Implodir um sistema bancário irredimível que trabalha para os proprietários e acionistas às custas da maioria.
Yanis Varoufakis
Fonte: A Terra é Redonda, com Project Syndicate
Tradução: Daniel Pavan
Data original da publicação: 29/03/2023
A crise bancária, desta vez, é diferente. Ela é, na verdade, pior do que a de 2007-08. Naquela época, podíamos colocar a culpa pelo colapso em sequencial dos bancos nas fraudes generalizadas, na disseminação de empréstimos predatórios, na colusão entre agências de classificação de risco e nos banqueiros desonestos que vendiam derivativos suspeitos – tudo isso possibilitado pelo então recente desmantelamento do regime regulatório por políticos próximos a Wall Street, como o secretário do tesouro Robert Rubin. Os colapsos bancários de hoje não podem ser atribuídos a nada disso.
Sim, o Silicon Valley Bank foi tolo o suficiente para assumir riscos extremos com a taxa de juros enquanto servia, majoritariamente, depositários não assegurados. Sim, o Credit Suisse tem um histórico sórdido com criminosos, fraudadores e políticos corruptos. Entretanto, diferentemente de 2008, nenhum delator foi silenciado, os bancos aderiram (mais ou menos) às regulações fortalecidas do pós-2008 e seus ativos eram relativamente sólidos. Mais ainda, nenhum dos reguladores nos Estados Unidos e na Europa poderia afirmar com credibilidade – como fizeram em 2008 – que foi pego de surpresa.
Na verdade, as entidades reguladoras e os bancos centrais sabiam de tudo. Eles tinham pleno acesso aos modelos de negócios dos bancos. Eles podiam ver claramente que estes modelos não sobreviveriam à combinação de aumentos significativos nas taxas de juros de longo prazo e um súbito saque de depósitos. Mesmo assim, não fizeram nada.
Os agentes fracassaram em prever a fuga apavorada em massa de depositários grandes, portanto não assegurados? Talvez. Mas a verdadeira razão da inação dos bancos centrais quando confrontados com os frágeis modelos de negócios dos bancos é ainda mais perturbadora: foi a resposta deles ao crash financeiro de 2008 que deu à luz a estes modelos de negócios – e os dirigentes sabiam disso.
A política pós-2008 de austeridade severa para a maioria e socialismo estatal para os banqueiros, praticada simultaneamente na Europa e nos Estados Unidos, teve dois efeitos que moldaram o capitalismo financeiro dos últimos 14 anos. Em primeiro lugar, ela envenenou o dinheiro do Ocidente. Mais precisamente, garantiu que não há mais uma única taxa nominal de juros capaz de restaurar o balanço entre a demanda de dinheiro e a oferta de dinheiro enquanto, ao mesmo tempo, também previne uma onda de quebra dos bancos.
Em segundo lugar, uma vez que era senso comum que nenhuma taxa de juros particular poderia alcançar, ao mesmo tempo, a estabilidade dos preços e a estabilidade financeira, os banqueiros ocidentais assumiram que, se e quando a inflação desse novamente às caras, os bancos centrais aumentariam as taxas de juros enquanto os socorreriam. Eles estavam certos: é exatamente isso que estamos testemunhando agora.
Confrontados com a dura escolha entre conter a inflação ou salvar os bancos, alguns comentadores veneráveis estão apelando aos bancos centrais para que façam as duas coisas: continuem aumentando as taxas de juros enquanto dão continuidade à política pós-2008 de socialismo para os bancos. Política que, caso o resto permaneça inalterado, é a única maneira de se evitar que os bancos caiam feito peças de dominó. Apenas esta estratégia – apertar o nó monetário no pescoço da sociedade enquanto esbanjam resgates no sistema bancário – pode, simultaneamente, servir aos interesses dos credores e dos bancos. Ela também é uma maneira segura de condenar a maioria das pessoas a um sofrimento desnecessário (causado pelo aumento evitável dos preços e do desemprego) enquanto também se semeia a próxima conflagração bancária.
Não esqueçamos, sempre soubemos que os bancos foram planejados para não serem seguros e que, juntos, eles formam um sistema constitutivamente incapaz de cumprir as regras de um mercado que funcione bem. O problema é que, até agora, não tivemos uma alternativa: os bancos eram os únicos meios de se levar o dinheiro até as pessoas (por meio de caixas, agências, caixas eletrônicos e assim por diante). Isso tornou a sociedade refém de uma rede de bancos privados que monopolizava os pagamentos, as poupanças e o crédito. Hoje, no entanto, a tecnologia nos oferece uma alternativa esplêndida.
Imagine que o banco central fornecesse a todos uma carteira digital gratuita – efetivamente, uma conta bancária gratuita com juros equivalentes à taxa overnight do próprio banco central. Dado que o sistema bancário atual funciona como um cartel antissocial, o banco central poderia muito bem utilizar uma tecnologia baseada em nuvem para oferecer transações e poupanças digitais gratuitas para todos, com sua receita líquida financiando bens públicos essenciais.
Libertadas da compulsão por manter seu dinheiro em um banco privado, e gastar até o pescoço com pagamentos pelas transações usando seu sistema, as pessoas estariam livres para escolher se e quando usariam instituições privadas que oferecem uma intermediação de risco entre poupadores e tomadores de empréstimos. Até mesmo nestes casos, seu dinheiro continuaria residindo em perfeita segurança na caderneta do banco central.
A irmandade cripto me acusará de estar impondo um banco central Big Brother que vê e controla todas as transações que fazemos. Deixando sua hipocrisia de lado – afinal, esta é a mesma turma que demandou um resgate imediato de seus banqueiros do Silicon Valley pelo banco central – é importante mencionar que o Tesouro e outras autoridades estatais também já tiveram acesso a cada uma de nossas transações. A privacidade poderia ser mais bem assegurada se as transações fossem concentradas nos registros do banco central sob a supervisão de algum tipo de “Júri de Supervisão Monetária” composto por cidadãos selecionados aleatoriamente e por experts de uma ampla gama de profissões.
O sistema bancário que hoje damos por garantido é incorrigível. Essa é a notícia ruim. Mas não precisamos mais depender de qualquer rede bancária privada, rentista e socialmente desestabilizadora, ao menos não da maneira como dependemos até aqui. Chegou a hora de implodir um sistema bancário irredimível que trabalha para os proprietários e acionistas às custas da maioria.
As mineradoras descobriram de forma dura que a sociedade não lhes deve um subsídio permanente para degradar o planeta. Chegou a hora dos banqueiros aprenderem uma lição semelhante.
Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças da Grécia. Autor, entre outros livros, de O minotauro global (Autonomia Literária).