Quem realiza o serviço que ninguém quer abrir mão de usufruir?

Fotografia: Pablo Valadares/Agência Senado

Análise sobre a invisibilidade e o trabalho mal remunerado.

Ana Lúcia Stumpf González

Fonte: Jota
Data original da publicação: 30/05/2020

Em algum momento, no início da pandemia, declarou-se que estávamos todos “no mesmo barco”, uma forma de prever que todos sofreríamos os efeitos negativos da crise do coronavírus: estaríamos diante de uma situação que afetaria a toda a sociedade e dela exigiria uma resposta solidária e empática. Mas a realidade prontamente demonstrou que não era bem assim. Não há nada de democrático e bem distribuído quanto aos efeitos da pandemia.

Enquanto as estatísticas já demonstram que a população negra é desproporcionalmente afetada pelo risco de morte por coronavírus (em duas semanas no final do mês de abril, o número de mortes por covid-19 cresceu 5 vezes entre pessoas negras, enquanto havia crescido 3 vezes entre pessoas brancas), já houve quem comemorasse que a taxa de adoecimento entre as classes mais favorecidas apresentava redução: impacto evidente do privilégio de quem pode cumprir quarentena em casa, no conforto do home office, com pausa para o delivery de comida e post na rede social com hashtag #ficaemcasa.

Enquanto a parcela privilegiada da sociedade fica protegida em casa, a parcela da população que sobrevive no subemprego, em funções de menor remuneração ou em atividades ameaçadas pela crise, se desespera em busca de sustento, potencializando sua exposição ao vírus.

A coronacrise evidenciou a indispensabilidade das atividades mais mal remuneradas e invisibilizadas da estrutura social: as atividades de limpeza, de cuidado e de entrega de produtos. Em comum, além da baixa contraprestação financeira, essas atividades apresentam o traço da informalidade. Quando se fala em trabalho doméstico, são 80% de profissionais sem carteira assinada, 92% dos quais são mulheres, em sua maioria negras, a maior parte trabalhando em atividade de limpeza e para um único empregador. Para elas, a sistemática de trabalho pouco se alterou desde a abolição da escravidão. Continuam trabalhando praticamente em troca de moradia e alimentação, sem direitos trabalhistas e expostas a riscos.

Uma das primeiras vítimas fatais da pandemia foi justamente uma empregada doméstica, contagiada pela empregadora que havia retornado da Itália sem cumprir quarentena. Mesmo se expondo a risco de contágio, muitos empregadores não abrem mão do trabalho doméstico, e se multiplicam decretos estaduais prevendo que o trabalho doméstico é “essencial”, portanto, deve seguir em tempos de pandemia. Muitos daqueles que dispensam o comparecimento do trabalhador doméstico não mantém nenhum pagamento, demonstrando total falta de empatia para com a pessoa a quem até então confiavam a chave de casa. “É como se fosse da família”, dizia esse empregador antes da pandemia, sobre a empregada. Agora, diante da crise, com adoecimento e fome à espreita, esse laço quase familiar se mostra estranhamente inútil.

A atividade de limpeza vem associada à invisibilidade da pessoa que a realiza, mesmo quando é realizada fora do ambiente doméstico. As “terceirizadas da limpeza” são aquelas senhoras que não possuem nome, e são substituídas constantemente, sem qualquer explicação.

Além da equipe de limpeza, as tarefas auxiliares nos ambientes hospitalares também não são lembradas nas já corriqueiras campanhas de agradecimento a profissionais de saúde. Antes de o paciente ser atendido por médicas, e médicos, percorreu os corredores do hospital e foi devidamente assistido por técnicas e técnicos de enfermagem, profissionais entre os mais mal remunerados dessa estrutura. Ainda na porta do hospital, o paciente foi amparado por maqueiros, ouvido por recepcionistas, atendido por vigilantes.

Todas essas funções costumam ser esquecidas nas peças publicitárias, mas fazem parte de uma estrutura de apoio indispensável ao funcionamento das instituições de saúde. Entender o porquê do desapreço pelas atividades de base nas estruturas organizacionais requer, claro, um estudo aprofundado de sociologia do trabalho, mas se podem identificar algumas pistas num rápido olhar em direção ao nosso passado.

O trabalho nunca foi valorizado em nossa sociedade, a exploração de outros seres humanos, por outro lado, nunca chegou a ser totalmente rechaçada. Há pouco mais de um século, mesmo famílias de classe média possuíam “escravos de ganho”, pessoas que saíam à rua para vender produtos (pão, por exemplo) a fim de angariar renda para seus donos. Não havia nenhum constrangimento por parte desses senhores que retinham a renda auferida por meio do trabalho de outras pessoas, seus escravos.

No topo invertido da pirâmide do trabalho superexplorado, atualmente, temos a figura do entregador “de aplicativo”. Aquele rapaz que passa o dia em cima de uma moto ou uma bicicleta, muitas vezes alugada, carregando refeições na sua mochila, num eterno zigue zague pelas ruas. Em tempos de quarentena, em que as entregas cresceram exponencialmente, algumas pessoas se reconfortam imaginando que ao utilizar esses serviços estão ao menos contribuindo com o sustendo das famílias desses entregadores. Mas qual não é nossa surpresa quando tomamos conhecimento de que o valor pago a esses trabalhadores na verdade vem caindo, justamente pelo aumento da demanda.

O “algoritmo” do aplicativo tem seus requintes de crueldade. Quanto mais gente precisa trabalhar e sai às ruas cadastrado, menor é o valor do serviço, e, assim, mais horas esse trabalhador precisa estar na rua, para ganhar o mínimo suficiente para alimentar a família. Um serviço essencial, quase divinizado em anúncios que mostram o quanto esse trabalhador está “salvando” o dia de quem não pode ou não precisa sair de casa, e ao mesmo tempo uma atividade que não traz qualquer perspectiva de futuro ou crescimento para esse trabalhador. Se ele se esforçar bastante, terá o direito de seguir vinculado ao aplicativo, esse é o prêmio no fim do dia.

A crise humanitária, principalmente de saúde e econômica, inaugurada com a pandemia não pode ser um sacrifício inútil. Precisa despertar em cada pessoa a perspectiva da importância do trabalho de cada um e cada uma e a necessidade de valorização da dignidade do indivíduo trabalhador. O que mais nos faz falta e o que mais nos socorre neste momento? Entre uma postagem e outra nas redes sociais para exibir nossas videochamadas com entes queridos, nossas descobertas culinárias e nossas “lives” preferidas, não custa nada reservar alguns momentos para repensar a “normalidade” a qual pretendemos ou não voltar em alguns meses.

Ana Lúcia Stumpf González é procuradora do Trabalho, Vice Coordenadora Nacional Coordigualdade.

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