Enfrentar a exploração exige ir além da regulamentação. Motoristas buscam saídas ao desemprego mas também jornadas flexíveis com direitos.
Felipe Moda
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 18/05/2023
No dia 15 de maio, os motoristas por aplicativo realizaram uma paralisação nacional, com maior participação nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa foi a primeira greve nacional dos trabalhadores por aplicativo durante a presidência Lula-III, pontuando alguns desafios que o atual governo terá no diálogo com estas categorias. Importante lembrarmos que no mês de janeiro os entregadores por aplicativo ameaçaram a realização de uma paralisação nacional, que não foi efetivada após o governo criar um canal de diálogo com lideranças da categoria. Devido às características do trabalho plataformizado, é difícil calcularmos a adesão à greve dos motoristas, porém ela é mais um exemplo que questiona visões existentes na esquerda sobre a impossibilidade de organizar trabalhadores informais e de que o conflito capital versus trabalho não seria mais estruturante na sociedade contemporânea.
Para pontuarmos o tamanho dessas categorias profissionais, estima-se, segundo pesquisa realizada por Manzano e Klein (2022)1, que cerca de 1,3 milhão de brasileiros são motoristas ou entregadores por aplicativo, sendo os motoristas mais de 800 mil trabalhadores. Ou seja, ainda que os serviços por aplicativo existam há menos de 10 anos em nosso país, estes trabalhadores representam duas das maiores categorias profissionais atualmente existentes, com a característica de estarem majoritariamente subordinadas a poucas plataformas (Uber, 99, iFood, Loggi e Rappi), configurando assim empresas de grande porte e que buscam constantemente burlar as leis trabalhistas vigentes.
As pautas listadas pelos motoristas foram agrupadas em torno de quatro eixos: 1. valorização do trabalho (tarifa mínima de R$ 10,00 por corrida e de R$ 2,00 por km rodado); 2. Aumento da segurança (verificação mais rigoroso dos passageiros para evitar contas fakes; diminuir o tempo que os motoristas são obrigados a esperar os passageiros antes de iniciar viagem; melhorias nos mecanismos de segurança feito pelas plataformas em cada corrida); 3. maior transparência dos dados em posse das plataformas (em especial sobre os números de casos de violência e assédios) e 4. melhoria nos atendimentos das plataformas, com canais mais eficientes e que funcionem 24 horas.
Analisando rapidamente o conjunto de pautas, nota-se que o maior enfrentamento dos trabalhadores é diretamente contra as empresas, não incorporando reivindicações que dizem respeito à regulamentação deste trabalho. E são pautas extremamente justas. Em relação aos seus ganhos, os valores repassados pelas plataformas aos motoristas não são reajustados desde 2016, ainda que o valor cobrado dos usuários tenha aumentado. Considerando que no último período tivemos aumentos dos preços dos veículos, autopeças e gasolina, além da alta taxa de inflação no período, os ganhos dos motoristas foram bastante afetados, obrigando-os a aumentarem suas jornadas de trabalho para pagarem suas contas. As demais pautas dizem respeito a segurança para exercerem suas atividades, com reivindicações que já duram mais de três anos2 e que não foram atendidas pelas plataformas. Vale pontuarmos que segundo a Pesquisa Fairwork3, que pontua as plataformas em diferentes países segundo os critérios de trabalho justo da OIT, o Brasil é um dos locais com piores condições de trabalho para esses profissionais, mesmo quando comparado com outros do Sul Global.
As principais empresas do setor não criaram canais de negociação oficiais com a categoria. A Uber buscou desmobilizar os motoristas chamando uma reunião com “influenciadores” dias antes da paralisação, onde apresentou algumas melhorias que estão realizando em seu sistema de funcionamento. Por sua vez, a 99 divulgou, em nota oficial, que adotou há um tempo soluções permanentes para elevar os ganhos dos trabalhadores. Ou seja, existem fortes indícios de que o descontentamento com as plataformas devem continuar e que novas mobilizações possam ocorrer no próximo período.
Os desafios do governo Lula-III para regular os trabalhos plataformizados
Está em curso um processo mundial de debates sobre se e como os governos nacionais devem regular os trabalhos plataformizados, movimento que atinge tanto países do Norte quanto do Sul global. Como exemplos, podemos citar as diretrizes para os trabalhos por plataformas escrita pela Comissão da União Europeia, a qual recomendou aos países membros o reconhecimento destas atividades como relações de emprego, e a recente proposta de Reforma Trabalhista do governo colombiano, que busca garantir alguns direitos trabalhistas para os entregadores por aplicativo. Somente pela análise desses dois exemplos já surgem algumas questões sobre como regular os trabalhos plataformizados: devemos focar nos entregadores e motoristas ou regular todos os tipos de plataformas? Cada categoria profissional deve ter uma legislação específica? Não existe consenso sobre essas questões e é importante um espaço amplo de formulação sobre tais temas, já que corriqueiramente novas profissões são plataformizadas e os desafios para a regulação se complexificam.
Desde a sua campanha eleitoral o atual presidente Lula já indicava que o tema das plataformas digitais teria centralidade em seu governo. A primeira tentativa de regular parte das empresas proprietárias de plataformas digitais, ainda que não as de trabalho, aconteceu no recente debate sobre o PL das Fake News, no qual ficou evidenciado o forte poder de lobby das Big Techs. Sobre o tema dos trabalhos plataformizados especificamente, Luiz Marinho, Ministro do Trabalho e Emprego, recentemente declarou que este debate foi adiado para o segundo semestre de 2023 devido às grandes diferenças existentes entre os atores envolvidos.
De todo modo, Lula e Marinho já declaram que a principal prioridade do governo é a inclusão dos trabalhadores plataformizados na seguridade social via INSS. Vale assinalar que tal mecanismo já é possível para trabalhadores autônomos através do MEI, avançando muito pouco na constituição de direitos. Além disso, ambos também já expressaram que possuem duas preocupações centrais sobre esses trabalhadores: as longas jornadas de trabalho e as baixas remunerações, sendo estes pontos de divergências de como devem ser regulamentados os trabalhos plataformizados.
As plataformas já se movimentam para que seus interesses sejam preservados nesta disputa. A iFood está na linha de frente nas negociações sobre a regulamentação das plataformas de trabalho, com um PL já apresentado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Nele, a empresa busca garantir que a relação com os entregadores seja enquadrada como comercial (ao invés de trabalhista), além da inclusão destes trabalhadores no INSS. Com isso, a empresa busca jogar uma pá de cal no debate sobre a existência ou não de vínculo empregatício na relação.
Do lado dos trabalhadores, inexiste até o momento uma proposta mais unitária dos motoristas de como regular sua profissão, porém existem diversas formulações feitas por lideranças que visam incorporá-los a alguns direitos trabalhistas. Já entre os entregadores, temos recentemente a constituição da Aliança Nacional dos Entregadores, o resultado de uma articulação que vem desde o “Breque dos Apps” e que, em sua carta de princípios, defendem pautas como: formalização das relações de trabalho; garantias de remuneração e de jornada (com descanso semanal); que as plataformas paguem pelos equipamentos usados no trabalho; a garantia de auxílio doenças e o combate aos bloqueios arbitrários, entre outras4.
Em nossa opinião, o enfrentamento ao poder das grandes plataformas por parte de um governo de esquerda (ou que pelo menos busque frear a superexploração do trabalho) passa por priorizar o diálogo com os trabalhadores, bem como com as suas entidades representativas. O primeiro passo deste diálogo envolve compreender o que levou esses trabalhadores a aderirem a estes empregos e o que valorizam na relação em que estão imersos. As análises de diversas entrevistas com trabalhadores plataformizados indicam que muito dele se cadastraram nas plataformas principalmente por três motivos: vivenciarem situações de desemprego ou de subutilização da sua força de trabalho (quando desejam trabalhar por mais horas, mas não encontram essa possibilidade); estarem anteriormente em empregos com baixos salários (e a expectativa de que nas plataformas seus rendimentos aumentariam) e a busca por trabalho com jornadas flexíveis, que os possibilitem conciliar seus dias com outros empregos ou com compromissos pessoais. A flexibilidade de horários, inclusive, é justamente a principal qualidade apontada pelos trabalhadores nesta modalidade de trabalho.
Assim, diminuir o poder das plataformas de trabalho passa por três caminhos concomitantes. O primeiro deles é o de combate ao desemprego, a valorização salarial nas demais profissões (o que está sendo feito pelo atual governo com a política permanente de valorização real do salário mínimo) e a ampliação dos direitos trabalhistas, que foram ainda mais deteriorados com a Reforma Trabalhista de 2017. Com tais medidas, os empregos plataformizados passam de ser a “única das” para “uma das” opções de trabalho para uma parcela da classe trabalhadora. Isso fará com que as empresas plataformizadas deixem de encontrar um terreno fértil para a sua proliferação, pois passarão a enfrentar um mercado de trabalho mais regulado e que propicie melhores rendimentos aos trabalhadores.
O segundo caminho passa pela criação de iniciativas que busquem garantir os direitos previstos na CLT a estes trabalhadores, ao mesmo tempo em que sejam mantidos os pontos por eles valorizados. Isso não parte da necessidade de garantir menos direitos trabalhistas, já que todos os elementos fundamentais para a constituição de relação empregatícia já foram apontados em diversos estudos. Para tanto, é necessário atacar o centro do gerenciamento algorítmico que organiza os trabalhos plataformizados, retirando a remuneração vinculada a produtividade e promovendo um salário baseado na hora trabalhada (independente do trabalhador ser ativado pelo aplicativo), ao mesmo tempo em que se pensem formas de garantir jornadas de trabalho flexíveis, a manutenção dos direitos trabalhistas e a liberdade sindical. O direito de greve e de associação deve ser um dos pilares destas iniciativas, pois além de combater o poder das plataformas terá como função aumentar os mecanismos de solidariedade nas categorias, rompendo com a lógica de trabalho imposta pelas empresas baseada na luta constante de todos contra todos, água no moinho para projetos de extrema direita.
A realização destas iniciativas serão verdadeiros braços de ferro e as plataformas se valerão de todas as medidas para barrar os avanços, inclusive com ameaças de parar de operar no país. Temos que temer estas ameaças? A princípio sim, pois se elas se concretizarem teremos o aumento da taxa de desemprego. Por isso, o governo deve se preparar desde já para a possibilidade. Atualmente existem tecnologias disponíveis para criação de plataformas cooperativas ou estatais, que podem seguir com a existência dos empregos gerados pelas empresas. Apoiar as alternativas existentes que caminham neste sentido, além de planejar plataformas mais robustas com base nestes princípios, é o terceiro caminho necessário para o atual governo diminuir o poder das grandes empresas do setor.
Notas
1 Em 2019 os motoristas paulistas organizaram o movimento #MotoristasPelaVida, pedindo mais segurança no trabalho. As suas pautas podem ser encontradas: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/os-uberizados-brasileiros-voltam-a-luta/
2 O relatório Fairwork Brasil está disponível em: https://fair.work/wp-content/uploads/sites/17/2022/03/Fairwork-Report-Brazil-2021-PT-1.pdf
3 O histórico de criação da Aliança Nacional dos Entregadores e a lista completa de suas reivindicações pode ser encontrada em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/trabalho-digno-novos-passos-da-luta-dos-entregadores/
4 Manzano, M.; Krein, A.. Dimensões do trabalho por plataformas digitais no Brasil. In: Machado, S.; Zanoni, A. (Org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba/EdUFPR, 2022.
Felipe Moda é doutorando do PPGCS-Unifesp e membro do Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho (GPCT). Desenvolve pesquisas sobre os impactos da plataformização de trabalho nas condições de trabalho e a organização política dos trabalhadores subordinados as plataformas digitais.