A reforma trabalhista proposta pelo governo de Michel Temer, enquanto recua e avança na Câmara dos Deputados, tem tido cada um dos seus argumentos — e o próprio projeto em sua totalidade — combatidos por juristas, sociólogos e parlamentares de diferentes partidos, entre diversos manifestos de entidades. Por outro lado, é colocada pelo governo e aliados como saída para o desemprego e ainda como uma reformulação necessária ao mercado de trabalho.
Na última semana, o governo saiu derrotado na votação da urgência do projeto na Câmara. Voltou à pauta, no dia seguinte, e saiu vitorioso, com a ajuda do presidente da Casa Rodrigo Maia, numa manobra que causou a revolta de parlamentares da oposição. Deputados federais consultados pelo Jornal do Brasil chamam a atenção para a mudança de ideia dos deputados, mas creem que os mesmos que votaram pela urgência podem não votar pela aprovação do projeto que retira os direitos de trabalhadores e desmobiliza o movimento sindical.
De acordo com o relator, o deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN), a aprovação e a entrada em vigor das mudanças na CLT ocorreriam até, no máximo, meados de junho. O projeto tem, entre outros pontos, a questão do negociado sobre o legislado, ou seja, a prevalência do que é negociado entre empresas e trabalhadores contra o que está na lei; a questão do trabalho intermitente, remunerando o tempo de trabalho e colocando o trabalhador à disposição constante do empregador ou empregadores; o plano de carreira passaria a ser negociado entre empregador e “representantes” de funcionários; o trabalhador não poderia mais perder as audiências na Justiça do Trabalho e teria que arcar com os custos do processo.
Jorge Luiz Souto Maior, juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP, defende que comentar sobre pontos específicos da proposta “só serve para atrair a atenção para o especifico, que se pode até tentar justificar, mas com o efeito de levar todo o resto junto”. O professor reforça que o projeto da reforma trabalhista, como um todo, é voltado para a precarização dos direitos do trabalhador.
“O projeto como um todo só tem dispositivos que geram precarização no trabalho, reduzem direitos e impedem o acesso à justiça pelo trabalhador. São mais de 200 dispositivos neste sentido. Não se trata de uma reforma, mas de uma alteração profunda no modo de produção, nas relações de trabalho e na vida nacional como um todo e tudo sem o mínimo respeito ao processo democrático”, explica Souto Maior, professor livre-docente da USP desde 2002, e Juiz do Trabalho desde 1993.
O texto final [do projeto de reforma trabalhista], que se pretende aprovar a toque de caixa, só foi apresentado no último dia 12 de abril. Antes disto, ninguém o conhecia na totalidade. E o que se soube, como dito, é que o projeto é uma espécie de concentração de todas as reivindicações de grandes empresários, notadamente, empreiteiras, não se podendo esquecer que muitos dos que defendem a sua aprovação no Congresso estão denunciados na operação Lava Jato, o que obsta, inclusive, a legitimidade do processo legislativo”, completa o professor. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e um quinto dos deputados estão incluídos na lista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, relator da Lava Jato.
O deputado federal Chico Alencar (Psol-RJ), em conversa por telefone, reforça que o projeto se coloca como um dispositivo de democratização, mas, na essência, serve para fragilizar ainda mais a situação do trabalhador brasileiro. Para o deputado do Psol, não se trata de reforma, mas de desregulamentação, de retirada de direitos. “É possível apontar os piores pontos do projeto, um a um, muito concretamente.”
Chico Alencar também chama atenção, contudo, para a mobilização crescente da sociedade, com o posicionamento contrário de diferentes entidades e centrais sindicais como a OAB, associações de juízes e a CNBB. “A mobilização tem crescido. Isso incomoda porque a obsessão pela sobrevivência política, com questões como o foro privilegiado, é muito grande entre os parlamentares. Essa reação [às reformas] que tem crescido pode interferir, fazer com que o governo não tenha êxito, apesar da força do governo com sua bancada, e dos que sustentaram as suas campanhas em 2014. A matéria não é fácil. Tem crescido uma reação da sociedade que aumenta à medida que se percebe que muitas propostas precarizam direitos.”
Para o deputado Roberto de Lucena (PV-SP), que se colocou contra o direcionamento de seu partido na votação da urgência e é contra o projeto, os que defendem uma desatualização da CLT para justificar a reforma ocultam uma série de mudanças e atualizações dos últimos anos. “Essa proposta de reforma trabalhista remove importantes muros de proteção social em relação aos direitos dos trabalhadores – e isso em nome de se reformar a CLT, que dizem antiga e ultrapassada”, ressalta.
“O substitutivo do deputado Rogério Marinho ao PL 6787/16 é uma proposta de precarização inédita desde a criação da CLT em 1943. É o ‘salve-se quem puder’ e o ‘poder do mais forte’. É o desejo de acabar com a CLT, desmontar o movimento sindical e da Justiça do Trabalho”, completa Roberto de Lucena.
O parlamentar acredita que, por trás do projeto de reforma, há interesses do mercado e do capital, “sem o necessário exercício do ideal de harmonização entre capital e trabalho, o desprezo ao elo mais frágil nessa cadeia, que é o trabalhador, e a determinação em esvaziar o movimento sindical, que é um dos pilares da democracia e meio de proteção dos direitos sociais, além do enfraquecimento da Justiça do Trabalho”.
O deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), por sua vez, classifica o projeto como uma “proposta infame”, uma quitação de dívida do governo de Michel Temer com setores que apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff. O Congresso estaria atuando pela própria causa, já que grande parte dele é composta por empresários ou por pessoas com “relações muito íntimas” com o empresariado. “Certamente ele prometeu aos setores que conspiraram contra a democracia brasileira promover todo esse desmanche na legislação trabalhista. Como também é um governo marcado pela corrupção que não se tem certeza de que possa chegar ao seu fim, o setor empresarial pressiona e cobra a conta. E Temer, por sua vez, obedece.”
“Mais uma vez a opinião da classe trabalhadora não é levada em conta. A pressa do governo, que conta aqui na Câmara com as manobras do Rodrigo Maia, é também para não permitir que a classe trabalhadora se aproprie do debate e perceba o quanto será prejudicada. Não se trata de uma ‘Reforma’, mas sim de um desmanche das leis trabalhistas, que atende uma minoria, mas com muito poder econômico e de influência, especialmente dentro do Congresso e junto ao governo Temer”, completa Pimenta.
Negociação acima da lei
O professor Souto Maior explica que, no projeto, o negociado sobre o legislado tem a “nítida intenção de autorizar a redução de direitos, fingindo que são necessárias contrapartidas aos trabalhadores para tanto, mas isso não se dá concretamente, pois o projeto diz que se não houver contrapartida isso não invalida a negociação, ao mesmo tempo em que praticamente impede o trabalhador, individualmente, de defender na Justiça os seus interesses que entenda tenham sido atingidos pela negociado”.
Sobre o trabalho intermitente, Souto Maior ressalta que vende-se a ideia de que este serviria para atender situações específicas de determinadas atividades, mas que o projeto abre a possibilidade deste tipo de contratação para todo o tipo de atividade, sem qualquer requisito, criando uma “fórmula genérica”, que fragiliza a situação até dos que têm emprego em tempo integral.
Já a representação dos trabalhadores pelos próprios funcionários, para ele, “é outra balela”. “O representante, só para empresas com mais de 200 empregados, não tem efetiva garantia de emprego e, portanto, não tem como defender de forma regular os interesses dos trabalhadores. E se concretamente nem o sindicato, com dirigentes estáveis, conseguem fazer isso, como um trabalhador sozinho o fará?”
Chico Alencar frisa que o legislado, na história da disputa capital-trabalho no Brasil, é uma conquista realizada a duras penas, e reforça que a CLT já sofreu diversas alterações e atualizações. “Neste país, até 1988, tinha escravidão na lei, exploração máxima, cruel, da força do trabalho, pelo qual o senhor tem direito de vida e morte sobre o trabalhador. Mas, ainda assim, o Brasil é um dos que mais remuneram o capital e menos remuneram o trabalho. A proposta do governo agrava isto, inclusive, a partir deste princípio de que a negociação pode superar o que está na lei. Pode ofender até direitos como 13°salário, férias, licença maternidade.”
Paulo Pimenta lembra que a CLT é duramente criticada pelo empresariado desde sua promulgação no governo de Getúlio Vargas, e que as propostas de agora, na prática, rasgam esta CLT. “Questões como o ‘negociado sobre o legislado’, ou do ‘trabalho intermitente’, que torna o ‘bico’ como padrão de contratação, além de enfraquecer o lado mais fraco, que é a classe trabalhadora, e ofender a atuação legítima das organizações sindicais dos trabalhadores, entre outras, abre portas para a desconstrução de direitos e visa legalizar as fraudes à CLT.”
O deputado Roberto de Lucena reforça que, com o projeto, o que era exceção vira regra. “Para manter o emprego, o trabalhador vai ter que abrir mão de direitos. A negociação nesse ambiente e sem a CLT não será equilibrada. Em relação ao trabalho intermitente, o trabalhador fica à disposição do empregador. Recebe pelas horas trabalhadas sem vínculo e sem direitos.”
Sobre o argumento de que o trabalho intermitente, por exemplo, renderia mais empregos, como propaga o relator do projeto, Roberto de Lucena é categórico: “Não trará mais emprego”. O deputado defende que, para isto, antes seria necessária uma reforma tributária. “Nós queimamos etapas!”
“Aprovar a terceirização irrestrita e correr o risco de ver aprovado esse substitutivo do deputado Marinho é abusar da sorte diante de uma sociedade indignada e em choque. É covardia de um Congresso Nacional que vê 14 milhões de trabalhadores desempregados colocados de joelhos pela maior recessão das últimas décadas de nossa história”, defende Roberto de Lucena.
Outro ponto é que, para o relator da proposta, a jornada 12×36 favorece o trabalhador, pois somando as horas ao final do mês daria 176 horas, enquanto na jornada de 44 horas o total ficaria em 196 horas trabalhadas por mês. Souto Maior esclarece que a jornada de 12 horas fere a Constituição, que fixa um limite de oito horas, prevendo apenas compensação de horários e respeito às 44 horas semanais. “Esse foi o pacto feito em 1988. Alterar isso por meio de uma lei que não tem lastro democrático, com legisladores que não foram eleitos para alterar a Constituição, é um atentado ao Estado de Direito, abrindo-se uma porta extremamente perigosa, especialmente nos dias que correm.”
Os defensores da medida também chamam de proteção ao terceirizado a previsão de exigência de um período de 18 meses para o empregador demitir o trabalhador efetivo para recontratá-lo como terceirizado. Souto Maior questiona, “e depois dos 18 meses?” “Além disso, a alteração da posição jurídica do trabalhador, nos termos do projeto, pode se dar pela negociação e aí não se dirá que não foi ferida a regra. Enfim, não há proteção real alguma”, esclarece o professor.
De acordo com os advogados trabalhistas Helena Cristina Bonilha, Wagner Luís Verquietini e Renato Santiago, “as propostas contidas no PL 6.787/2016 são nefastas para os trabalhadores e têm como objetivo, apenas, extrair ainda mais lucro para as grandes empresas”. Na avaliação dos advogados, isto fica evidente ao constatar que todas as propostas de mudanças estão no documento “Agenda Legislativa da Indústria 2017 Projetos da Pauta Mínima”. Para eles, a função da proposta é “demonizar” os trabalhadores, e responsabilizá-los mais uma vez pela crise, pela falta de empregos, pela informalidade e pela baixa competitividade.
Votação na Câmara
Na terça-feira, quando o pedido de urgência foi derrotado, a deputada Luiza Erundina (Psol-SP) sentou na cadeira da presidência da Casa. No dia seguinte, Rodrigo Maia retomou a questão e a urgência foi aprovada por 287 votos a 144, contra os 230 favoráveis da véspera (eram necessários 257 votos).
Roberto de Lucena, do PV, comenta que não “parece certo que todos os que votaram a urgência votem no mérito”, e que não sabe dizer o que pode acontecer. “A Câmara está nitidamente dividida. Na primeira tentativa, 230 votos totalizados não foram suficientes para aprovar a urgência. Ela foi aprovada, no entanto, por 287 votos na segunda tentativa. Não me parece certo que todos os que votaram a urgência votem no mérito. Hoje, não sei dizer o que pode acontecer”, disse o deputado ao Jornal do Brasil.
Paulo Pimenta diz que parlamentares devem utilizar todas as possibilidades oferecidas pelo Regimento para barrar o projeto. “Essa proposta chega a redefinir o conceito de trabalho escravo, então, como pode-se falar em modernização se estaremos voltando a uma época pré-CLT ou ao século 19? Infelizmente a prática inaugurada com o Eduardo Cunha de refazer as votações quando perdia voltou com o Rodrigo Maia. Derrotamos a proposta na terça, e na quarta ele pautou novamente em mais uma manobra dele e da base do governo Temer.”
“O que fez com que alguns deputados mudassem seus votos? Houve alguma oferta de cargos, alguma chantagem de Temer a esses deputados? É isso que queremos que venha à tona. De toda forma, acredito, sim, que há espaço para o projeto não ser aprovado”, diz Paulo Pimenta. “Durante a votação do mérito, o assunto tende a ganhar maior destaque e a pressão sobre os parlamentares vai aumentar. No dia 28 de abril, o Brasil vai parar com a greve geral, e a reação contra essa onda de retirada de direitos vai se intensificar. As ruas podem barrar esse projeto, e muitos parlamentares que ora votam com a base do governo, ora não, não vão querer ir para a cova junto com o Temer.”
Chico Alencar aponta para a expectativa de que o projeto seja votado antes na Comissão, onde o governo pode ganhar, ainda que não pela margem esperada. Já no Plenário, pode ser mais difícil. “Na comissão, essa margem de controle do governo [com oferta de cargos, por exemplo] é maior, mas no Plenário de 513 parlamentares é mais difícil. Depois, ainda vai pro Senado”, comenta o parlamentar.
“Este governo é muito instável, tem a Lava Jato, que funciona como uma guilhotina de 1/3 do ministério do governo Temer, da cúpula do Congresso Nacional, 1/6 do Senado, 1/5 da Câmara. É a pressa de quem está no corredor da morte [Lava Jato] e tem a última palavra, o último desejo para retirar direitos, facilitar o ambiente de negócios. Quem paga o preço é o trabalhador, que não está na alta hierarquia. Agora, ainda há chance, há uma resistência em curso”, conclui Chico Alencar.
Fonte: Jornal do Brasil
Texto: Pâmela Mascarenhas
Data original da publicação: 23/04/2017