Os campos do entretenimento e da política dominam as notícias, enquanto o assédio e agressões sexuais a trabalhadoras domésticas são questões que geralmente ficam sem resposta.
Sarah Jaffe
Fonte: Esquerda.net, com Dame
Tradução (português de Portugal): Esquerda.net
Data original da publicação: 22/07/2018
June Barrett, cuidadora domiciliar em Miami, estava há meses sem trabalho, preocupada com o pagamento da renda da casa ou com a compra da medicação de que necessita, quando a sua agência a colocou finalmente com um novo cliente. Ficou tão aliviada, diz, que quando o cliente lhe pediu que fosse para a sua cama na primeira noite de trabalho, não suspeitou o que viria a seguir. “Ele disse: ‘Não, deite-se na cama comigo’. Foi aí que começou e então começou a tocar-me. Depois disso, começaram os beijos forçados. Foi horrível.”
“O assédio sexual acontece diariamente com as trabalhadoras domésticas. Não falei sobre isso durante muitos anos”, disse-me Barrett recentemente.
Num trabalho instável e mal remunerado, como é a assistência domiciliar à saúde, explicou Barrett, muitas vezes os trabalhadores estão à vontade com os seus clientes, especialmente se viverem no local onde prestam o serviço. Num outro emprego, foi submetida a abusos racistas e forçada a dormir num sofá ao invés de num quarto. Mas o assédio sexual pode ser particularmente humilhante, especialmente se, como aconteceu com Barrett, a trabalhadora não puder sair imediatamente. “Quando contei a história recentemente”, disse, “duas raparigas chegaram-se até mim e disseram: «Não entendo. Por que não te foste embora? Eu teria saído». Elas não compreendem. Eu estava desempregada, o que significa que a renda de casa estava por pagar, e preciso de medicação para sobreviver”.
Tal como outras trabalhadoras que têm de escolher entre um chefe sexualmente predatório e a realidade da renda da casa que tem de ser paga, muitas vezes as cuidadoras profissionais precisam fazer estes cálculos desagradáveis para sobreviver. Mas a situação é complicada quando o agressor não é realmente um chefe, mas sim um cliente, um paciente, alguém de quem a trabalhadora está encarregue de cuidar. “Eu sou responsável por estas vidas quando estou com eles”, disse Barrett. “Eu sou totalmente responsável por eles até à chegada do turno seguinte.” Então o que é suposto fazer-se quando o cliente não consegue manter as mãos ou a boca para si mesmo?
Cerca de nove em cada dez cuidadores domésticos profissionais são mulheres e mais de metade são mulheres negras. Estima-se que 2,9 milhões de pessoas, como June Barrett, trabalhem em casas como prestadoras de cuidados de saúde e cuidados pessoais, uma tipo de trabalho que [nos Estados Unidos da América] existe sob uma manta de retalhos de proteções laborais a nível federal e estadual e é paga por uma rede de fundos públicos e privados. Tudo isto significa que é muito fácil para os trabalhadores permanecerem desprotegidos pela lei.
O trabalho doméstico, a partir do qual surge o trabalho dos cuidadores, foi excluído das proteções laborais da época do New Deal, porque era à época uma área de trabalho maioritariamente ocupada por mulheres negras, fora da escravidão há apenas uma ou duas gerações. Juntamente com os trabalhadores agrícolas – principalmente negros – as mulheres que limpavam as casas de outras pessoas e cuidavam dos filhos de outras pessoas estavam isentas do salário mínimo e do pagamento de horas extras. O legado racista dessas exclusões combinou com uma suposição secular de que o trabalho das mulheres não é realmente trabalho, e persiste até hoje – em 2014, em Harris v. Quinn, o Supremo Tribunal votou por maioria para colocar os trabalhadores domésticos pagos com fundos públicos numa categoria separada dos outros trabalhadores. Nas palavras do juiz Samuel Alito, eram “funcionárias públicas parciais”. O que acontecia em casa, argumentavam os advogados do caso, não era realmente trabalho, e os sindicatos não tinham o direito de representar trabalhadores cujo local de trabalho era o domínio particular de alguém.
O cuidado que tais trabalhadores fornecem não é visto como uma profissão; ao invés, presume-se que faz parte da essência natural destas trabalhadoras. De acordo com esta lógica sexista, as mulheres nascem mais carinhosas, cuidadoras, gentis e pacientes. Na verdade, como escreveu Lisa C. Ruchti no seu estudo de enfermagem, Catheters, Slurs and Pickup Lines: Professional Intimacy in Hospital Nursing, os cuidados são “uma série de atos íntimos” realizados com propósito e profissionalismo por parte do trabalhador. Quanto mais capaz for o trabalhador, mais natural será o seu cuidado. “Em vez de definir o cuidado como um traço de personalidade que alguns indivíduos possuem”, escreveu Ruchti, “esta análise revela que ‘ser cuidador’ é um ato social que muda nas intersecções estruturais e ideológicas de raça, género e nacionalidade”.
Por outras palavras, as mesmas suposições que levaram a nossa sociedade a desvalorizar o trabalho de mulheres como June Barrett, encorajam os clientes a tratá-las como se elas estivessem lá para o seu prazer, seja ele qual for. No entanto, falar sobre o assédio sexual tem sido difícil para os cuidadores profissionais, escreveu Ruchti, porque desafia a nossa ideia do que é um assediador. Enfermeiros e outros cuidadores que trabalham fora de hospitais ou de outras instalações certamente enfrentam o assédio patronal, mas com o trabalho de assistência domiciliar, a identidade de “empregador” e “paciente” está estranhamente interligada. No sistema de saúde dos E.U.A., baseado nos lucros, salientou Ruchti, porque os cuidados de saúde são definidos pelo capital e os pacientes são tratados como consumidores, estes podem sentir-se no direito a ter mais serviços porque estão a pagar por eles. E quando o trabalhador está no que é visto como um degrau inferior do campo de cuidados, fazendo o trabalho “sujo” que não requer formação na área da saúde, os clientes e outras pessoas assumem que estas são descartáveis.
“Acreditam que o trabalho com os idosos é só limpar rabos”, disse Barrett. “As pessoas vêem pessoas com menos educação formal e, portanto, para elas o trabalho que fazemos não tem valor algum. O meu trabalho tem muito valor. É um trabalho muito importante ”. É essa associação a “intimidade e sujidade ”, como disse Eileen Boris, professora e chefe do Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, que leva os clientes a assediar as cuidadoras e as cuidadoras a terem poucos recursos legais.
O facto de o assédio sexual ser uma expressão de poder era, até agora, uma ideia comum, mas com os cuidadores a dinâmica de poder é também complicada. Barrett tem a vida do seu cliente nas suas mãos; se ela escolhesse sair, o que lhe aconteceria? No entanto, ele controlava a sua capacidade de receber o salário, o que, por sua vez, significava que ela poderia comprar os medicamentos de que depende. Essa interdependência torna o assédio sexual ainda mais complicado – os pacientes podem assediar como forma de lidar com o desconforto inerente ao sentimento de dependência e restabelecer o domínio numa dinâmica de género e por vezes também racializada.
Então, o que se pode fazer?
As proteções do Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964 só se aplicam aos trabalhadores cujos empregadores tenham quinze ou mais funcionários. Isso deixa de fora as empresas de menores dimensões, bem como os trabalhadores independentes – como é o caso de muitas trabalhadoras domésticas e cuidadores. O Centro Nacional de Direito da Mulher sugere a alteração dessas leis para se aplicarem a todos os funcionários e trabalhadores independentes.
Proteger os trabalhadores imigrantes que denunciam episódios de assédio é também uma parte importante da solução. “Muitas vezes está-se a escolher entre arriscar perder a sua família e própria segurança física”, disse Ai-jen Poo, diretora da Aliança Nacional dos Trabalhadores Domésticos (NDWA) em 2015, e os riscos só aumentaram com Trump na presidência. Os empregadores sem escrúpulos podem usar esse medo para se aproveitarem dos trabalhadores.
Mas, para June Barrett, também é importante que trabalhadores como ela agarrem o seu destino pelas próprias mãos e se organizem. Barrett está organizada na NDWA e no Centro de Trabalhadores de Miami e tem falado sobre a reforma do sistema de saúde e a necessidade de direitos laborais para os trabalhadores domésticos e cuidadores. Em Nova York, Havai, Califórnia, Massachusetts, Oregon, Connecticut e Illinois, a organização das trabalhadoras domésticas levou à aprovação nesta legislatura da Carta de Direitos dos Trabalhadores Domésticos. E em 2015, graças a uma organização semelhante, o governo de Obama eliminou a possibilidade de as agências privadas de assistência domiciliar obterem lucros enquanto pagavam aos seus trabalhadores menos do que o salário mínimo.
Este tipo de organização, disse Poo, foi uma oportunidade para colocar as trabalhadoras domésticas no centro de uma discussão sobre que tipo de economia criar no futuro. “Se é possível desvalorizar qualquer forma de trabalho, isso cria uma atração gravitacional para baixo na nossa economia. Isso possibilita que outros setores criem exclusões e isenções especiais e, de repente, estamos a olhar para uma economia em que 30% da força de trabalho trabalha em regime contingente e instável de trabalho temporário e a tempo parcial.”
Em Seattle, Elvia, que não quis revelar o seu apelido por receio de represálias, fez parte da organização de uma nova Lei de Direitos dos Trabalhadores Domésticos naquela cidade. Parte de sua motivação para participar na campanha foi ter conhecimento sobre o assédio sexual que as suas colegas enfrentavam – uma mulher chegou à casa onde trabalhava para encontrar o empregador nu, esperando por ela no quarto. Outra amiga foi seguido pela casa por um empregador, enquanto este se masturbava. Para essas mulheres também a escolha era simples: sair e perder o emprego, ou arriscar a sua segurança ao ficar.
Com a Casa Latina, um centro de trabalho que organiza a comunidade latina de Seattle, a Working Washington, uma organização de trabalhadores sem fins lucrativos que cresceu em parte da campanha Fight for $15, de Seattle, e apoio do SEIU Local 775, um sindicato que representa profissionais de saúde, Elvia e outras trabalhadoras foram até à Câmara Municipal da cidade no dia 15 de março para pedir ação. Construíram uma exposição de casas feitas de fraldas e luvas de borracha, representando todos os cuidadores e empregados de limpeza da região de Seattle, que atualmente não têm proteção laboral. “Como eu não tenho esses direitos, não pude ficar durante todo o evento, não tive um dia de folga, tive que ir trabalhar”, comentou Elvia.
Estão a exigir uma legislação que proteja trabalhadores imigrantes como a Elvia de discriminação e assédio, quer trabalhem a tempo inteiro ou parcial, ou sejam ou não trabalhadores internos, que exija contratos por escrito para que trabalhadores e empregadores tenham o mesmo entendimento sobre os termos de contratação. Porém, o maior desafio desta proposta de lei está na sua fiscalização, e nessa frente os trabalhadores e suas organizações estão a analisar um modelo que inclua trabalhadores domésticos, bem como empregadores e autoridades municipais, que se reuniria para estabelecer diretrizes e incluir os trabalhadores na decisão de como aplicar a legislação.
Tais proteções legais não acabariam como por magia com o problema do assédio sexual – isso levará tempo e uma revolução na maneira como vemos e tratamos as mulheres, particularmente mulheres de minorias étnicas, no trabalho e em qualquer outro lugar. Mas, por enquanto, temos um conjunto de circunstâncias que dão aos empregadores e clientes todo incentivo para supor que podem abusar dos trabalhadores que cuidam deles e de suas famílias, e esperam que esses trabalhadores continuem a aparecer no trabalho com um sorriso no rosto.
Sarah Jaffe é repórter do Nation Institute e autora do livro Necessary Trouble: Americans in revolt (“Problema necessário: norte-americanos em revolta”). Ela é co-apresentadora do podcast “Belabored” da revista Dissent, e contribui para publicações como The New York Times, The Nation, The New Republic, entre outras.
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