O assédio eleitoral de 2022 é resultado de opções das legislações e políticas trabalhistas recentes.
Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 23/10/2022
A admoestação de empregados para votarem em candidatos preferidos do patrão não é invenção de 2022, mas o atual processo eleitoral brasileiro já é notadamente marcado por essa recorrência. Até sexta-feira, 21/10, o Ministério Público do Trabalho recebeu 1.112 denúncias em todo o país. Em 2018, foram pouco mais de 200 os casos relatados. Por que que agora? Por que após quase cem anos de retração, repete-se o que era típico das votações da República Velha?
Mas, primeiro, a delimitação do assédio eleitoral contemporâneo
Assédio é ação violenta praticada por pessoa investida de poder sobre outra que lhe está em posição inferior. Na modalidade eleitoral, executa-se a partir da compra de votos, do terrorismo de resultado e de diversos tipos de fraudes tendentes a viciar o processo individual e sereno das escolhas políticas de empregados. Objetivamente, há três tipos de situações observadas.
Primeiro, com a imposição, a partir do exercício viciado do poder empregatício, da presença de empregados em eventos convocados pelo patrão. De forma mais explícita ocorre com reuniões-comício pomposas e bem direcionadas para induzir voto em determinado candidato. Mas também pode existir com introdução do assunto em reuniões regulares de trabalho ou utilização das estruturas de comunicação da empresa para induzir escolhas políticas dos funcionários.
Segundo, a partir da instigação de terror psicológico de consequências, na hipótese de um candidato ser eleito ou outro não ter êxito. Alcança tentativas amedrontadoras de convencimento do patrão para com empregados de que haverá catástrofe econômica, caso certo projeto político seja vitorioso, levando, inexoravelmente, ao desemprego. Não raro, outras formas de efeitos amedrontadores são apresentados, sempre ameaçando resultados ruinosos aos funcionários e suas famílias.
Terceiro, o estabelecimento de promessas variadas de prêmios e outros benefícios, caso haja vitória eleitoral do candidato apoiado pelo empregador. O prêmio é parcela não salarial e que deve ser paga a partir de qualidade diferenciada no desempenho funcional. De importâncias em dinheiro a folgas e festejos, a utilização do prometimento de vantagens de conteúdo econômico subverte o conteúdo da parcela. Mas o mais grave é o efeito de pretender esterilizar valores intelectuais das opções políticas e substituir pela simples e antiga compra de voto.
O voto de cabresto da República Velha, motivos e instrumentos de sua superação
As rotinas de admoestações de empregados-eleitores nos anos 2000 lembram outras, próprias da República Velha e que receberam o apelido de “voto de cabresto”, exercido por “coronéis” e dentro do “curral eleitoral”.
República Velha é o período da história do nosso país que se estendeu de 1889 a 1930, ou seja, da Proclamação da República à Revolução de 1930. O voto de cabresto foi o mecanismo imposto por líderes políticos locais para fazer com que o acesso aos cargos eletivos ocorresse por meio da compra de votos, com utilização da máquina pública, abuso do poder econômico e imposição da figura pessoalizada do coronelismo. Aproveitando-se que o voto era aberto, fazia-se muito fácil a fiscalização da imposição, a partir da vigilância de prepostos do líder paroquial. Essa influência viciadora do processo eleitoral era exercida dentro de uma área delimitada em que o coronel mantinha seu poder, o curral eleitoral.
Formalmente, o coronelismo perdeu seu mais importante instrumento de violência eleitoral com o Código de 1932. A Revolução Liberal de 1930 teve por um de seus princípios objetivos a imposição de moralização do sistema eleitoral brasileiro, superando os vícios da República Velha. Por isso, um dos primeiros atos do governo provisório foi a criação de comissão de reforma da legislação eleitoral, cujo trabalho resultou no primeiro Código Eleitoral do país. Além de criar a Justiça Eleitoral – com atribuições de alistamento, organização da votação, apuração, reconhecimento e proclamação dos eleitos, em todas as esferas nacionais – estabeleceu o direito de voto feminino e sufrágio secreto.
Mesmo dentro de todas as suas idiossincrasias, a Revolução de 1930 também impôs golpe quase mortal no voto de cabresto, e o fez a partir de um firme projeto de desenvolvimento econômico, aliado à formação de uma consistente intervenção estatal nas relações de trabalho.
O Brasil de 1930 era essencialmente agrário. Grande parte da população morava na zona rural e quase 60% do PIB estava na produção agrícola. A modernização pretendida pelos revolucionários pretendia – e conseguiu – ampliar a base produtiva nacional. BIAVASCHI ensina que, de um “fazendão”, com base tipicamente agrária e marcada por herança escravocrata, patriarcal e monocultora, o Brasil iniciou seu processo de industrialização e ingressou no contexto do século XX como um país moderno[1]. Tratou-se de uma caminhada complexa de transformação capitalista, e que envolveu a expansão econômica fundada em bases diversas, ampliando a burguesa industrial e sua contraparte, o proletariado.
Mas a modernização também foi alcançada a partir da introdução de um novo papel ao Estado Brasileiro, o de atuante nas regras sociais para proteção do trabalho. Até então, em termos gerais, as relações trabalhistas espalhadas pelo país tinham suas regras definidas pelos empregadores locais, notadamente os mesmos coronéis impositores dos votos de cabresto. A criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do Ministério do Trabalho e da Justiça do Trabalho significaram a introdução do Estado na estrutura de poder até aquele tempo dominada quase que exclusivamente pela força do patrão. A relação de emprego, então com regras pulverizadas e definidas unicamente pelos poderes econômicos locais, passou a ser notadamente normatizada a partir de valores consolidados e impostos pelo Estado.
O Ministério do Trabalho surgiu em 1930, como uma das primeiras medidas do governo revolucionário e chegou a ser chamado de “Ministério da Revolução” por seu primeiro titular, Lindolfo Collor. Foi criado para concretizar o projeto principal do novo regime, atuar positivamente na mediação dos conflitos entre capital e trabalho, buscando a modernização das relações, industrialização e independência econômica. Nas décadas seguintes, seguiu relevante, operando na articulação (e controle) dos sindicatos, criação da legislação trabalhista nacional, fomento ao emprego e à formalização. A partir dos anos 50, a Pasta manteve-se prestigiada e João Goulart projetou-se nacionalmente exatamente como ministro do trabalho.
Em muitos aspectos, a Revolução de 1930 inaugurou uma opção de política nacional antielitista e de substituição do poder local fragmentado, viciado e patrimonialista.
A industrialização, o êxodo rural e a formação de um projeto de desenvolvimento nacionalizado, aliado à redução do poder de impor regras no trabalho subordinado, significou enorme retração no poder dos coronéis. De um lado, o Estado ingressou na relação de emprego, como o novo e mais importante instrumento normatizador. De outro, Justiça do Trabalho e Ministério do Trabalho apresentaram-se como instâncias habilitadas e dispostas para fiscalizar, reverter e punir abusos.
A partir dessas novas estruturas em passo de consolidação, e por todo o restante do século XX (com óbvia exceção nas duas décadas de ditadura militar) e início do século XXI, o voto de cabresto e o curral eleitoral passaram a ser práticas cada vez mais distantes.
Renascimento em 2022
Aparentemente, as denúncias recentes mostram tentativas de voto de cabresto renovado, utilizando elementos próprios de nosso tempo. Mas o rebrand assédio eleitoral não é abiogênese[2], nem o verdadeiro alecrim dourado. Há um conjunto de circunstâncias contemporâneas que propiciaram condições para a retomada das práticas viciadas do processo sufragista brasileiro. Embora voto de cabresto e coronelismo nunca tenham sido integralmente extirpados, ao longo das décadas seguintes aos anos 1930, tinham se tornado práticas então presentes em punhados de rincões resistentes. Mas já deixaram de ser os paradigmas das eleições brasileiras, e se encaminhavam para a extinção.
O que deu errado?
O primeiro conjunto de circunstâncias explicativas diz respeito à recondução econômica nacional. O tripé da profunda alteração estrutural remonta ao final dos anos 1980 do século passado, e é formado por três elementos de reordenação produtiva: a aceitação subserviente da desindustrialização, a (re)protagonização das monoculturas exportadoras renomeadas agronegócio (principalmente, proteína animal, soja e celulose) e a renovada aposta no extrativismo mineral (especialmente, minério de ferro, ouro e diamantes). Os dois últimos são sensivelmente acompanhados pelo desmatamento e continua movimentação das fronteiras agrícolas e das áreas de garimpo.
O refazimento da força ordenadora da economia nacional traz profundos efeitos na organização do trabalho. Especialmente porque vem significando redução do contingente de empregados especializados, bem remunerados, organizados em sindicatos e concentrados em centros urbanos. Com trabalhadores de vínculos precários, com baixa remunerações, distantes das estruturas tradicionais de fiscalização e representação, ampliam-se as condições do exercício de poder dos empregadores.
Não é coincidência que grande parte das denúncias de assédio nas eleições de 2022 ocorre em áreas de monocultura exportadora, vinculando proprietários rurais e outros empresários relacionados ao agronegócio, desmatamento e garimpo. A eleição pelas instâncias políticas dessas atividades como privilegiadas para a missão de alavanca da economia nacional faz ampliar a percepção de que podem muito mais do que a lei objetivamente permite.
E, mesmo quanto a isso, pelo menos desde 2016, soma-se um novo problema: a própria lei já permite muito mais.
Reforma trabalhista e a política de fuga do Estado
Na segunda década do século XXI, mais precisamente entre 2016 e 2017, o Brasil experimentou nova alteração estrutural das relações de emprego. Em volume normativo e disposição de reestruturação, a Reforma Trabalhista apenas é comparável com a CLT, de 1943.
Em 2016, o então Projeto de Lei 6.787/2016, aprovado na Câmara dos Deputados apareceu como condensador de diversas outras iniciativas então postas para alterações de leis trabalhistas, e terminou por consolidar uma grande transformação da legislação laboral brasileira. Cerca de uma centena de artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foram modificados, e a sistematização também avançou em outros normativos. No início do ano seguinte, a Lei 13.429 iria alterar os regimentos de arregimentação de trabalho, estendendo vigorosamente a terceirização no país. Mas ainda seria insuficiente. Seguindo a quadra histórica de fortes turbulências políticas nacionais, o resultado foi a inusitadamente rápida aprovação da Lei 13.467/2017, e que hoje é conhecida como Reforma Trabalhista.
A maior parte dos dispositivos modificados ou inseridos na Lei 13.467/2017 estabeleceu inovações no campo das restrição de direitos trabalhistas, com extensas subtrações das estruturas de fiscalização e correção.
Aqui e aqui, tratamos com mais profundidade as extensões da Reforma Trabalhista, criticamos as opções, apresentamos dados estatísticos e encaminhamos os reparos necessários. Nesse espaço de reflexão, podemos resumir como um conjunto de alterações estruturais da relação de emprego e do processo judicial trabalhista orientados para a precarização de contratos, restrição do vínculo de emprego, achatamento salarial, ampliação da jornada e do tempo à disposição, relativização do meio ambiente laboral saudável, diminuição das estruturas sindicais, facilitação das dispensas, irresponsabilidade do empregador por dívidas, redução da Justiça do Trabalho e restrições no acesso à jurisdição reparadora.
Nos anos seguintes à Reforma, a receita de iniciativas brasileiras para “modernização” da legislação trabalhista e combate ao desemprego seguiu colorida pela mesma paleta. Assim foi com a Medida Provisória 905 (contrato verde e amarelo, redutor de direitos a empregados jovens, sem contrapartidas minimamente consistentes) e os Projetos para Lei de Conversão (PLVs) das MPs 905 e 927, com precarização do sistema de fiscalização, diminuição na autonomia do Ministério Público do Trabalho, extensão de jornadas laborais e redução do adicional de horas extras para profissões com jornada diferenciada, ampliação do pagamento de prêmios em detrimento de salário. Finalmente, o PLV da MP 1.045, que, em grande parte reproduziu as disposições dos dois outros PLVs citados, ainda somou inusitadas disposições processuais e autorizações de trabalho eventual – o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip).
Por fim, o Ministério do Trabalho, órgão criado em 1930, foi simplesmente extinto em 2019, e assim permaneceu até seu restabelecimento formal em julho de 2021.
A partir da profunda modificação da CLT, a Reforma de 2016/17, normativos e políticas públicas seguintes, construíram um quase inteiramente novo ecossistema da relação de emprego. Enquanto a Revolução de 1930 marcou a chegada do Estado na relação de emprego, a Reforma do século XXI virou 180º, e promoveu uma notável fuga da normatização pública. Em boa parte, retomou-se a prática de ordenação laboral do século passado, em que grande parte das regras aplicáveis à relação de emprego é definida pelo ente mais forte, o empregador local.
Em paralelo, a Reforma brasileira e suas políticas suplementares também alcançou os aparelhos públicos criados para fiscalização e correção de maus feitos no mundo do trabalho. Com a diminuição da Justiça do Trabalho, redução da rede de proteção sindical e desidratação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, há pouquíssimos anteparos estatais para atenuação da força econômica sobre a relação de emprego. Fecha-se, assim, o ambiente de permissividade para desvirtuamento de diversos campos das relações laborais privadas.
Se o patrão, agora, tem muito mais liberdade para pagar menos, despedir mais e não responder por suas faltas, porque não poderia impor suas preferências eleitorais?
Com redução dos limites impostos pela lei e pelas estruturas corretivas, a Reforma Trabalhista politizada ampliou o poder privado, feudalizou a relação de emprego e, finalmente, abriu as porteiras para o retorno da imposição da vontade do patrão. As políticas públicas complementares seguiram e aprofundaram esse caminho. Está pronto o cenário de aproximação com os ambientes sociais e laborais da República Velha.
Mas no coronelismo vintage, há algo de diferente e preocupante. Nos anos anteriores ao varguismo, o voto de cabresto estava essencialmente direcionado às votações municipais e estaduais. O curral eleitoral era muito mais limitado aos interesses paroquiais imediatos do líder local. No século XXI, percebe-se ampliação do curral e federalização do coronelato, direcionando as admoestações, principalmente, para eleições do Executivo Nacional.
Ainda não se pode dizer que há uma Nova República Velha em andamento, mas são firmes os sinais. Seria muito útil que o debate político se pautasse para além da imediata – e sempre necessária – repressão das delinquências. Se não houver clareza na origem das práticas, seremos condenados a revivê-las. E ninguém gosta de pastiches.
Notas
[1] BIAVASCHI, Magda. Comentários à Exposição de Motivos da CLT. in TRINDADE, Rodrigo (organizador). CLT Comentada pelos Juízes do Trabalho da 4ª Região. São Paulo: LTr, 2018, 3ª ediação, p. 28. [2] Abiogênese e Geração Espontânea são teorias da Antiguidade que propugnavam a origem espontânea dos microrganismos, sem necessidade de um reprodutor vivo. Experiências desenvolvidas por Pasteur, Spallanzani e Redi superaram essa afirmação e demonstraram que os seres vivos precisavam, sim, de um reprodutor vivo para poder nascer. Desse novo pensamento surgiu a teoria da biogênese.