Hoje, no Brasil, a maior parte da jurisprudência não reconhece o vínculo de emprego com as empresas que operam no trabalho sob demanda por plataforma digital.
Coletivo Transforma
Fonte: GGN
Data original da publicação: 07/12/2022
Os avanços tecnológicos fizeram emergir e se proliferar, especialmente na última década, empresas que, por meio de aplicativos conectados a plataformas digitais, prestam serviços tradicionais contratando de forma precária trabalhadores por demanda e remunerando-os por tarefa. Tais empresas prestam os mais diversos serviços, entre os quais transporte (Uber etc.), entrega (Ifood etc.), manicure (Make You etc.), cuidador de cães (Dog Hero etc.), professor (Colmeia etc.), babá (Sitly etc.), entre tantos outros. Tais empresas, via de regra, negam os vínculos de emprego aos trabalhadores ao argumento de que, supostamente, trata-se de profissionais autônomos. No entanto, como já reconhecido por diversas pesquisas científicas realizadas por pesquisadores das mais diversas universidades, todos os requisitos da relação de emprego se fazem presentes.
A subordinação clássica é evidenciada pelo fato de as ordens serem emanadas diretamente das empresas para os trabalhadores por meio de sistemas informatizados devidamente programados para que reajam, em tempo real, aos sinais que lhes são emitidos para a observância do passo-a-passo estabelecido pelas empresas – o que é feito por programação algorítmica. Os termos de uso dessas empresas, que devem ser aceitos pelos trabalhadores como condição para o início das atividades laborais, estabelecem que o preço do serviço é fixado unilateralmente por elas e explicitam todo o processo de controle do trabalho. A avaliação dos trabalhadores é onipresente, uma vez que, àquela realizada pelas próprias empresas, somam-se as avaliações dos seus milhares de clientes, que têm repercussão no contrato, inclusive por poderem levar à suspensão do cadastro ou ao próprio desligamento dos trabalhadores. A pessoalidade também se faz presente posto que os trabalhadores não podem se substituir por outros ainda que cadastrados nas plataformas, como revelam os próprios termos de uso das empresas. Presentes ainda a onerosidade, pois não se trata de trabalho voluntário, e a não-eventualidade, como demonstram os relatórios extraídos dos sistemas das empresas e as pesquisas realizadas. Esses trabalhadores não estão fazendo “bico”, mas, sim, laborando de forma não-eventual, com extensas jornadas de trabalho, sem intervalo mínimo de uma hora para descanso, sem descanso semanal e férias.
Suas jornadas de trabalho não são fixas, mas isso nunca foi requisito da relação de emprego, muito menos em uma sociedade como a nossa que tem a possibilidade de realização do trabalho virtualmente de qualquer lugar. O trabalhador em home office é um exemplo forte, e que não se deixa considerar como empregado.
No entanto, com a baixa remuneração e os impulsos (“nudges”) que enviam para os trabalhadores, além da gamificação realizada pelas chamadas “promoções” ou “bônus” para que completem um ou dois turnos inteiros, as empresas os levam a laborar por muitas horas, dia e noite, todos os dias da semana, para conseguirem o mínimo para subsistência, como mostram, com frequência, matérias jornalísticas relacionadas ao setor de entrega. Fotos que chocam a todos de entregadores dormindo nas calçadas, percorrendo de bicicleta 50 km por dia em ritmo frenético, esquivando-se dos carros no meio da rua. As jornadas, embora não sejam fixas – fato que nunca afastou a relação de emprego, repita-se –, são absolutamente controladas pelas empresas, como podem mostrar os relatórios de inputs e outputs dos seus sistemas. Esse fato é ainda mais claro nas empresas que se utilizam de interposta pessoa para realizar esse controle, como é o caso dos chamados operadores logísticos.
O instrumento de dar os comandos aos trabalhadores foi alterado, como já fora outrora quando se passaram a dar ordens por e-mail, computador de bordo, palmtop, ou celular. Mas o controle e a frequência das ordens foram intensificados e são facilmente aferidos porque todos os dados estão nas plataformas digitais. A CLT alberga a figura do “comando por meio telemático”, no parágrafo único do art. 6º da CLT, segundo o qual “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
No entanto, o discurso empresarial, talhado por profissionais de marketing e psicologia, é propagado a custo de muito dinheiro, a exemplo do que ocorreu na Califórnia, EUA, onde as empresas de “transporte por aplicativo” desembolsaram mais de um bilhão de reais para a campanha de plebiscito que criou uma exceção para ela na configuração da relação de emprego trazido pela AB5, resultando em perdas de direitos a esse tipo de trabalhador. Tal discurso encontra eco, inclusive, entre parte dos próprios trabalhadores que se veem atraídos pela ideia de empreendedorismo e autonomia, que só existem no discurso. Como mostram diversas pesquisas, ao serem questionados sobre suas condições de trabalho, os trabalhadores afirmam que gostam da ideia de poderem fazer seu horário, motivo pelo qual a contratação como autônomos lhes soa interessante (desconhecendo que fixação de jornada não é condição para vínculo de emprego e que o trabalho sob demanda tem regulamentação e previsão de direitos no Brasil), mas, contraditoriamente, informam almejar direitos trabalhistas, como férias, salário-mínimo, descanso semanal remunerado, EPIs e contribuição previdenciária.
Além das campanhas de marketing, algumas dessas empresas utilizam largamente da manipulação jurimétrica para levar à consolidação de uma jurisprudência trabalhista que negue os vínculos de emprego. Com a aplicação da jurimetria, pode-se, entre outros, avaliar, a partir dos cenários jurisprudenciais, a probabilidade de sucesso ao se ingressar com uma ação. Ao se analisar a atuação judicial da Uber, é possível verificar que a empresa vem empregando largamente métodos jurimétricos no mapeamento das decisões de magistrados. Sabendo a tendência de cada juiz, desembargador ou ministro na apreciação de ações que buscam o reconhecimento do vínculo de emprego, a empresa propõe acordo judicial quando está diante de um julgador mais suscetível ao reconhecimento do vínculo empregatício e manifesta recusa ao acordo quando está diante de um magistrado mais conservador. Do acordo, faz constar a obrigação de pagar diversos créditos trabalhistas, desde que não seja reconhecido o vínculo de emprego. Desse modo, por meio de uma litigância manipulativa, as decisões favoráveis à empresa formam jurisprudência, e as que possivelmente lhe seriam desfavoráveis são evitadas, pois são substituídas, em alguma fase processual, em qualquer instância, por acordos homologados judicialmente.
A estratégia adotada pela Uber não fugiu aos olhos do Ministério Público do Trabalho, que já apresentou um relatório sobre o tema. Tomando consciência da manipulação, vários magistrados têm se recusado a homologar acordo proposto pela Uber, como mostram decisões do TRT3, TRT 15, TRT11, entre outros. Ressalte-se que não há direito líquido e certo das partes à homologação do acordo, pois, para tal, é preciso que se façam presentes os requisitos para a conciliação e que o acordo não infrinja as normas de proteção ao trabalho, não prejudique o empregado ou implique em fraude trabalhista – como é o caso.
Hoje, no Brasil, a maior parte da jurisprudência não reconhece o vínculo de emprego com as empresas que operam no trabalho sob demanda por plataforma digital. Entretanto, se somadas as procedências com os acordos judiciais, esses são em número maior do que as improcedências. Recentemente, os ventos parecem começar a mudar, principalmente em função da decisão da 3ª Turma do TST, nos autos do RR-100353-02.2017.5.01.0066, que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e aUber. Espera-se que o Judiciário brasileiro siga o caminho trilhado por outros países, onde a relação empregatícia vem sendo reconhecida, a exemplo de França, Suíça, Espanha, Alemanha, Holanda e Nova Zelândia. Ressalta-se que a União Europeia está em vias de editar uma diretiva com requisitos para reconhecimento do vínculo de emprego nos países membros.
Importa ressaltar que o afastamento da relação de emprego ou o estabelecimento de um outro diploma legal específico para reger a relação entre as empresas detentoras de plataformas digitais e seus trabalhadores levará, inevitavelmente, a uma concorrência desleal com as empresas que atuam nos mesmos ramos de atividade contando com empregados formalizados. Ademais, levará, como sói acontecer com todo tipo de fraude trabalhista, à consolidação de um padrão de relações trabalhistas precário, pois se hoje chamam a atenção os setores de transporte e entrega, amanhã serão todos os setores da economia afetados por tal forma de contratação, ocasionando a implosão dos direitos trabalhistas consolidados, mormente considerando que todos os tipos de serviço podem vir a ser contratados por aplicativo.
A correlação de forças foi tão desfavorável nos últimos anos que se abriu espaço para que empresas tivessem à sua disposição força de trabalho sem custos, em que até parte principal dos custos com instrumentos de produção fosse transferida aos trabalhadores. Consequentemente, tem-se um avanço ainda mais profundo no processo de desorganização do mercado de trabalho brasileiro, que joga as pessoas à concorrência vil em uma atividade que lhes possa garantir renda. E mais, as empresas, que atuam de forma quase oligopolizadas, se inserem na lógica contemporânea da financeirização e da venda de dados. Referendar essa perspectiva, não contribui para a tarefa enorme que existe de organizar o mercado de trabalho e ampliar a inclusão social.
Um regime precário de contratação é o que almejam as empresas, como pode ser visto nos discursos dos seus CEOs. Acatar um modelo de relação de trabalho que afaste o vínculo empregatício ou restrinja direitos trabalhistas é ferir de morte o art. 7º da Constituição da República – o que não foi conseguido sequer pelo Governo Bolsonaro com a carteira verde e amarela. De fato, o caput do art. 7º da carta maior afirma que os direitos relacionados em seus vários incisos têm como destinatários os “trabalhadores” e não empregados. Deve ser lembrado que esse artigo está no capítulo dos direitos fundamentais, ou seja, têm a pretensão de universalidade. A criação de uma terceira categoria com menos direitos fundamentais, ou seja, formada por cidadãos de segunda categoria, não passa pelo crivo constitucional.
O fetichismo tecnológico, impulsionado pela retórica de marketing dessas empresas, faz crer que estamos frente a um novo tipo de relação de trabalho, criando “novidades” como “trabalhador por aplicativo”, “algoritmo patrão” e “trabalhadores digitais”. Entretanto, se olharmos de maneira técnica e desencantada, nada disso é característica do trabalho realizados nessas empresas, pois a tecnologia sempre esteve presente no trabalho humano e nunca alterou sua essência. O tear a vapor é instrumento de trabalho, assim como a esteira da linha de produção, as peças robóticas nas fábricas. Seja qual instrumento utilizar, em todos os casos se trata de um operário. Em uma sociedade em processo acelerado de digitalização de todas as esferas da vida, chamar alguém de “trabalhador digital”, ou “trabalhador por plataforma digital” ou “trabalhador por aplicativo” além de incorreto é completamente inespecífico, pois todos os trabalhadores exercem suas atividades em alguma parte por meio do digital. Chamar um entregador ou um juiz ou um advogado de trabalhador digital tem o mesmo sentido, pois todos esses executam seus serviços por meio de plataforma digital.
A característica predominante do chamado “trabalho em plataforma” nada mais é do que a contratação sob demanda e pagamento por tarefa. Essas são suas notas distintivas, e não o fato da utilização de tecnologia digital, mero instrumento de organização do trabalho, totalmente expandido em todas as atividades econômicas atualmente. O trabalho sob demanda, com pagamento por tarefa, não é nenhuma novidade. Karl Marx traz n’O Capital que o trabalho por peça, do qual o trabalho por tarefa é uma de suas espécies, é a forma mais perversa de organização laboral para os trabalhadores, fazendo-os entender que é de seu interesse intensificar o seu trabalho e prolongar sua jornada, sendo que, na realidade, faz rebaixar o preço do trabalho, dado que quem precifica a tarefa ou peça é o empregador.
O trabalho sob demanda e remunerado por tarefa são previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Um primeiro exemplo é o trabalhador avulso, previsto na Constituição com garantia de todos os direitos dos empregados. Temos dois exemplos de trabalhadores avulsos: os portuários e os desenvolvidos nos chamados “portos secos”. Tal qual um entregador ou um motorista, ao trabalhador avulso é ofertado trabalho, com possibilidade de negativa, que pode ser executado para empresas diversas, recebendo por tarefa realizada. Esse trabalho é controlado e remunerado pelo Órgão Gestor de Mão de Obra, no caso do portuário avulso, e o sindicato, no caso do trabalhador avulso dos chamados portos secos.
A segunda forma de trabalho sob demanda é o trabalho intermitente, forma precária de emprego trazida na legislação pátria pela Reforma Trabalhista de 2017 e tão criticada por não ter conseguido incluir trabalhadores e sim excluir aqueles com maior proteção. Não trazendo na lei qualquer restrição expressa de utilização, essa forma contratual passou a ser utilizada por empresas como alternativa de uso geral ao contrato de emprego tradicional, tomando seu lugar sem qualquer proteção aos trabalhadores e trazendo a previsão inconstitucional de salário-mínimo por hora.
Ou seja, seja de uma forma de trabalho específica que muito se assemelha ao chamado trabalho em plataforma como é o trabalho avulso, seja como a genérica forma contratual do trabalho intermitente, já há regulamentação do trabalho sob demanda no país. O que desejam as empresas é ir além da conquista de precarização que obtiveram em 2017, pois se recusam a utilizar até o precário contrato que conseguiram emplacar em nossa legislação. De toda sorte, entende-se que a forma de contratação aqui discutida se enquadra no parágrafo único do art. 6º da CLT e, via de regra, sequer se trata de intermitência de trabalho, vez que os trabalhadores estão trabalhando de forma contínua para as empresas.
De toda sorte, seria necessária uma discussão conjunta do chamado “trabalho em plataforma” com o contrato de trabalho intermitente e a correção da regulamentação do contrato intermitente, para uma maior proteção dos trabalhadores e para alcançar expressamente os chamados trabalhadores em plataforma, que em verdade são entregadores, motoristas, domésticos, montadores de móveis por demanda. Para tanto, sugere-se a retirada de pauta de todos os projetos de lei que se relacionem com o tema e a rediscussão do assunto com amparo no art. 7º da CR e nos artigos 2º, 3º e 6º da CLT.
Vanessa Patriota da Fonseca é Coordenadora Nacional do Coletivo Transforma MP e pesquisadora da UFPE.
Rodrigo de Lacerda Carelli é Membro do Coletivo Transforma MP e professor da UFRJ.
Magda Biavaschi é Professora da UNICAMP.
José Dari Krein é Professor da UNICAMP.
Ricardo Festi é Professor da UNB.