

[2] Para um entendimento amplo da reforma trabalhista no Brasil, ver Krein et al. (2021).

Referências

Calvete, C. S., & Horn, C. H. (Orgs.) (2020). A quarta revolução industrial e a reforma trabalhista: impactos nas relações de trabalho no Brasil. Porto Alegre: CirKula.

Kon, Anita (2020). O futuro do mundo do trabalho: impactos do novo paradigma tecnológico. Cadernos Adenauer, 21(1), 187–214. https://www.kas.de/pt/web/brasilien/einzeltitel/- /content/cadernos-adenauer-1-2020-1

Krein, José Dari et al. (Orgs.) (2021). O trabalho pós-reforma trabalhista – 2017. (2 v). Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), Instituto de Economia, Unicamp. https://www.cesit.net.br/lancamento-o-trabalho-pos-reforma-trabalhista-28-6/

Schwab, Klaus M. (2016). A quarta revolução industrial. (Trad. Daniel M. Miranda). Edipro.

Nívea Maria Santos Souto Maior é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil.

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