Precarização nas plataformas digitais: a resposta será internacional 

Foto: Violaine Martin/OIT

por Felipe Prestes

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) deu um grande passo para a criação de uma norma sobre trabalho na economia de plataformas que valha para todos os seus 187 países-membros. Realizada em junho deste ano, a conferência anual da entidade – que reúne representantes dos estados, de empregadores e de trabalhadores – definiu que será estabelecida uma convenção com regras para o trabalho organizado ou facilitado por plataformas digitais. 

“As normas da OIT podem ser recomendações e convenções. As convenções têm caráter vinculativo e, quando são ratificadas pelos países, têm poder de lei”, explica Maíra Lacerda e Silva, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério do Trabalho e Emprego, que integrou a delegação brasileira na conferência. 

Lacerda conta que os primeiros dias de debates foram tensos, pois delegações de países como Estados Unidos e China, juntamente com representantes dos empregadores, defendiam que a organização elaborasse apenas uma recomendação sobre o trabalho por aplicativo. Por outro lado, grande parte dos países da América Latina, África e União Europeia manifestou-se a favor de uma convenção. “Nas conferências, a gente sempre tenta o consenso. Mas houve três dias de discussão, sem um consenso. Infelizmente, a gente teve que ir a voto. E a maioria das delegações votou a favor da convenção”, relata. 

“A geopolítica quando trata de relações de trabalho e capital é um pouco diferente da geopolítica tradicional”, nota o advogado José Eymard Loguercio, que atende a CUT nacional e participou da conferência. “Nesse ambiente, China e Estados Unidos estavam do mesmo lado, alegando que o tema é muito novo, que precisava ter mais maturação”.

Depois da votação que estabeleceu que haverá uma convenção internacional sobre o tema, iniciou-se o debate sobre o texto da norma, que também foi exaustivo. Técnicos da OIT fizeram um texto base e as delegações elaboraram emendas, que precisavam ser votadas. “Para os primeiros 11 artigos foram apresentadas 455 emendas. Então, começou uma longa negociação, artigo por artigo”, conta Eymard. 

A conferência deste ano acabou votando apenas os primeiros artigos da convenção. Maíra Lacerda e Silva explica que a discussão ainda não avançou sobre quais direitos devem ser garantidos nesta convenção internacional. “Isto deve ficar para o ano que vem. A gente quase terminou neste ano a parte de definições: o que é uma plataforma digital, o que é um trabalhador de plataforma digital”, explica. Também houve definições sobre o que é um intermediário, o que é remuneração e o âmbito de aplicação da convenção. 

O texto já estabeleceu que a expressão “trabalhador de plataformas digitais” designa toda pessoa que esteja empregada ou contratada para trabalhar  “para fins de prestação de serviço organizados e/ou facilitados por uma plataforma digital, mediante remuneração ou pagamento, independentemente da classificação de sua situação no emprego”. Ou seja, tendo vínculo empregatício ou não, a pessoa é considerada um trabalhador, não se trata apenas de uma relação comercial.

Conferência de 2026 será decisiva

A assessora do Ministério do Trabalho conta que a ideia do governo brasileiro é levar para a conferência do ano que vem o mesmo grupo de servidores que participou neste ano, e realizar atividades de preparação até lá. “Queremos chegar com uma delegação bem preparada”. Neste período, também deve ocorrer encontros entre as delegações que defendem a garantia de direitos para os trabalhadores da economia de aplicativos. “A gente vai acertar estratégias para a discussão com governos da América Latina. Tem gente da delegação da União Europeia também querendo acertar com países da América Latina e Caribe uma posição mais forte para ir em bloco no ano que vem. Mas o debate vai ser pesado como foi neste ano”, projeta. 

De acordo com Maíra Lacerda, a prioridade deve ser garantir no texto o acesso à proteção social. “O Brasil vai tentar colocar proteção para esses trabalhadores e alguma forma de colaboração das empresas, especialmente no que tange à previdência. Não nos parece justo que a contribuição previdenciária seja feita pelos trabalhadores e pelo governo. Não sei se vamos conseguir estabelecer, porque é uma questão complicada, mas também queremos debater um pagamento mínimo. E a gente gostaria muito que houvesse transparência algorítmica: por que o trabalhador está na fila? Por que está naquele lugar na fila? Como a classificação dele é feita? Todas essas coisas a gente gostaria que fizessem parte de alguma forma, mas obviamente a convenção da OIT é global e estamos falando de diversos serviços, não é só motoristas e entregadores, é todo mundo que presta serviço por plataformas, de serviços de limpeza, de garçom. O básico é garantir o trabalho decente”. 

Para José Eymard Loguercio, o texto da convenção deverá ser mesmo genérico. “A tendência é uma convenção mais principiológica, pois cada país tem as suas diferenças nesses conceitos jurídicos. Mas o que ela vai dizer é: independentemente do tipo de vínculo, os trabalhadores têm que ter proteção e trabalho decente”. Além da convenção, que deve ter um texto mais aberto, será feita também uma recomendação, essa mais detalhada. Uma espécie de guia para os países do que seria o ideal em termos de legislação. 

O advogado pontua que é importante que a convenção garanta a organização sindical dos trabalhadores. O tema foi tratado neste ano, mas ainda sem definição. “Muitos países não reconhecem o direito de organização e negociação coletiva. Então, acho que esse ponto é importante em uma convenção internacional”. 

Instrumento de Pressão

Uma vez aprovada a convenção, o Congresso brasileiro precisa ratificá-la para que tenha força de lei no país. E não há um prazo para que isso seja feito. “Pode demorar ou pode ser muito rápido. Depende da vontade política e do humor do Congresso”, explica Maíra Lacerda e Silva.  Ela acredita que a convenção internacional pode interferir nesse humor dos parlamentares. “Quando você tem uma convenção de um organismo internacional com a importância da OIT, você cria realmente uma pressão sobre o poder público. E o Brasil tem o orgulho de ser um dos países que mais ratifica convenções da OIT”. 

O advogado José Eymard Loguercio, também crê que a convenção pode servir como um instrumento de pressão ao Congresso. “Se há um compromisso internacional tripartite, onde governos, trabalhadores e empresários estão presentes, isso dá mais peso para você trabalhar a ratificação dessa convenção mesmo no Brasil de agora. Não vai ser fácil porque temos um Congresso que tem menos interesse em regulação protetiva”. 

Mas para Eymard o recado é, sobretudo, ao STF, e não diz respeito apenas ao trabalho por plataformas, mas também sobre a pejotização. “Acho que ajuda a dizer o seguinte: para qualquer tipo de trabalho humano você tem que ter proteção. É um alerta de que essas relações são de trabalho, não são comerciais, nem civis. O Supremo está dizendo que são relações comerciais e a convenção está dizendo inverso, que é um trabalho humano e precisa de proteção”. 

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