Reformas ilegítimas e proteção no Estado Social

Fotografia: Agência Câmara

O constituinte empenhou, o desenho de uma perspectiva de futuro para a sociedade. Por aí, portanto, é que se constrói a resistência atual à degradação da materialidade dos Direitos Fundamentais.

Tarso Genro

Fonte: DDF
Data original da publicação: 08/10/2022

“… é a sociedade através da história do Progresso que constitui o direito. Este não está estabelecido em nenhum céu de conceitos”..

Fernández-Crehuet apresentando “Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico”. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2008,pp.11

O Estado de Direito –como o oposto da ordem hobbesiana– deve ser considerado uma estrutura normativa pensada pela subjetividade humana, que é construída para ser avessa às relações espontâneas da naturalidade. O Estado de Direito é estruturado para viabilizar as pretensões de solidariedade com subjugação, presentes nos fundamentos materiais da dominação social, atenuando as disparidades e mediando as relações de força entre os cidadãos.

O Estado de Direito é destinado, pelos acordos possíveis e pelos consensos construídos na história específica de cada nação, a organizar a socialidade e impor a esta uma determinada ordem. Para isso é regulado o uso da força consentida e limitada que, dentro do Estado Social de Direito, pondera a “astúcia” para compor uma sociabilidade mais humanizada e impor certos limites na dominação pelo mais forte. (GENRO,2022)*

No período atual, não raramente o Poder Judiciário, no exame da efetividade direitos fundamentais, vem se permitindo prolatar decisões que levam ao absurdo os privilégios da desigualdade e reavivam “uma forte tendência a (aceitar) a atuação governamental e legislativa fragmentadora do estoque constitucional de direitos e garantias trabalhistas”[1]. Trata-se de um processo de inovação decadente e, ao mesmo tempo, prematura do Estado Social de Direito, que amplia o uso da força para a dominação e tende a reduzir as suas práticas destinadas à busca de consenso.

Não se trata, no caso do Brasil, apenas de ensejar maus consensos ou ataques fortuitos à democracia liberal, mas de processos que compõem uma ação deliberada de um governo político extremista-conservador dos (ultra ou neo) “liberais”, aliados ao extremismo neofascista, que impõem um novo modo de ser para a produção da Justiça.

Este novo “modo de ser” foi facilitado também pela extrema midiatização do jurídico, que ajudou a subverter a prestação de justiça. Trata-se de um movimento, tanto espontâneo como induzido, que são feitos em sequência, como chacina pública de reputações, nos quais é exercida uma hermenêutica incompatível com o sistema de normas da constituição, ofendendo a necessidade da distribuição equitativa da Justiça no Estado Social.

Este contraditório, entre a Justiça (amparada numa ideologia do conforto midiático) e a efetividade dos direitos fundamentais (como conduto de afirmação do Estado Social) deve ser tratado com atenção, pois ele (como produto histórico da modernidade democrática) versa sobre “os conteúdos, as ideias fundadoras, (sobre) a igualdade perante a lei e o direito do acesso à Justiça em condições de igualdade (…), não de suas lateralidades e das suas evasivas formalidades (…), (pois) esse contraditório essencial (no interior do Estado Social) (se) assenta em querer melhorar o que está –a partir do Direito– para dar um futuro à Justiça, sem se conformar com o que está a ser produzido pelo cotidiano”2.

Vejamos de maneira esquemática como se dá o consenso, em regra, para a formalização deste tipo de ordem jurídica democrático-liberal e social, utilizando a parábola de uma mesa de refeição, como exemplo para a compreensão da ordem concreta. Pensemos em alguém que “põe a mesa”, na sua casa, para um jantar entre convidados aleatórios que devem ser acolhidos numa ordem, que está sendo partilhada por indivíduos de diferentes posições sociais e origens e que, para “funcionar” e ser previsível, deve assumir uma determinada conformação regrada e aceita internamente, tanto para se proteger das eventuais externalidades perturbadora, como para “prestigiar” os circunstantes presentes. A mesa –de mogno ou de plástico– os pratos, de porcelana ou chineses; os talheres de prata ou ferro fundido; a toalha de linho, os guardanapos, as refeições –todo o ambiente– acondicionam a mesa para o desfrute dos convidados.

Os lugares das pessoas à mesa, já com os instrumentos de uso postos à disposição dizem muito a respeito do que será o jantar. Se ele tornar-se-á uma simples celebração formal, se vai ser servido com mais (ou menos) hierarquia, se as pessoas que estão na mesa, pelos lugares que ocupam –mesmo em condições formais de igualdade– estarão mais próximas ou mais distantes de influir nas decisões do sujeito que exerceu o “poder” convocante do acontecimento.

Trata-se, em cada caso concreto com as suas especificidades (…) de uma “Constituição interna de espaço retórico que pressupõe, por um lado, estabelecer distinções, até agora (mais ou menos) suprimidas e por outro lado (fazer) algumas das distinções, que tem assentado a evidência ingênua da autonomia do espaço retórico frente a outros espaços vizinhos”(…)[3] O espaço políticos interno do poder constituinte é formalmente livre, em relação ao espaço externo, no qual funciona a velha ordem a ser superada, mas a sua autonomia é relativa, pois fora da mesa constituinte as fontes materiais de geração do direito continua funcionando.

A parábola da mesa é a parábola da instituição de uma ordem: ela é pretendida, mas nem sempre realizada na vida real como foi prevista. O ideal concebido é –entre outros fatores– também condicionado pelo comportamento e as expectativas dos comensais, o que implica que a “ordem” resultante nunca será exatamente como quis o seu poder “instituidor”. Aquele espaço regulado, todavia, vai se organizar dentro de alguns marcos projetados pelo anfitrião, cuja capacidade convocatória foi aceita sem restrições ou, se conflitante, foi um espaço consensuado.

Os sentidos que resultam da ordem acordada são orientados pelas normas emitidas pelo poder que as instituiu, mas estes sentidos também adquirem vida própria, mesmo que permaneceçam estáveis por um certo tempo. O processo de configuração dos sentidos da ordem produz uma tensão, nos seus limites, em busca de um objetivo pressuposto que nunca é revelado totalmente na norma convocatória, mas que estará presente no processo Constituinte.

Demarquemos exemplos críticos destes limites: os convidados poderiam, por vontade própria, “trocar de lugares”, para poder ocupar um lugar mais propício ao acordo ou à condução de seus interesses –independentemente da permissão do anfitrião– sem que a ordem desmoronasse? Alguma normatização poderia (ou deveria) prever que –dentro da ordem– alguns comensais poderiam comer menos (reduzir seus desejos) para que outros comessem mais (ou acumular mais força), para manter seus privilégios? Os convidados poderiam sair da mesa, sem tumulto?

Esses parâmetros da ordem são claros ou ocultos –supostos ou induzidos– mas necessariamente traçam limites. Suas linhas de resguardo, de um lado, evitam a dissolução (anômica) do compartilhamento e, de outro, mantém o convívio tenso (previamente organizado) entre os circunstantes. O grau de acolhimento desta ordem, portanto, permite que pelas suas formas de recepção legítima, aqueles que não tenham as suas expectativas atendidas mantenham os compromissos de legitimação que os levaram até lá.

Num texto de minha autoria este tema está ligeiramente tratado, (numa transcrição ora adaptada): “Behemoth”, figura bíblica do demônio da morte, é o nome de (uma) banda black-metal dos anos 90 na Polônia. Os seus vídeos sinistros veem o satanismo como autenticidade e liberdade. Já no livro do filósofo-jurista Franz Neumann do mesmo nome – Behemoth – é feita uma análise do Estado Nazista (…) para entendermos um outro lado da racionalidade jurídica moderna: assim como os roqueiros poloneses da banda Behemoth, identificam os valores humanísticos no demoníaco (como se este fosse a propagação do amor autêntico e da liberdade), os valores selecionados por Neumann (no livro de nome bíblico) levam a uma outra reflexão: trata os perigos que cercam o Homem, segundo Valery, que seriam a “ordem” e a “desordem”. Com esta (a desordem) se perderia a “coerência”, dizia ele; com a outra (a ordem) sofreríamos o risco da “petrificação”[4]. O demônio seria o desconhecimento destas possibilidades.

Note-se que a definição do “sentido” (para o “sentimento” jurídico de Jhering) que a ordem jurídica assume na sociedade contemporânea, é sempre concreto, definido pelo “caminho da história e pela comparação”[5] e frequentemente judicializado. É possível constatar que nos Tribunais Constitucionais – com suas decisões entre a coerência e a petrificação – portanto, fluam tanto decisões que fazem a harmonização destes sentidos, coerentes com o Estado Social de Direito, bem como decisões que levam a sua desarticulação, pela resistência dos Tribunais a ajustar-se – petrificação- ao conteúdo primário do Estado Social, que é um Estado cujo “dever ser” é extrair da forma a concretude dos direitos fundamentais. Aqui está o imprevisto que vaga entra a coerência e a petrificação.

Os prolatores de tais decisões trazem para a “ordem concreta” a leitura que fazem da ordem normativa abstrata posta pelo Constituinte na Lei Constitucional, sempre em uma das suas possibilidades, embora o conceito de Estado Social, contido no Preâmbulo da sua Constituição obrigue, em cada momento da interpretação constitucional uma hermenêutica que “dê vazão” às possibilidades de igualdade e de solidariedade contidas no Preâmbulo. É nele que o Direito e a Política constituinte estão harmonizados e concentrados como “história e comparação”, pois se a ordem, enquanto Sistema de Justiça, não der vazão a este sentido preambular ela se esvai como ordem.

Tomemos o debate sobre o direito de greve como exemplo para melhor compreender o sentido das limitações a este direito, no caso concreto de uma greve nos “serviços essenciais”. O Exemplo vem da decisão do Tribunal Constitucional Espanhol (TCE), que indicou uma alternativa de interpretação da lei coerente com o sentido do Estado Social, ao examinar uma greve deflagrada neste tipo de serviço: desviou da petrificação e optou pela coerência do Estado Social.

O TCE modulou a essencialidade desta forma: “não há razão neste momento (de limitar) o direito de greve, (pois) a técnica de conciliação entre ambos os direitos, dos empresários e dos associados, no caso de greve nos meios de comunicação, desdobrando o momento temporal do exercício do direito” (vem da) “determinação concreta do conteúdo de serviços mínimos”. É a mudança de posição dos circunstantes na mesa da democracia, que aqui está exposta, que permite chegar ao sentido da ordem, no registro maestro de Antonio Baylos[6].

Imaginar a possibilidade de mudança de posição nas relações de poder, que interferem no sentido das normas produzidas na “mesa” constituinte ajuda, de um lado, a compreensão do conteúdo normativo do Direito no Estado Social e, de outro, permite a compreensão de como se move o Sistema de Justiça horando seus pressupostos de legitimidade que moldaram o todo normativo para dar sentido às leis infraconstitucionais, de acordo com o Preâmbulo da Constituição.

Independentemente de qual seja o sentido, porém, o processo hermenêutico está lá para conciliar as fontes materiais com as fontes formais da sua produção, já que o direito moderno –fundado nas abstrações filosóficas iluministas– organiza um sistema normativo que quer possibilitar o máximo de coerência para chegar ao conteúdo material previsto naquelas abstrações. As normas, na lei positiva, contêm um “dever ser formal”, “se é que ainda se pode manter a ideia de norma jurídica (já que) alguns preferem falar em regras e princípios, (pois) a hermenêutica é uma tentativa de se manter a estrutura normativa ampliando as suas fontes de produção de sentido”[7].

Lembro aqui uma lição precisa de José Geraldo de Sousa Junior: a busca de uma alternativa para o direito posto, tanto pode ser encontrada na norma como pode ser fundada nos “dados derivados (das) práticas sociais criadoras de direitos e (assim) estabelecer novas categorias jurídicas para as relações solidárias de uma sociedade em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão, e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”[8] que, no Estado Social, pode ser realizado dentro do quadro normativo inspirado no Preâmbulo da Constituição Social.

O Direito Alternativo, que buscava aproximar a norma dos princípios e buscava também rejeitá-las, se injustas, na resolução do caso concreto, sempre foi uma hermenêutica rebelde para buscar um mínimo de efetividade (coerência sem petrificação) dos direitos fundamentais nos quadros do regime ditatorial.

O Direito Alternativo fincou-se na teoria do direito crítico, na época da ditadura militar, assim como hoje a dogmática do concreto está para a Constituição do Estado Social, legítima e vigente, assediada pela exceção. O “direito alternativo” hoje pode ser, portanto, a produção da seguinte conexão de sentidos: preâmbulo, normas que apontam os direitos fundamentais mais princípios vinculativos da busca igualdade e da liberdade para a fruição destes direitos.

Retomo, em síntese, o texto já publicado: “a dogmática do concreto é, em termos filosóficos, uma “reconciliação” com a realidade iluminista e jus positivista, naquele sentido que lhe emprestou o Hegel maduro. Nas circunstâncias históricas atuais, porém, em que os setores mais modernos do capitalismo vinculados ao sistema de poder mundial, são obrigados a retroceder ao pré-iluminismo, aquela reconciliação visa voltar ao iluminismo, não fugir dele. Seu conteúdo originário deve ser conscientemente acolhido, por ser uma repulsa radical à devastação do seu momento de humanismo político mais elevado, representado pela experiência da socialdemocracia”[9], que agora o sistema do capital global relativizou e perverteu.

Sua ideia vem de que: “a cadeia de razões e justificativas” nos marcos de um discurso jurídico concreto, hoje, necessita sustentar-se numa dogmática particular: a dogmática do concreto. A síntese das determinações deste concreto supõe uma dogmática que busque sua fundamentação nos direitos fundamentais. Ela é que cria um “discurso jurídico concreto” (para uma retórica humanista) que é justificável a partir da legitimidade formal e material estimulada na Constituição (…) cujo conteúdo normativo foi produzido por maiorias fundadas na soberania popular, que está expressa, no seu sentido material e formal, no Preâmbulo de Carta”[10]: “trata-se, portanto, de um discurso orientado na dogmática em que o intérprete leva em consideração o que está escrito na Constituição e combine os seus princípios, revelados no Preâmbulo, com o sentido lógico da norma, orientado pela teleologia do poder constituinte”[11]. “A partir daí esta dogmática (com o intérprete) integra o jurídico literalmente posto com o sentido político que o construiu: a dogmática do concreto busca recuperar a iluminação humanista que redundou no contrato socialdemocrata, contra o retrocesso pré-iluminista, instaurado para reciclar, tanto o “modo de vida” ensejado por aquele contrato, como para feudalizar e privatizar as emoções no mercado”[12].

Aplicação da justiça através das regras capazes de sustentar “decisões Jurídicas concretas –diz Norbert Horn– é a real questão filosófica da ciência jurídica”[13]. A aceitação desta decisão por um grupo majoritário da sociedade, mesmo no caso de uma lei injusta –mas ainda não declarada como inválida– estabelece a presunção de que mesmo ela estando “distanciada de princípios gerais de justiça”,[14] ela está sustentada na presunção de que o legislador no Estado de Direito pretendeu criar leis que promovem justiça. “O sentimento jurídico que legitima as leis no meio social destinatário, todavia, começa a se dissolver quando os governantes se revelam como “criminosos” e abusam, como detentores do poder, do seu poder estatal”[15]. É o caso do nosso país, dentro da exceção abrigada pelos doutrinadores e juristas da extrema direita bolsonarista.

A “práxis” da sociedade industrial-mercantil tem a sua centralidade na produção de mercadorias que são testadas na emoções e necessidades do consumo, e que gera uma reflexão especifica no mundo do trabalho da época, em cada etapa nova da vida laboral. Nela o espaço social concreto do trabalho social é hoje ocupado por novas e passageiras sensações para reinventar a vida, cujo sentido da felicidade para quem esteve ou está no mundo industrial clássico em mudança – vem sofrendo uma mutação radical, pois as emoções que fazem o intercambio das diversas formas de subjetividade social mudaram radicalmente.

No plano jurídico e político de cada nação mais (ou menos) industrializada, o novo mundo do sistema do capital que clamou pelas “reformas” (especialmente a trabalhista) lançou as bases de uma nova utopia, centrada numa outra teleologia, coerente com estas mudanças. É a utopia da regra “natural” do mercado, que ajusta a comunidade global aos seus desígnios, que se combina com novas formas de produção da consciência comum, ligadas aos novos tipos de tratamento que estão sendo dados ao seu trabalho supostamente livre e não subordinado.

Nesta nova “reforma” (seria mais certo dizer “contra-reforma”) os direitos fundamentais dos trabalhadores são tratados como obstáculos para a iniciativa privada e o custo da proteção estatal, para assistir as condições reais de dependência, subordinação e hipossuficiência do trabalhador assalariado (ou “autonomizado”) do século XX, é considerado um impedimento para o desenvolvimento, tal qual o liberalismo radical lhe conceitua. A consciência dos trabalhadores que emergem desta situação é outra, mais formalmente livre, mais orientada para o mercado e mais admiradora da iniciativa “livre”.

Kal Larenz –eminente jurista do século passado– depois das suas relações de simpatia com o nazismo (das quais se livrou apontando-as como “experiências de juventude”) formulou teorias sobre os nexos da ética com o direito com um ponto de partida aparentemente universal, quando sentenciou: “nosso sentimento jurídico (…) deve-se por acima dos fatos, porque (assim) generaliza o concreto e o conduz a hipóteses que, nesse sentido, não estão contidas nas instituições jurídicas”[16].

Não disse o autor, todavia, que o “por-se acima dos fatos”, para aceitar concepções jurídicas que lhe permitiram conviver em paz com o nazismo são diferentes, –por exemplo– da situação de “por-se acima dos fatos” para defender as formas normativas do direito na democracia social, num Estado Democrático de Direito. Na primeira hipótese é impossível adotar um sistema de valores que se ponha “acima dos fatos”, pois quem preliminarmente aceita que o “Fhürer” pode constituir e comandar o direito já está moralmente acomodado aos fatos. Na segunda hipótese, (no Estado de Direito legítimo) ao buscar o sentido da Constituição somos obrigados a nos apoiar em valores que estão contidos na Constituição, nas orientações expressas no seu Preâmbulo, logo “acima dos fatos”, portanto, para compor “decisões jurídicas concretas” apoiados na Constituição legítima.

A aceitação política das reformas constitucionais que vem desmontando o Estado Social da carta de 88, tem sofrido uma resistência tímida por parte do Sistema de Justiça. Esta situação de retração só foi possível pela formação de uma maioria política, dentro e fora das instituições orientada ideologicamente pela visão de que a modernização do Estado e do sistema produtivo pode desertar da preservação dos Direitos Fundamentais. Esta posição, frequentemente aceita pelo Sistema de Justiça, permitiu que um poder reformador, arvorado à condição de poder constituinte, definisse – nas próprias malhas do Estado Social de Direito – a neutralização das regras que asseguram os direitos fundamentais.

Na Europa, a resistência ao deságio do sistema de proteção do trabalho pela via da prestação jurisdicional (como atentou o artigo de Antônio Baylos) ocorre dentro do contexto concreto das reformas, operando diretamente sobre os fatos, “à altura dos fatos”, ou seja, fazendo a reinterpretação das normas constitucionais para sustentar a “coerência” da ordem constitucional, a partir dos fatos interpretados para evitar a “petrificação” desta ordem.

Esta resistência só adquire maior ou menor potência, pela força político-moral que o processo constituinte acresceu ao pacto político, para bloquear o que seria a “exceção” que seria produzida pela revolução violenta, para a superação da ordem ditatorial. Para isso são necessárias simples negociações e acordos com obscuridades, para que a sociedade como um todo se acomode a uma nova situação possível, segundo os interesses em confronto, adaptáveis ao controle que as forças políticas da ditadura exerceram na transição negociada.

Baylos relata um exemplo significativo na pós-transição espanhola com a figura do “empresário complexo”, situação que impele “o jurista reconstruir (a intepretação) sobre a técnica da responsabilidade. Há uma série de cadeias de subcontratação, mas resulta que a terceirização, no final, beneficia um empresário, o “empresário complexo”, que se ergue com a presença de personalidades jurídicas diferenciadas, em função da unidade organizativa e diretiva do processo em seu conjunto; (num) espaço cultural contra-hegemônico (é preciso) encontrar técnicas, teorias, doutrinas que devem ser incorporadas ao patrimônio cultural do juiz. Então a lei diz isso, mas o sistema jurídico recompõe essa norma jurídica elementar. Ou seja, no momento judicial interpretativo, o que se faz é controlar, impedir alguns efeitos, como aconteceu com (o tratamento) da greve e da terceirização.”[17]

O poder reformador do sistema de proteção no Estado Social, que vem sendo utilizado no Brasil, (como na “PEC dos Precatórios”) “promove brutal desigualdade na aplicação da lei, (pois) além de bloquear direitos existentes, inova (para exemplificar fora do sistema de proteção laboral) o processo destinado à tutela de direitos futuros dos sujeitos que continuamente têm créditos contra a União, que são habitualmente resistidos por longos anos. As emendas (do poder reformador) bloquearam o acesso dos destinatários ao devido processo legal, assegurado a todos os cidadãos pelo inciso LIV, do art.º. 5º da Constituição da República, para a defesa dos seus bens, onde se incluem os seus direitos subjetivos, impondo-lhes um processo despido de efetividade: um verdadeiro processo de exceção, e (de outra parte) privilegiando credores titulares de frações da dívida pública (que foram) deixados fora do teto de gastos”[18].

Para avaliar, por dentro da doutrina do Estado Social, a situação do novo mundo do trabalho, seja autônomo ou subordinado, ou mesmo aquele dependente de formas contratuais novas (“soltos” na selva da concorrência) é preciso destacar quais são os limites normativos possíveis de uma “reforma constitucional”.

Em primeiro lugar é preciso lembrar que qualquer “reforma” deve ser limitada pela “necessidade de preservar as decisões fundamentais do constituinte, prevenindo a destruição da ordem constitucional por este projetada”19: “as limitações materiais devem restringir-se aos direitos que, de fato, constituam uma reserva constitucional de justiça”, já que (…) “a legitimidade de tais cláusulas de restrição material à reforma está associada não apenas à sua origem como também ao seu conteúdo”[20].

Em segundo lugar é claro que, mais além do fascínio (ou delírio) que pode causar uma situação de desagregação política, que dá asas à imaginação jurídica e política, é importante ressaltar o que pretendeu, o constituinte originário, ao fazer uma conciliação de interesses, pois esta conciliação cria um tecido constitucional que responde, nas suas decisões, às demandas dos “poderes fáticos” (Ferrajoli) do “alto” da sociedade e da “base” da sociedade.

O poder soberano, quando inclui algo na constituição democrática, tem a pretensão formal e material de vincular ao texto todo o corpo social ao qual o Estado se reporta, pois a partir desta pretensão é que ele –constituinte– gera respeito e credibilidade, para formar um todo normativo coerente em torno da ordem, expressa a partir dos valores contidos no Preâmbulo.

Os fundamentos políticos das decisões da Assembleia Constituinte estão orientados pelo pacto que está contido, de forma expressa, numa relação de valores inscrita no Preâmbulo da Constituição, que não podem ser contrariados, pois, como salienta Pedro de Vega, o poder constituinte é soberano e livre e “o poder reformador é logicamente um poder inferior”[21].

O Poder Constituinte e o Poder Reformador da Constituição, mormente na composição do Estado Social, devem ser diferenciados sempre tendo em vista a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, para que estes permaneçam como possibilidade dentro da Constituição decidida pela soberania popular. E para que a ordem constituída permaneça coerente com o princípio da soberania popular. O Poder Constituinte, é, pois, um poder soberano e o Poder de Reforma, que não pode ser petrificador das desigualdades, é um poder constitucional supletivo: um poder inferior.

O Preâmbulo da nossa Constituição Social como essência do pacto político conciliatório, que absorveu inclusive a conciliação com a ditadura, contém aspirações que perseguem a igualdade, pondo limitações e estabelecendo hierarquias. O constituinte, assim, mira a vida social e econômica, que ele reorganiza livremente, a partir do lugar em que ele está: onde se materializa a soberania popular através de formas coerentes, nas suas máximas possibilidades históricas.

O poder reformador não pode fugir desta ficção que é a base material e formal da intervenção do povo real na formação da nova ordem. No poder Constituinte – seja como poder instaurador da Assembleia, seja como seu poder Reformador– não pode estar presente a exceção que exclui, mas uma lógica formal precisa de inclusão, que a todos os cidadãos integra, fictamente, no pacto social e político que o constituinte instituiu.

A inclusão será concreta ou ficta, mas as normas que prosperam devem conter sempre algum nível de inclusão material, seja a partir de uma inclusão concreta, quando uma norma constituída diz –por exemplo– que tais ou quais servidores do estado, em tais ou quais condições, tem direito a tais formas de remuneração, em tais condições; ou seja a partir de uma inclusão abstrata, quando diz que todos são iguais perante a lei e os seus direitos são invioláveis. Ambas as “inclusões” se integram e se combinam nos mandamentos de valor do Preâmbulo.

Lembremos o exemplo abusivo do poder constituinte vindo da exceção, com uma parábola que poderia ser designada como a “exclusão de Landemesser”, pela maioria política ilegítima, instaurada pela violência do Estado Nazista. “Existe uma famosa imagem em preto e branco da época do Terceiro Reich: é uma foto tirada em 1936 em Hamburgo, na Alemanha, com cem ou mais operários portuários, todos olhando na direção do sol. Eles fazem uma saudação em uníssono, com o braço direito rigidamente estendido declarando lealdade ao Führer(…), mas, podemos ver um homem no canto superior direito que se diferencia dos outros. Seu rosto tem uma expressão calma, mas inflexível. As reproduções modernas dessa foto costumam acrescentar um círculo vermelho em volta do homem ou uma flecha apontando para ele. Ele está cercado por concidadãos que caíram sob o fascínio dos nazistas. Mantém os braços cruzados no peito, a poucos centímetros das mãos estendidas dos demais. Só esse homem se recusa a fazer a saudação. É o único que se levanta contra a corrente”[22].

Há um impedimento claro na Constituição Política do Estado Social de Direito que tal exclusão, que coloca Landemesser como criminoso, possa prosperar como deve ser constitucional, pois antes –nos atos constituintes da constituição democrática, legitimamente convocada– assentada no Preâmbulo, foi normatizada a abstração democrática e social de caráter universal, que vinculou o poder constituinte a certos valores e os protegeu pela norma. De uma parte, porque o pacto político constitucional inscrito no Preâmbulo, assim o disse e, de outra parte, porque os fundamentos normativos da Constituição, baseados nos princípios de igualdade formal e da inviolabilidade dos direitos, também assim o disseram.

No caso de Landemesser o criminoso é o coletivo concreto ou o aparato político de força que fez a sua exclusão, a partir de um poder constituinte que é puro arbítrio, como o Kelsen maduro reconheceu, penitenciado-se de ter admitido o regime nazista com um sistema de direito.

O Professor Roberto Santos, ao analisar a situação da proteção social laboral a partir de um texto de minha autoria (publicado no ano 1996) expressou na Conferência de encerramento do VI Congresso Brasileiro de Direito Social o seguinte: “segundo Tarso Genro” (disse o mestre) “os valores do não trabalho (raça, gênero, exclusão, local, visão sobre a natureza, religião etc.) são os que estão definindo e promovendo a inserção do indivíduo numa nova sociabilidade” por fora do clima cultural e político da fábrica moderna (p.35)”. E isso deveria fazer emergir –prossegue o jurista– “um novo Direito do Trabalho, portanto, e uma nova tutela, que deveria emergir, gradativamente, ao lado do atual Direito do Trabalho, cuja crise terminal será de longo curso”(…)”[23].

Em síntese: as tutelas do pacto de 88 poderiam ser reformadas, mas não substituídas por um novo sentido negativo (vazio de proteção) que vem se expressando, gradativamente. Deveria ser substituído por normas com a mesma teleologia do Estado Social, atentas para o fato de que a fragmentação da oferta de serviços e da oferta de trabalho, decorrentes das grandes transformações tecnológicas, não pode contrariar o objetivo de redução das desigualdades, que é o sentido que dá coerência ao sistema como um todo.

O constituinte empenhou, a partir do Preâmbulo da Constituição, o desenho de uma perspectiva de futuro para a sociedade, que está arrumada como forma (estética) e como conteúdo (material), na Carta de 88. Por aí, portanto, é que se constrói, tanto a resistência atual à degradação da materialidade dos Direitos Fundamentais, como o futuro coerente da nova ordem renovada do Estado (Democrático e) Social de Direito.

Notas

[1]*A introdução ao tema que ora proponho já tinha sido elaborada para um outro texto, também de minha autoria, publicado em GENRO, Tarso et. al. Legitimidade Concreta no Estado Social. In: MATTOS, Viviann Brito (Org.); D’AMBROSO, Marcelo José Ferlin (Org.). Democracia, Direito do Trabalho e Novas Tecnologias. Belo Horizonte: RTM, 2022. Aquela introdução sofreu, aqui, pequenas alterações formais.

MENEZES, Mauro de Azevedo. (Texto solicitado ao autor) e Justiça do Trabalho sob Ameaça de Morte. Roteiro para uma Reação Socialmente Afirmativa. In: Resistência II. Defesa e crítica da Justiça do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p.118.

[2] PINTO, Eduardo Vera-Cruz. “O futuro da Justiça”. Lisboa: Ed. Nova Veja, 2015,p.8.

[3] SANTOS,Boaventurade Sousa.O discurso e o poder.Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p.8.

[4]GENRO, Tarso. Cortes nas universidades são atos de exceção – É um direito dos reitores, alunos e servidores resistirem. GZH. Porto Alegre, 08 de maio de 2019. Disponível em:

<https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2019/05/tarso-genro-cortes-nas-universidades-sao-atos-de-excecao-cjvec9f9g01ug01mamkh5x79j.html>. Acesso em: 05 de set. de 2022.

[5]JHERING, Rudolf Von; Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico. Tradução e edição:Fernández-Crehuet, Frederico.Madrid: Trotta, 2008, p.11 e p.33.

[6]BAYLOS GRAU, Antonio., Servicios esenciales, servicios mínimos y derecho de huelga”. 1ª Ed. Albacete: Editorial Bomarzo, 2018, p. 94.

[7]ROCHALeonel Severo. “Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico.” Universidade de Coimbra. Editora: COIMBRA. p. 1042.

[8]JUNIOR, José Geraldo de Sousa. O Direito que emerge do espaço público. Instituto HumanistasUnisino,2015. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/547896-o-direito-que-emerge-do-espaco-publico-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior>.Acesso em: 24 de set. de 2022.( José Geraldo é o maior expoente da crítica do direito a partir do direito alternativo, ao qual toda uma geração filiou-se guiada pelo professor Roberto Lyra Filho, que indicou o Professor José Geraldo e a mim, bem como, outros jovens juristas, o dever de desenvolvê-lo. Sem dúvida, hoje, José Geraldo é o nosso expoente).

[9]GENRO, Tarso; COELHO, Rogério Viola. (coordenadores). Degradação e resgate do direito do trabalho: contributos para uma doutrina constitucional de defesa dos direitos. São Paulo: LTr, 2018, P. 22.

[10] Idem.;

[11] Ibid.;

[12] Ibid.;

[13]HORN, Norbert; tradução da 2ª edição alemã, Elisete Antoniuk. Introdução à ciência do direito e à filosofia jurídica. Porto Alegre, S. A. Fabris, 2005,p. 30. “(..) A Justiça constantemente aparece em conexão com o Direito, como uma questão fundamental da vida comum das pessoas. A relação entre Direito e Justiça faz parte dos constantes problemas para cada um que se ocupe do Direito ou seja atingido por regras ou decisões jurídicas. Perguntar por justiça, seu reconhecimento e fundamentação, e pela possível aplicação da justiça em regras e decisões jurídicas concretas é a real questão filosófica da ciência jurídica.(…).”

[14]idem,p.31“Todo legislador estatal afirma querer criar leis justas. Mas as decisões de valor fundamentadas em lei podem estar distanciadas de princípios gerais de justiça, especialmente nos casos de Estados não legitimados democraticamente, de forma que deve caracterizar a lei como injusta (e nesse sentido como absurda). Em caso extremo tais leis não tem efeito jurídico, mesmo que possam ser aplicadas faticamente, com a ajuda do poder estatal”

[15]Ibidem, p. 31. “Mas frequentemente ocorre em justiça estatal fora das leis, portanto não dissimulada por uma lei, mas houve violação de qualquer ordem jurídica, em que criminosos abusam, como detentores do poder, de seu poder estatal.”

[16]LARENZ, Karl. DERECHO JUSTO FUNDAMENTOS DA ETICA JURIDICA; traducción y presentación de Luís Diez-Picazo Madrid: Editorial Civita. S.A, 1985,p.39.

[17] BAYLOS, Antonio. Trabalho, democracia e direitos. Publicado em 13 de outubro de 2016. Disponível em: < https://www.extraclasse.org.br/geral/2016/10/trabalho-democracia-e-direitos/ >.Acesso em: 22 de ago. de 2022.

[18]COELHO, Rogério Viola, GENRO, Tarso e MENEZES, Mauro. A inconstitucionalidade das emendas constitucionais 113/2021 e 114/2021: fundamentos e consequências. Democracia e Direitos Fundamentais, 2022. Disponível em: < https://direitosfundamentais.org.br/a-inconstitucionalidade-das-emendas-constitucionais-113-2021-e-114-2021-fundamentos-e-consequencias/ >.Acesso em: 05 de set. de 2022.

[19]MENEZES, Mauro de Azevedo.Constituição e Reforma Trabalhista no Brasil. Interpretação na perspectiva dos Direitos Fundamentais. São Paulo:Editora LTr.2003,p. 197.

[20] Ibid.; p. 197.

[21] VEGA GARCÍA, Pedro de. La reforma constitucional y la problemática del Poder Constituyente, Editorial Tecnos S.A,Madrid, 1995, 1ª ed., p. 255-256. “Ante todo, el establecimiento de cláusulas de intangilidad implica el reconocimiento por el Derecho positivo de la distición entre poder constituyente y poder de reforma. La declaración, através de los limites, de zonas extensas as la accion del poder de revisión, equivale a consagrar su natureza de poder constituído y limitado. Frente al poder constituinte, que es por definición um poder soberano y libre, el poder de reformam aparece, logicamente como un poder inferior, en la medida en que una parte de la obra constituyente queda fuera de su competencia.”

[22]WILKERSON, Isabel. Casta: As origens de nosso mal-estar.:tradução Denise Bottmann e Carlos Alberto Medeiros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p.13.

[23]GENRO, Tarso. DOUTRINA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS MINIMOS. Revista LTR.

LEGISLAÇÃO DO TRABALHO. Vol.82, n 01, janeiro de 2018. “O Futuro do Trabalho e o Emprego” sobre o meu artigo “Crise Terminal do Velho Direito do Trabalho”. (Revista do Direito do Trabalho -100- Editora dos Tribunais – 2000 -p. 4 O texto fora publicado no ano de 1996 num exemplar da Revista de Direito do Trabalho).

Tarso Genro é advogado, ex-ministro da Justiça e ex-governador do RS.

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