Não há como imaginar a Antiguidade clássica sem escravismo ou a Idade Média sem servidão. Igualmente, como pensar a Modernidade/Pós-Modernidade sem capitalismo e, este, sem relação contratual de emprego?
Oscar Krost
Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 16/10/2022
O capital muda, se reestrutura e reinventa sem trégua, sendo incansável na busca pela própria acumulação e reprodução. Dá as cartas, dita e reedita as regras do jogo, mesmo que para tanto precise criar um léxico novo, condicionante dos demais participantes. Se entender necessário, molda a realidade de acordo com seu exclusivo interesse.
Intérpretes e Operadoras/es do Direito tendem a aceitar tal versão das coisas sem maiores questionamentos. Afinal, sempre foi assim. Parece esquecerem, por vezes, a importância de duas ferramentas ao alcance das mãos e que podem fazer toda a diferença na preservação de um patamar mínimo civilizatório laboral: a experiência histórica e os Princípios jurídicos por ela forjados.
A cada salto tecnológico um velho modo de fazer as coisas passa a incorporar um novo instrumento, ouvindo-se vozes em defesa da ideia de estarmos diante de uma ruptura paradigmática e revolucionária. Algo como “nada mais será igual” e “só nos resta aceitar”, pois todos os “problemas” terão fim por obra do “solucionismo tecnológico”.1
Tais exames tendem a ser seletivos, parciais e comprometidos. Nos últimos anos a profundidade das mudanças sobre o que entendemos por know how foi muito superior a de décadas passadas inteiras juntas. A aceleração exponencial dos avanços é evidente.
Desta forma, irrazoável que tudo o que aconteceu antes simplesmente tenha sido superado, ficando para trás, apagando-se a história e a experiência por ela produzida por um jogo de palavras. Para além de aceitar o uso de neologismos inovadores, como “terceirização”, colaborador e parceiro, devemos atentar aos fenômenos a que se referem, analisando-os de modo crítico e criterioso, evitando incorrermos em simplificações e estereótipos.
O bom e velho Princípio da Primazia da Realidade, pelo qual “para o Direito do Trabalho, interessa menos o que as partes dizem do que aquilo que elas fazem“, definição de João Leal Amado,2 vem a calhar. De suma importância revisitar conceitos consagrados, os interpretando em paralelo às mudanças sociais e culturais, a fim de que não percam a essência e preservem seus papeis.
Abstrato, vago e indefinido como todo o Princípio tende a ser enquanto espécie que, ao lado das regras, compõe o gênero norma. Sua abertura e maleabilidade não são falhas, mas virtudes. Servem para inspirar decisões em zonas cinzentas deixadas pela atividade legislativa, funcionando como um amálgama.
Em termos de distribuição do ônus da prova no processo do trabalho, o art. 818 da CLT disciplinou a matéria de modo lacônico, limitando-se a prescrever que a prova das alegações cabe a quem as fizer. Com a reforma trabalhista promovida pela Lei nº 13.467/17, a regra passou a apresentar redação quase idêntica à do art. 373 do Código de Processo Civil. Ao desdobrar o dispositivo em incisos, foram acrescidos alguns parágrafos, positivando-se, no primeiro deles, a possibilidade de modificação da distribuição original quando determinado em lei ou por conta das peculiaridades da causa.3
“Distribuição dinâmica do ônus da prova” foi o nome dado à previsão normativa pela doutrina. Sua função seria priorizar os “princípios da efetividade da prestação jurisdicional, da veracidade, da boa-fé, da lealdade e da solidariedade, e defende a análise do caso concreto para, somente então, imputar-se o ônus da prova a determinada parte“, segundo Anelise Ambiel Dagostim.4
Contudo, embora prescrita em lei, a distribuição dinâmica se reveste de uma faculdade da Juíza ou do Juiz, não de um dever. Ocupa um espaço de discricionariedade, na forma autorizada pelo art. 765 da CLT, não dependendo da matéria controvertida e exigindo fundamentação. Desafia recurso, nos termos do parágrafo terceiro, quando “gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.”
No entanto, em lides nas quais admitida a prestação de serviços, porém postulado o reconhecimento da relação como de emprego, existem mandamentos normativos específicos para sempre proceder à inversão em proveito da tese da trabalhadora ou do trabalhador. Não mais como possibilidade sujeita à fundamentação e reforma, mas tendência. Algo como o ordinário (trabalho subordinado) se presume e o extraordinário (trabalho autônomo), deve ser demonstrado.
Para além do Princípio da Primazia da Realidade, destaquem-se as disposições do direito português e da OIT, especificamente o artigo 12º do Código do Trabalho e a Recomendação nº 198, item 11,5consagrando a “presunção de laboralidade”. Diversas são razões para saudar tais previsões e aplicá-las ao Processo do Trabalho brasileiro, na forma autorizada pelo art. 8º, caput, da CLT.
Primeiro, por evitar casuísmos da dependência do entendimento da julgadora ou do julgador da vez e risco de reforma em grau de recurso por divergência sobre os fundamentos adotados na instância originária. Segundo, por priorizar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como a dignidade da pessoa humana, fundamentos da República brasileira (Constituição, art. 1º, incisos III e IV). Terceiro, por permitir um olhar contemporâneo sobre os elementos fático-jurídicos essenciais ao reconhecimento do vínculo de emprego (CLT, art. 3º), condizente com o desenvolvimento da tecnologia em seus algoritmos, metadados, geolocalização, telemática e etc, inclusive os clássicos, a exemplo da subordinação, pessoalidade e não eventualidade.
Até mesmo porque a forma contratual de emprego, embora não seja a única possível de adoção em um regime capitalista, foi e segue sendo a modalidade típica e inerente de admissão de trabalho subordinado e por conta alheia. Não por outro motivo, Jorge Souto Maior adverte que “ao se assumir a ideia de que o emprego não existe mais, torna-se essencial, então, discutir o próprio modo de produção capitalista“.6
Ainda que inexista sistema de exploração da força de trabalho hegemônico e puro, que não concorra com outros em menor escala, não há como imaginar a Antiguidade clássica sem escravismo ou a Idade Média sem servidão. Igualmente, como pensar a Modernidade/Pós-Modernidade sem capitalismo e, este, sem relação contratual de emprego?
Levados os fatos ao Poder Judiciário, cabe a este dizer o direito. Mas não de qualquer maneira, “da boca para fora”.
Deve ir além, deixando para trás a cultura de apenas indicar dispositivos de lei (fundamentação), analisando, pela primazia da realidade e demais valores do sistema, os fenômenos, atento ao diálogo das fontes e expondo os raciocínios desenvolvidos até chegar à decisão (argumentação). Somente assim pode ser alcançada uma distribuição do ônus da prova de viés substancial e tutelar, garantidor do acesso à Justiça em termos efetivos. Ou, como podem preferir alguns, atingir um “Direito Material e Processual do Trabalho 4.0″.
Notas
1 CARELLI, Rodrigo Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da. Apresentação In: CARELLI, Rodrigo Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da. (Organizadores). Futuro do Trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020, p. 09.
2 AMADO, João Leal. A lei sobre o TVDE e o contrato de trabalho: sujeitos, relações e presunções. In: CARELLI, Rodrigo Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da. (Organizadores). Futuro do Trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020, p. 127.
3 CLT, com ambas as redações do art. 818:
Art. 818. A prova das alegações incumbe a quem as fizer. (Revogado pela Lei nº 13.467, de 2017)
Art. 818. O ônus da prova incumbe: (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
I – ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
II – ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§2o A decisão referida no §1o deste artigo deverá ser proferida antes da abertura da instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por qualquer meio em direito admitido. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§3o A decisão referida no §1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Texto integral e atualizado da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 11 out. 2022.
4 DAGOSTIM, Anelise Ambiel. Evolução atual da aplicabilidade da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Consultor Jurídico (CONJUR), 12.01.2022, disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/dagostin-evolucao-atual-aplicabilidade-teoria-distribuicao-dinamica-onus-prova#:~:text=A%20teoria%20da%20distribui%C3%A7%C3%A3o%20din%C3%A2mica,escolhendo%20aquela%20que%20tem%20mais>. Acesso em: 10 out. 2022.
5 Código do Trabalho de Portugal e Recomendação da OIT disponíveis em <https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2009-34546475> e <https://www.legistrab.com.br/recomendacao-oit-198-relativa-a-relacao-de-trabalho/>, respectivamente. Acesso em: 10 out. 2022.
6 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de Direito do Trabalho: a relação de emprego. São Paulo: LTr, 2008, p.18, vol. II.