Revogar a reforma trabalhista?

Fotografia: Alan White/Fotos Públicas

No Brasil, o tempo provou que a (des)regulação do trabalho levou milhares para abaixo da linha de pobreza.

Guilherme Guimarães Feliciano e Germano Silveira de Siqueira

Fonte: Jota
Data original da publicação: 26/05/2022

Temos ouvido, desde o início deste ano – se não antes –, declarações de eminências políticas no sentido de que, em uma eventual eleição favorável às atuais oposições, buscar-se-ia revogar ou ao menos revisar a dita “reforma trabalhista” (Lei 13.467/2017).

Recentemente, porém, reações agudas foram manifestadas em editoriais dos três maiores jornais do país, em um movimento aparentemente articulado para defender a reforma como se fosse uma espécie de “patrimônio nacional”. Curiosamente, nem os insultos cotidianos à democracia receberam repulsa tão dedicada e uníssona dos editorialistas.

Quando dos debates legislativos que levaram à aprovação da Lei 13.467/2017, à frente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), já chamávamos atenção de parlamentares e empresários envolvidos na discussão para o fato de que o produto inexorável da reforma trabalhista seria – como tem sido – a precarização das relações de trabalho, por um lado, e, por outro, a redução sistemática da massa salarial das classes trabalhadoras (com o consequente rebaixamento global de seu poder de compra, impactando o sistema de consumo e as cadeias produtivas que dependem da circulação de recursos salariais que não geram poupança, mas são vertidos direta e imediatamente para a aquisição de bens e serviços). Em suma, contração da economia.

Foram denunciadas, ademais, afrontas formais e materiais à Constituição Federal de 1988 (como aliás, constou de nota técnica da Anamatra, da ANPT e do Sinait).[1] Apontávamos, enfim, a experiência de outros países onde reformas trabalhistas de semelhante perfil trouxeram resultados micro e macroeconômicos igualmente ruins.

Na Espanha, por exemplo, “depois da reforma de 2012, o desemprego aumentou, houve redução de salários médios e o valor do salário pago em território espanhol é hoje um dos mais baixos da União Europeia”.[2] Não por outra razão, os espanhóis acabam de revisar os termos da reforma de 2012. No México, de outra parte, após a reforma trabalhista de Felipe Calderón (2012), o número de desempregados aumentou; e, de resto, o que se deu foi basicamente uma migração dos postos de trabalho, antes protegidos e duradouros, para postos precários.

Mesmo na Alemanha, o chamado “Plano Hartz” – a “Agenda 2010” do festejado Gerhard Schröder – jamais foi uma unanimidade. Resultou na expansão de contratos temporários, sem a incidência de impostos.

No caso do Brasil, um dos países mais injustos do planeja, o tempo provou, antes mesmo da pandemia, que a (des)regulação do trabalho levou milhares de trabalhadores para abaixo da linha de pobreza. Segundo estudos de Lia Coll,[3] ao invés de se gerarem empregos – uma falsa promessa, diga-se –, fomenta-se, ao revés, “[…] uma transição ocorrendo no panorama do trabalho, já que a informalidade recupera sua marca histórica, enquanto o trabalho formal cai”. Por outro lado, o Brasil acrescentou, em 2021, mais 42 nomes na sua lista de seus bilionários.[4]

O que a Lei 13.467/2017 gerou, ao fim e ao cabo, foi (a) o desmonte da estrutura sindical, com o enfraquecimento da organização dos trabalhadores, sem ter colocado em pauta a necessária discussão da pluralidade sindical, por emenda à Constituição; (b) a flexibilização/restrição dos direitos históricos dos trabalhadores, por instrumentos diversos, de ordem material (por exemplo, a pactuação individual da jornada 12×36 e a “tarifação” das indenizações por danos extrapatrimoniais) ou de ordem processual (por exemplo, a ação para homologação de acordos extrajudiciais), a par dos esforços para instituir a primazia da autonomia privada coletiva (“prevalência do negociado sobre o legislado”) sem ter em conta a capacidade negocial dos entes sindicais e a indisponibilidade natural de diversos diretos trabalhistas; e, para mais, (c) a extinção pura e simples de alguns direitos trabalhistas tradicionais (e.g., o intervalo de 15 minutos antes do início das horas extraordinárias das mulheres, o sobressalário por supressão de intervalos – que se transformou em “indenização” –  e as horas “in itinere”, nos padrões originais do art. 58, §1º, da CLT (na redação da Lei 10.243/2017).

Produziu-se, ademais, uma inexplicável inversão principiológica das bases do Direito do Trabalho em diversos artigos, ora buscando o esvaziamento e a limitação de custos financeiros da remuneração, ora a transferência de responsabilidade para o trabalhador quanto às despesas da própria execução do trabalho cotidiano, além de flexibilizar o trabalho insalubre para mulheres grávidas e fechar as portas de acesso à Justiça do Trabalho para os mais pobres, valendo-se de mecanismo brutais de ameaça econômico-patrimonial em detrimento dos hipossuficientes econômicos, sem qualquer precedente na legislação processual brasileira (o que, felizmente, foi recentemente arrostado pelo Supremo Tribunal Federal, ao ensejo da ADI 5.766).

Como efeitos práticos, com o auxílio da grande mídia e de personalidades do status quo, inclusive do Judiciário, os engenheiros dessa obra mal desenhada passaram a propagandear as “belezas” do empreendedorismo de cada  empregado, falsos “patrões de si mesmos”, em discurso pernicioso que amiúde esconde a precariedade do trabalho informal e o indelével advento do desemprego e do subemprego em massa, com desalento, redução de direitos, de salários e de postos de trabalho e, por consequência, a degradação da economia pela fragilização do mercado consumidor interno.

Aliás, esse alerta foi feito seguidas vezes nas discussões do projeto na Câmara e no Senado, não só pelos subscritores, mas por outros debatedores que, sabe-se bem, tomaram parte no processo legislativo de forma quase decorativa, já que suas contribuições foram totalmente desprezadas pelos relatores do projeto, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, ao argumento de que o Brasil tinha “pressa”. Sobreveio um modelo socialmente restritivo, amalgamando um imprevisível “liberalismo feudal” com o liberalismo de autarquia, que vive ao giro da especulação financeira, às expensas de exoneração tributária sem cláusulas compensatórias, da programas como Refis (para saldar tributos não pagos a tempo) e da apropriação de direitos sociais como forma de maximizar lucros e garantir “competitividade”.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) até então vigente, que sempre esteve aberta a alterações e muitas vezes foi modificada nos últimos 20 anos, jamais foi empecilho ao desenvolvimento do país e à criação de empregos, bastando lembrar que os melhores e mais efetivos padrões de empregabilidade no Brasil se deram justamente na primeira década dos anos 2000, na vigência das regras anteriores à Lei 13.467. O próprio trabalho remoto (home office), tão utilizado durante a pandemia, já estava previsto na versão pré-reforma (art. 6º da CLT).

Pois bem. Agora, em “terra brasilis”, volta-se a discutir a reforma trabalhista, como ingrediente necessário do debate político que precederá e informará a eleição e a sucessão presidencial que se avizinham. O realismo tem sugerido a óbvia necessidade de revisá-la, quando não de revogá-la, repristinando o estado jurídico anterior e rediscutindo, desde aquele ponto de partida (e não o atual), eventuais alterações pontuais que se sustentem racionalmente.

No último dia 14 de maio, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o evento “Revoga Já” trouxe à baila, em diversas mesas de debates – dedicadas aos planos jurídico, econômico, político e sindical, respectivamente –, as mazelas da Lei 13.467/2017 e a necessidade de se superar esse interregno de estagnação social que se abateu sobre todos com as vestes da salvação econômica.

Que venham, pois, o bom debate e os bons ímpetos. Até porque, recuperando Aristóteles – que certamente não foi “esquerdista” –, a crítica é algo que se pode evitar facilmente: basta nada dizer, nada fazer e, por fim, nada ser. Não será esse, decerto, o nosso papel.

E então, caro leitor? Qual a sua opinião sobre a reforma trabalhista (e sobre a possibilidade de revê-la/revogá-la)? Comente, opine, critique, pondere… Somos todos ouvidos (dunkel2015@gmail.com). E você deve falar. Afinal, é réu do seu juízo.

Notas

[1] Cfr. https://www.anamatra.org.br/files/Nota-tcnica-Conjunta-Reforma-Trabalhista—aspectos-de-constitucionalidade-e-antijuridicidade.pdf. Acesso em: 13 maio 2022.

[2] Cfr. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/16/economia/1497635788_119553.html. Acesso em: 5 set. 2017.

[3] COLL, Lia. Aumento da miséria extrema, informalidade e desigualdade marcam os dois anos da Reforma Trabalhista. Jornal da Unicamp (on line),  11.11.2019. Disponível em: unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2019/11/11/aumento-da-miseria-extrema-informalidade-e-desigualdade-marcam-os-dois-anos. Acesso em: 13 maio 2022.

[4] Cfr. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/27/40-novos-bilionarios-brasileiros-forbes.htm. Acesso em: 16 maio 2022.

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