Prometeu acorrentado, LGPD e Direito do Trabalho: a hora da verdade

A era das codificações e o ideal de completude chegaram ao fim. Vivemos tempos de conectividade e de abertura.

Oscar Krost

Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 13/02/2022

No distante setembro de 2020, início da pandemia, quando ainda acreditávamos estar próximos do fim, dela pandemia, não do nosso, brasileiros, postei no https://www.direitodotrabalhocritico.com um breve artigo sobre Lei Geral de Proteção de Dados (Lei no 13.709/18)1 ou apenas “LGPD” para os mais familiarizados.

Quem já leu Prometeu acorrentado, LGPD e Direito do Trabalho, novamente com o perdão por mais um trocadilho, prometo não me estender na reprise; já quem não leu, fica a dica para não perder o fio condutor da proposta ora apresentada, recordando a síntese na identificação de 3 pontos de apoio na leitura/interpretação da lei:

“Neste panorama, para além de expor os sentidos possíveis de cada um dos artigos da LGPD, prática útil, porém arriscada diante da cultura de mudanças legislativas no Brasil dos últimos meses, propõe-se apresentar três crivos, úteis a guiar o intérprete em situações dúbias entre múltiplos sentidos de cada disposição:

• compatibilidade com os Princípios do Direito do Trabalho: entre duas ou mais possibilidades hermenêuticas dos dispositivos da nova lei, devemos adotar aquela que se alinhe de forma ótima aos Princípios da Proteção e projeções (in dubio pro operario, aplicação da regra mais favorável e da condição mais benéfica), da Irrenunciabilidade, da Continuidade e da Primazia da Realidade, rol meramente exemplificativo. Entendimento em contrário desconsidera a centralidade da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa para o Estado Democrático de Direito instituído no país,

• horizontalidade dos Direitos Fundamentais: embora os Direitos Fundamentais tenham sido gestados para prevenir excessos do Estado em relação aos cidadãos (eficácia vertical), pela evolução histórica causadora de mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas em todos os campos da vida, também passaram a proteger os cidadãos entre si, em suas relações privadas (eficácia horizontal), inclusive em sede laboral. A fundamentalidade dos Direitos Fundamentais, com o perdão do pleonasmo, deve ser a tônica em matéria de proteção de dados dos trabalhadores.


• Princípio da Proporcionalidade: “nada em excesso” é uma máxima grega contemporânea de Prometeu, inscrita no templo de Apólo, na cidade de Delfos. Enfatiza a importância do cuidado e da medida no agir. A proporcionalidade em forma de Princípio não apenas pode, como deve ser entendida sob 03 vertentes: Princípio da Conformidade ou da adequação de meios, Princípio da Necessidade e Princípio da Proporcionalidade em sentido estrito. Em caso de dúvida, observe-se a via de menor potencial ofensivo e de pertinência, algo semelhante à legítima-defesa para o Direito Penal.”


“Hard cases” ou simplesmente casos reais. Trago dois exemplos, ambos hipotéticos, na tentativa de sair do plano eminentemente teórico, envolvendo Direito Coletivo do Trabalho e LGPD.


O empregador tem acesso a dados pessoais de empregadas e de empregados das mais variadas ordens, inclusive de natureza sensível. Contudo, todos pertinentes e essenciais à pactuação, à execução e à terminação do contrato de trabalho.

Tudo muito simples e óbvio até surgirem questionamentos.


Podem os sindicatos da categoria profissional ter acesso a estes dados?

Este acesso alcança dados de trabalhadoras e trabalhadores não contribuintes com os sindicatos?

É necessária a autorização dos titulares dos dados para sua disponibilização aos sindicatos?

Sim e não são respostas que atendem a qualquer pergunta. O importante vem na sequência: o porquê do sim ou do não.

Cabe aos sindicatos a defesa dos direitos e dos interesses da categoria, não apenas de seus integrantes individualmente, inclusive na esfera administrativa.4

A busca pelos dados dos sujeitos que trabalham tem amparo no cumprimento deste munus constitucional, meio para alcançar determinado fim?

Se o empregador tem acesso, por que o sindicato não poderia tê-lo, já que são ponto e contraponto no jogo de forças capital x trabalho?

Qual dentre as possíveis respostas seria a mais compatível com os Princípios do Direito do Trabalho?

E como esta resposta se colocaria diante da horizontalidade dos Direitos Fundamentais?

Pode o patrão, mas não o órgão de classe… cada degrau traz mais dificuldade para sustentar a resposta negativa.


Sobre o Princípio da Proporcionalidade, não há muito a dizer. Somos livres para argumentar, bem como fundamentar qualquer entendimento, pois vivemos em um Estado Democrático Constitucional de Direito. Porém, seguindo juízos de equidade e de razoabilidade, mantenho a resposta positiva às questões formuladas.

Sobre os limites de acesso apenas aos dados de contribuintes, retomo a questão: para que serve o sindicato e o que a proteção de dados significa? Tal qual o fogo dos deuses desejado por Prometeu, conhecimento é poder e poder, responsabilidade. Ao ter o órgão de classe acesso ao bônus, assume o ônus. Novamente, os 3 filtros.

Exigir a autorização pessoal e livre do sujeito subordinado no curso da relação de emprego inviabilizaria o acesso às informações pela entidade representativa, tal qual ocorre com o exercício do direito de petição ao Judiciário no curso da contratualidade, sem represálias, haja vista estarmos lidando com um sistema que promete a garantia contra dispensa arbitrária desde 1988 (art. 7º, inciso I, da Constituição).

Caso o dado pretendido seja sensível e, até prova em contrário, não essencial ao liame de emprego ou ao sindicato, que seja, então, “anonimimizado”, como previsto na própria LGPD, em seu art. 5o, incisos III e V, pelo menos até segunda ordem. Caso a caso e de modo tópico vão sendo desvendadas as exceções à regra,

A busca pelos dados pode ocorrer em caráter incidental, durante a tramitação de determinado feito, ou preparatório, pela Produção Antecipada de Prova (PAP) prevista nos arts. 381 e seguintes do Código de Processo Civil, perfeitamente compatível com o Processo do Trabalho.

Uma moléstia grave e estigmatizante pode não apresentar nexo com o trabalho em uma primeira leitura, mas na dinâmica das relações, pelo avanço da tecnologia e com o aparecimento de novos dados tudo pode mudar. O que parecia impertinente, alcança importância.

Outra hipótese envolvendo LGPD e sindicatos, mas sendo o empregador aquele que desconhece, diz respeito à contribuição sindical. Não ocorrendo o recolhimento compulsório desde a reforma trabalhista (Lei nº. 13.467/17) e verificado o baixo índice de autorizações se considerado o número de integrantes da categoria, trabalhadoras e trabalhadores em estado de sujeição, não seria plausível entender como dado sensível a opção pelo custeio?

Com isso, não estaria a LGPD viabilizando, por vias transversas, a proteção de empregadas e de empregados, bem como da entidade sindical, sinalizando para uma outra modalidade de pagamento do antigo “tributo”?

Qual o interesse patronal em reter uma informação e efetuar uma operação de desconto/repasse sobre a qual não obtém ganho algum?

Não foi foram bandeiras da reforma trabalhista a modernização e a desburocratização das regras, buscando a desoneração de empregadores de responsabilidades e de atribuições?

Para finalizar, volto aos 3 critérios de análise e remeto-me ao texto Contribuição Sindical e LGPD: a opção pelo custeio do órgão de classe como dado sensível do empregado e potencial fator discriminatório, parte da obra DIREITO, TECNOLOGIA E TRABALHO, VIDIGAL, KROST ESTRADA (Coordenadores), Editora Mizuno, 2022.5

Pelo capítulo em questão, pretendo revisitar não só textos legais, mas também Princípios e institutos relacionados à contribuição sindical, à LGPD e aos Direitos Fundamentais, propondo um olhar integrado para além do “aqui e agora”.

Nas situações hipotéticas trazidas as respostas construídas parecem lógica e juridicamente sustentáveis. Cada uma e cada um de nós não apenas pode, como deve desenvolver seus próprios filtros/critérios, na busca por soluções dos desafios do dia a dia. De suma importância assumirmos o protagonismo por nossas atuações, agregando elementos ao sistema jurídico, enquanto complexo vivo, aberto e inacabado.

A era das codificações e o ideal de completude chegaram ao fim. Vivemos tempos de conectividade e de abertura. E verdade seja dita: algumas doses de filosofia, história e mitologia sempre ajudam.

Notas

1 Lei no 13.709/18 disponível em <://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 05 fev. 2022.

2 KROST, Oscar. Prometeu acorrentado, LGPD e Direito do Trabalho, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/09/15/prometeu-acorrentado-lgpd-e-o-direito-do-trabalho/>. Acesso em: 05 fev. 2022.

3 Aqui não se trata de trocadilho, mas de uma singela homenagem ao clássico, filme Karatê Kid (Columbia Pictures, 1984) que há décadas emociona gerações e há pouco tempo foi retomado com as mesmas personagens, pela série Cobra Kai (NETFLIX, 2018).

4 Constituição, art. 8º, inciso III:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

…………………………………………………………………………………………………………………………………………………….

III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

5 Mais informações sobre Direito, Tecnologia e Trabalho estão disponíveis em <https://www.editoramizuno.com.br/direito-tecnologia-e-trabalho.html>. Acesso em: 05 fev. 2022.

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