Eileen Boris
Fonte: Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, jan./jun. 2014.
Resumo: Com base na análise da relação entre casa e trabalho, e do significado dessa relação para a prática do cuidado, o artigo desenvolve uma crítica aos argumentos de Betty Friedan no livro A mística feminina, entendido como uma irônica continuidade do projeto marxista de reduzir a emancipação das mulheres à obtenção de um emprego fora de casa. Assumindo uma oposição entre cuidado e trabalho, amor e dinheiro, certas feministas renegaram o trabalho doméstico. Entretanto, o movimento organizado das trabalhadoras em domicílio, que luta pelo reconhecimento legal de seu trabalho, tem sublinhado a interconexão entre reprodução social e produção; ao mesmo tempo, teóricos têm questionado a ética do trabalho assentada num paradigma produtivista da vida social.
Sumário: “O problema que não tem nome” era um problema | Care ≠ trabalho | A emergência das trabalhadoras domésticas | Conclusão | Referências Bibliográficas
“As mulheres rurais são, com frequência, os participantes mais esquecidos da economia”, declarou a economista Lourdes Benería em um relatório interno da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os esforços de implementar a declaração da ONU sobre igualdade da mulher, datado de 1977. “Longe de serem participantes ‘marginais’ no fluxo das atividades econômicas”, afirmou, “elas são parte ‘integral’ dessas atividades.” Afinal de contas, “elas trabalham por longas horas em tarefas agrícolas e domésticas e […] realizam tanto atividades essenciais para o sistema econômico, notadamente aquelas ligadas à produção de alimentos e aos serviços, nos campos e em casa, quanto aquelas relacionadas com a reprodução da força de trabalho”. Ao reconhecer que as mulheres do “Terceiro Mundo” desempenhavam um papel no desenvolvimento econômico que englobava produção e reprodução, Benería sublinhou uma problemática fundamental, que permanece presente: a da relação entre casa e trabalho, do significado desses termos e da sua implicação para a prática do care.
A cisão ideológica entre casa e trabalho, no Ocidente industrializado, obscureceu as formas pelas quais cada uma dessas órbitas conforma a outra. Serviu também para modelar a política social direcionada às “mulheres dos países em desenvolvimento”. O debate político contemporâneo mantém a oposição entre “mãe” e “trabalhador(a)”, bem como entre “trabalho” e care. Essa divisão reflete o impasse político e intelectual generalizado que perpassa a organização do conhecimento – nossa competência acadêmica -, tanto quanto as regras jurídicas, a regulação governamental e a organização sindical. “Esferas separadas” ou “o culto da domesticidade” dominaram, por muito tempo, as histórias das mulheres norte-americanas e europeias, especialmente no século XIX, muito embora boa parte delas tivesse que trabalhar duramente, em alguns casos em casa, muitas vezes fora dela, para manter a si mesmas e às suas famílias. Elas eram produtoras rurais de subsistência, assalariadas e donas de casa; algumas eram empregadas domésticas e escravas. Mesmo quando compravam e negociavam em mercados, tinham que transformar os materiais comprados em bens consumíveis. Elas ajudavam nos partos, tratavam dos doentes, cuidavam das crianças, acalmavam os aflitos e tomavam conta dos mortos. O care encontrava-se entrelaçado com o tecido da vida cotidiana das mulheres, quer elas saíssem de casa para trabalhar, quer não.
Mas o capitalismo industrial e, no caso dos Estados Unidos, a racialização das relações capitalistas obscureceram essas interdependências celebrando o individualismo, promovendo os homens provedores e estruturando a desigualdade por meio das hierarquias de gênero, raça/etnicidade e classe. Entretanto, as transformações mais amplas na economia política tornaram insuficientes os homens provedores, mesmo nas classes (como aquelas em que se incluíam as famílias com homens sindicalizados) que nos anos do pós-Segunda Guerra Mundial pareciam conformar-se a esse ideal. Nos anos de 1970, primórdios do reordenamento neoliberal, o modelo dual homem provedor/mulher cuidadora recobrou prevalência, o que deixou as mães solteiras pobres à sua própria sorte, diante de uma assistência social progressivamente mais escassa (cf. Federici, 2012).
Nesse contexto, nos anos de 1980, a desconstrução dos trabalhos das mulheres tornou-se central para um projeto feminista mais amplo de dissolver tais construções sociais, especialmente a dicotomia entre público (trabalho) e privado (casa). As feministas da academia, sobretudo aquelas que escreviam a partir de uma tradição de esquerda, propuseram-se, simultaneamente, a reavaliar o trabalho que aparecia como tendo origem no amor ou na obrigação (e racializado, quando extraído coercitivamente de escravas ou minorias étnicas) e que, por isso mesmo, se tornava sub-remunerado quando exercido em troca de salário e desvalorizado na economia de mercado. Mas considerar o care realmente trabalho é uma questão que continua a confundir, tanto o desenho da política social, quanto a orientação de movimentos políticos.
O care é, certamente, um conceito mais estreito do que o de trabalho reprodutivo. Conforme aprendemos nos debates marxistas dos anos de 1970 e 1980 sobre o trabalho doméstico, o trabalho reprodutivo consiste das atividades que produzem a força de trabalho – atividades que transformam matérias-primas e mercadorias compradas com um salário, para manter, cotidianamente, o(a) trabalhador(a) e gerar a futura força de trabalho, por meio da nutrição, da vestimenta, do cuidado, da educação e da socialização das crianças. Esse trabalho é usualmente desempenhado sem remuneração salarial e por uma mulher (dona de casa, que pode ser simultaneamente uma trabalhadora assalariada) (cf. Malos, 1995; Olcott, 2011, pp. 1-27). O care, dessa forma, é um componente do trabalho reprodutivo que não equivale ao trabalho doméstico, mas é geralmente executado junto com outras atividades domésticas – razão pela qual a linha que separa o care e o trabalho doméstico não é tão clara. O trabalho de care envolve serviços pessoais para outrem: atividades que se voltam para as necessidades físicas, intelectuais, afetivas e para outras demandas emocionais de cônjuges, filhos e pessoas idosas, doentes ou com deficiências. Isso inclui tarefas da vida cotidiana, abarcando a manutenção da casa (cozinhar, limpar, lavar e mesmo fazer compras) e a existência pessoal (dar banho, alimentar, acompanhar, transportar). A produção sexo-afetiva pode ser parte do care. Ela não precisa ser heterossexual ou homonormativa. Esse trabalho requer, conforme sustentam teóricas feministas das mais diversas disciplinas, “cuidar de” (caring for) à medida que “se tem cuidado com”/”se importa com” (caring about). Tratar do ambiente do lar ou do corpo é cuidar de (care for), mas também, talvez, ter cuidado com/importar-se com (care about) (cf. Glenn, 2000, pp. 84-94; Zelizer, 2005).
Eileen Boris é professora e chefe do Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia, Santa Barbara.