Recuperação do mercado de trabalho com precarização e perda de renda

Em um cenário cercado por incertezas quanto à dinâmica da recuperação da atividade econômica, cabe atentar para a intensidade e a qualidade da recuperação do emprego.

Por Carlos Henrique Horn e Virginia Rolla Donoso

Desde o início da pandemia da Covid-19, o mercado de trabalho brasileiro tem oscilado em conformidade com as curvas de casos e de mortes decorrentes da doença. Foi assim no choque inicial ocorrido no segundo trimestre de 2020, quando a ocupação sofreu um baque de enormes proporções, na recuperação observada no segundo semestre, e, por fim, na virtual estagnação associada ao recrudescimento da pandemia nos primeiros meses de 2021. A partir de abril deste ano, com o firme avanço da vacinação, presenciou-se um aumento contínuo no nível geral do emprego. Neste novo contexto sanitário, pode-se conjecturar que o desempenho do mercado de trabalho passe a obedecer, daqui para frente, sobretudo a condicionalidades mais especificamente econômicas. Assim, num cenário cercado por incertezas quanto à dinâmica da recuperação da atividade econômica, cabe atentar para a intensidade e a qualidade da recuperação do emprego.

Os dados gerais do crescimento recente na ocupação e suas consequências são positivos [1]. Segundo estimativas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (PNAD Contínua), o número de pessoas ocupadas aumentou 3,6% no trimestre encerrado em julho relativamente ao encerrado em abril. Isso fez com que prosseguisse o movimento de retorno ao mercado de trabalho, com aumento trimestral na taxa de participação (de 56,9% para 58,2% da população em idade de trabalhar), e diminuísse o contingente de trabalhadores desempregados em 676 mil pessoas (-4,6%). Na mesma batida, a taxa de desemprego recuou de 14,7% para 13,7% da força de trabalho.

O melhor desempenho da ocupação – em especial, quando contrastado com a péssima situação observada em meados do ano passado – ainda não foi suficiente, todavia, para recuperar de modo integral as condições do mercado de trabalho vigentes antes do início da crise sanitária. Com efeito, o total da ocupação em julho era 4.248 mil pessoas inferior ao do ano de 2019. Uma parcela dos trabalhadores se retirara da força de trabalho (2.837 mil pessoas) e os demais nele permaneceram em busca de trabalho, levando a um acréscimo de 1.510 mil pessoas no desemprego nessa comparação.

Ademais, esse melhor desempenho da ocupação desde abril vem ocorrendo naqueles segmentos de inserção mais frágil no mercado de trabalho, notadamente nos segmentos do emprego no setor privado sem carteira, dos trabalhadores domésticos sem carteira e dos trabalhadores por conta própria (com e sem CNPJ). São formas de inserção na ocupação caracterizadas por rendimentos menores e mais oscilantes, incluindo períodos de renda nula ou próxima a zero, como a conjuntura da pandemia bem demonstrou. O Gráfico 1 mostra as variações trimestrais e interanuais no número de ocupados segundo sua posição na ocupação.

O predomínio das formas mais inseguras de trabalho na retomada do mercado em 2021 tem sido acompanhado pela redução no poder aquisitivo dos rendimentos. O rendimento real médio habitualmente recebido no trabalho principal diminuiu 2,9% no trimestre e 8,9% em comparação com julho de 2020, dando prosseguimento à trajetória declinante observada desde o fim do ano passado. Há pelo menos três fatores determinantes dessa tendência. Em primeiro lugar, a média responde por um efeito estatístico de mudança na estrutura ocupacional. Dado que a elevação no número de ocupados vem ocorrendo, em ritmo mais acelerado, naquelas formas de inserção de menores rendimentos, o aumento do peso desses estratos afeta negativamente a estatística do rendimento médio. O segundo fator refere-se à dinâmica dos salários nominais na negociação coletiva de trabalho, onde se constata uma piora generalizada dos resultados, com ampla proporção de acordos fixando reajustes abaixo da inflação.

O terceiro fator está associado à aceleração inflacionária em curso. A partir de junho de 2020, quando variação do IPCA e do INPC acumulada em doze meses havia caído a taxas próximas a 2%, a alta nos índices de preços ao consumidor tem mantido trajetória de elevação contínua. No mês de julho de 2021, as taxas foram de, respectivamente, 9,85% e 8,99%. O ritmo mais acelerado do aumento dos preços atingiu os rendimentos do trabalho em todas as formas de inserção ocupacional, como se observa no Gráfico 2, com a única exceção da variação trimestral do rendimento dos empregadores com CNPJ.

Portanto, as características predominantes de crescimento da ocupação precária e de redução no poder aquisitivo dos rendimentos do trabalho ofuscam as boas notícias relacionadas ao aumento no número de ocupados e à diminuição no desemprego, assinalando uma retomada do mercado de trabalho cuja continuidade é duvidosa frente à inflação alta e à insegurança política.

Notas

[1] Uma avaliação mais detalhada do desempenho recente do mercado de trabalho brasileiro está na seção 7 da Carta de Conjuntura do Núcleo de Análise da Política Econômica (NAPE), da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Ver: https://www.ufrgs.br/fce/nape/

Carlos Henrique Horn é economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em Industrial Relations pela London School of Economics and Political Science.

Virginia Rolla Donoso é economista e trabalha no site Democracia e Mundo do Trabalho. É mestre em Economia e especialista em Relações de Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Crédito da imagem: Edvard Munch

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