Regressividade tributária e o fortalecimento das desigualdades de gênero

Cristina Pereira Vieceli e Róber Iturriet Avila

Em 2019, algumas das pautas discutidas nas políticas econômicas do governo foram propostas de reforma tributária, em que pese, a simplificação de impostos, unificação de tributos, dentre outras. Essa pauta provavelmente irá se repetir em 2020, haja vista que, tanto o governo federal, como também os estaduais, permanecem com sérios problemas fiscais. O debate sobre a questão tributária no Brasil não é novidade, além de ser permeado por diversos mitos e controversas, como por exemplo que o país possui a maior carga tributária do mundo e que os impostos que pagamos não retornam em serviços de qualidade para a população1. A despeito das falácias que circundam o imaginário popular – e são comumente utilizadas para convencer sobre a importância de determinadas políticas que normalmente não beneficiam a população assalariada -, é importante entender a realidade tributária do país por meio de dados e indicadores comparativos, e, mais do que isso, a maneira como ela onera, de forma desigual, os diferentes estratos populacionais, em especial as mulheres.

A carga tributária brasileira não é a maior do mundo, no entanto, ela recai principalmente sobre a população mais pobre, já que é composta principalmente por impostos regressivos, ou seja, que oneram mais a população com menores rendimentos, por incidirem principalmente sobre o consumo. A carga tributária brasileira em 2015 permaneceu em 32,66%2, enquanto a média dos países da OCDE foi de 34%. As diferenças principais, no entanto, incidem sobre os tipos de tributos, enquanto a incidência dos impostos sobre consumo em percentual do PIB no Brasil foi de 16,84%, a média da OCDE permaneceu em 10,9%. Por outro lado, a incidência de impostos sobre renda no Brasil foi de 5,97%, enquanto na OCDE permaneceu em 11,5%. Ou seja, a forma como os impostos são cobrados no Brasil contribui para a manutenção das desigualdades de classe e, para além desse fato, o que é pouco pesquisado, fortalece também as desigualdades de gênero.

As mulheres possuem uma capacidade tributária inferior à masculina, o que ocorre principalmente pela sua inserção desigual no mercado de trabalho, em que pese, a menor participação em atividades remuneradas, maiores níveis de desemprego, maior incidência aos trabalhos de meio turno, informais e com menores remunerações, o que está interligado à sobrecarga dos trabalhos domésticos e de cuidados. Essa realidade é ainda pior quando tratamos das mulheres negras, já que recai sobre elas os preconceitos de classe, gênero e raça, o que a teoria feminista denomina de interseccionalidade.

A exemplo disso, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) do IBGE, no terceiro trimestre de 2019 a taxa de desocupação feminina era de 13,9%, enquanto a dos homens permaneceu em 10%. Mesmo em períodos nos quais a taxa de desemprego permaneceu baixa, no terceiro trimestre de 2012, por exemplo, em que a taxa total permaneceu em 7,1%, as mulheres superam os homens: neste ano o desemprego feminino ficou em 8,8%, enquanto o masculino em 5,8%. Em relação à população fora da força de trabalho, segundo a mesma pesquisa, as mulheres compreendem 64,6% do total, enquanto os homens totalizam 35,4%.

As mulheres também estão sobrerepresentadas em subocupações por insuficiência de horas trabalhadas, ou seja, em que gostariam de trabalhar mais horas, mas não encontram ocupações no mercado. A exemplo disso, do total da população subocupada do país, 53,8% são mulheres e 46,2% são homens. Somando as mulheres subocupadas às desocupadas, totalizamos 53,5%, enquanto os homens permanecem em 46,5%. Além disso, as mulheres estão ocupadas principalmente em setores menos produtivos3, outro fator que contribui para a desigualdade salarial por sexo. No terceiro trimestre de 2019, a remuneração real média das mulheres correspondeu a 78,36% da masculina, diferenças salariais que permanecem relativamente constantes ao longo do tempo: no mesmo trimestre de 2012, a remuneração feminina correspondeu a 73,9% da masculina.

Ao pensarmos sobre a elaboração de uma reforma tributária que contribua para a diminuição das desigualdades entre homens e mulheres já existentes no país, é necessário que ela não seja neutra em termos de gênero, ou seja, devem ser consideradas as diferentes características entre os sexos de inserção no mercado de trabalho, as atribuições que recaem principalmente sobre as mulheres, como os trabalhos domésticos não remunerados, bem como os diferentes perfis de consumo e as mudanças nas estruturas familiares. Uma série de estudos realizados em países da América Latina, organizados pela Friedrich Ebert Stifund4, indicam que as mulheres despendem maior percentual de sua renda em bens e serviços ligados à manutenção da família, como alimentação, saúde e educação, o que estaria ligado à forma como são socializadas e ao seu papel de responsáveis pelo cuidado das(os) filhos(as).

Essas questões devem ser analisadas na construção de reformas que visem a diminuição das desigualdades do país. Conforme indicado no início do texto, a forma como os tributos incidem no Brasil tende a reforçar as desigualdades estruturantes na sociedade, em que pese as diferenças de gênero e raça. Um exemplo característico é o fato do Brasil e a Estônia serem os únicos países do mundo a não cobrar impostos sobre lucros e dividendos, que recaem principalmente sobre os homens endinheirados. Por outro lado, as propostas que aparecem em trâmite, tendem a reforçar a regressividade tributária penalizando ainda mais a população pobre. É o caso, por exemplo, da proposta de retorno à oneração da Cesta Básica5, o que irá refletir no aumento do valor dos produtos básicos para o sustento das famílias, que despendem boa parte da renda em alimentação6.

Essa dinâmica tende a intensificar os índices de pobreza e extrema pobreza das mulheres, ainda mais em um contexto de mudanças nas estruturas familiares, haja vista que, em 2018, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE7, em torno de 11 milhões de famílias eram compostas por mulheres sem cônjuge e com filhos de até 14 anos, dentre as quais 31% compostas por mulheres brancas e 68% por pretas e pardas. Do total dos arranjos chefiados por mulheres negras, 63% se encontravam abaixo da linha de pobreza8, enquanto dentre as brancas esse indicador permaneceu em 39%. Portanto, ao invés de utilizar dos mecanismos tributários para contribuir com a diminuição das estruturas desiguais do país, o modelo de tributação brasileiro reforça as existentes, o que tende a se intensificar com as reformas propostas.

Notas

1 A respeito das questões tributárias no Brasil, indico o podcast Outra Economia, que lançou uma série tratando exclusivamente sobre essa questão e pode ser acessado pelo portal Colmeia: https://colmeia.sul21.com.br/qt-series/outra-economia/

2 Dados de 2015, disponíveis em: ANFIP, FENAFISCO, PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL. A reforma tributária necessária. Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira. 2018. Disponível em: http://ijf.org.br/wp-content/uploads/2018/11/A-Reforma-Tribut%C3%A1ria-Necess%C3%A1ria-Livro-2-Subs%C3%ADdios-para-o-debate.pdf

3 Conforme relatório ONU Mulheres (2017), disponível em: https://www2.unwomen.org/-/media/field%20office%20americas/documentos/publicaciones/2017/03/unw16017%20executive%20summary%20web%20esp.pdf?la=es&vs=224

4 https://library.fes.de/pdf-files/bueros/kolumbien/14612.pdf, http://library.fes.de/pdf-files/bueros/kolumbien/14360.pdf, https://library.fes.de/pdf-files/bueros/kolumbien/14359.pdf

5 https://oglobo.globo.com/economia/cesta-basica-subira-mais-de-20-se-aprovada-proposta-do-governo-para-acabar-com-isencao-de-impostos-24105873

6 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25598-pof-2017-2018-familias-com-ate-r-1-9-mil-destinam-61-2-de-seus-gastos-a-alimentacao-e-habitacao

7 https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf, ver também: https://soscorpo.org/no-brasil-63-das-casas-chefiadas-por-mulheres-negras-estao-abaixo-da-linha-da-pobreza/

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Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica licenciada do Dieese, bolsista do CNPQ, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.

Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística – FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul – Semapi.

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