Por que brasileiros não podem ser trabalhadores nômades digitais?

Fotografia: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Brasil precisa decidir se quer participar da Economia do Conhecimento, e a Legística pode ajudar.

Thais de Bessa Gontijo de Oliveira, Rayssa Amendoeira de Araújo e Renê Morais da Costa Braga

Fonte: Jota
Data original da publicação: 02/03/2022

No Brasil atual, convivem duas realidades distintas no âmbito de relações trabalhistas. Por um lado, discute-se como garantir direitos mínimos aos empregados, e chegam à Justiça do Trabalho questões sobre a possibilidade (ou não) de o empregador disciplinar o uso do banheiro. Por outro lado, o país se esforça para atrair os chamados “nômades digitais”[1], definidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública como o imigrante que, de forma remota e com a utilização de tecnologias da informação e de comunicação, seja capaz de executar no Brasil suas atividades laborais para empregador estrangeiro.

Entre os dois extremos (embora mais próximos aos estrangeiros nômades digitais), encontram-se os trabalhadores brasileiros da chamada Economia do Conhecimento, cujos contratos de trabalho são regulados pela CLT. São pessoas que, se assim desejassem, poderiam exercer suas atividades de qualquer lugar do mundo por meio de tecnologias da informação e comunicação (notadamente, computadores e internet) e que, por qualquer razão que seja, decidiram permanecer no Brasil. O Brasil tem estrutura normativa para possibilitar, ou até fomentar, este tipo de trabalho entre seus nacionais? Ou, o brasileiro que deseja ser nômade digital precisa migrar para outro país?

Desde 2017, existe previsão legal para o regime de teletrabalho, conceituado como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituem como trabalho externo. Apesar do conceito legal, juristas discutem a diferença entre teletrabalho, trabalho remoto, home office ou trabalho a domicílio (este na forma do parágrafo único do art. 1º, Lei 14.151/2021), refinamento conceitual que não será objeto de aprofundamento.

Também não vamos abordar as promessas de regulamento do trabalho híbrido, figura que não possui ainda previsão formal no ordenamento, embora exista um projeto de lei em trâmite para dar-lhe ao menos existência formal. Nem o regulamento atual do teletrabalho, nem  o projeto de lei resolvem os problemas operacionais do trabalhador do conhecimento

Pragmaticamente, volta-se o presente texto aos brasileiros que trabalham com conhecimento e que conseguem desempenhar suas atividades integralmente com o auxílio da internet.

Para esse segmento, muitas das regras trabalhistas que se pretendem protetivas não cumprem mais esse propósito. Isso não significa dizer que tais regras devem ser revogadas por completo, já que existem muitos trabalhadores cujos direitos mínimos ainda são ameaçados. Assim, é importante refletir sobre quais regulações permitiram a flexibilização dos contratos de trabalho sem que se abra uma porta para afastar da proteção aos trabalhadores mais vulneráveis.

O trabalho da economia do conhecimento do século 21 é uma realidade. Vários dos trabalhadores brasileiros, extremamente capazes, vêm sendo recrutados por empresas de todo o globo. Muitos deles permanecem no Brasil, trabalhando de forma remota. Eles trabalham resguardados por contratos internacionais, sem qualquer amparo da CLT — e o fazem muitas vezes por opção, já que poderiam facilmente disputar empregos brasileiros em que teriam todos os direitos trabalhistas assegurados na legislação brasileira.

Sendo um fenômeno social recente, é natural que haja alguma perplexidade entre o legislador e os operadores: como lidar com essas pessoas e suas pretensões de carreira e estilo de vida? As regras trabalhistas existentes fazem sentido? A resposta a essa pergunta deve passar antes por uma decisão política. O Brasil deseja atrair e reter esses talentos, ou está confortável em perder seus talentos para empresas estrangeiras?

Nessa decisão, uma boa alternativa é valer-se dos métodos da Legística. Quando se fala em legislação e regulamentação, é preciso compreender que a atividade legislativa e regulatória não é (ou não deveria ser) exercida às cegas. Ela é, na verdade, um rico campo de conhecimento, com técnicas próprias. A Legística como metodologia propõe a análise de cenário com uma reconstrução do contexto de incidência, visando garantir normas que considerem os possíveis impactos negativos de uma regulamentação que pretende consolidar ganhos vistos como necessários.

Segundo Luzius Mader[2], um dos pioneiros no amadurecimento desse campo, a atividade legislativa é “uma atividade com uma finalidade, destinada a produzir resultados concretos e a contribuir para a solução de problemas efetivos”. Ou seja, antes de legislar, o Brasil precisa decidir o que quer.

Atualmente, não existe legislação específica para os trabalhadores brasileiros da economia do conhecimento (salvo a questão, já mencionada, dos nômades digitais).

Obviamente, ao deixar de atentar-se às especificidades desse segmento de trabalhadores, o Brasil perde em competitividade, já que o regulamento sobre nômades digitais não desconsidera problemas que ele possivelmente enfrentará na execução de seu contrato de trabalho. Ademais, a previsão legal para o tratamento do nômade digital, todavia, não alcança relações jurídicas do Direito brasileiro.

Assim, primeiramente, é necessário aprofundar sobre o impacto das regras trabalhistas sobre esse contingente, investigando a hipótese de que elas atrasam a disputa brasileira pelos empregados da economia do conhecimento, especialmente os próprios brasileiros, que são atraídos por empresas estrangeiras.

No contexto pós-pandemia, em que muitos trabalhadores migraram forçados para o regime remoto, vários deles não desejam retornar ao regime presencial — em qualquer faixa salarial. É o que mostra uma pesquisa feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): a maioria dos trabalhadores que podem trabalhar de casa prefere permanecer integral ou parcialmente em regime remoto.

É sabido que o regime remoto traz inúmeros desafios já documentados pela literatura, pela sua própria natureza: como integrar pessoas que trabalham em fusos horários diferentes, às vezes opostos? Como construir cultura em uma empresa que trabalha dessa maneira? Como enxergar a necessidade de promoções de pessoas com quem raramente se conversa? São dificuldades intrínsecas do teletrabalho. Diferentemente, o custoso exercício de cumprir regras trabalhistas tradicionais em um modelo que se pretende flexível e global, viabilizado pela tecnologia, é um desafio que talvez não precisasse existir.

Do novo normativo sobre nômades digitais, chama a atenção que a norma aplica-se apenas a trabalhadores estrangeiros trabalhando para empregadores estrangeiros. Dá a entender que, em termos práticos, as intrincadas e complexas normas trabalhistas brasileiras não precisam ser consideradas como um obstáculo por esse estrangeiro para que ele se instale no Brasil.

A regulamentação recente parece ser um aceno a esses trabalhadores da economia do conhecimento por meio da qual o Brasil entra para a corrida global para atrair esses trabalhadores.

E quanto aos trabalhadores brasileiros? Não se nega a complexidade de uma proposta que vise flexibilizar as normas trabalhistas para determinado segmento da economia. Não seria a primeira tentativa e não é difícil prever que essa tentativa possa ser usada como simulacro para descumprir normas protetivas de trabalhadores que não se enquadrariam no conceito de nômade digital.

Para avançarmos quanto à realização do chamado trabalho geograficamente ultraflexível, “anywhere-office” ou “work-from-anywhere”,[3] tal como o autorizado aos nômades digitais, o Brasil terá que primeiro decidir se a flexibilidade que oferece aos estrangeiros como um benefício também pode ser estendida aos brasileiros, ou se seus nacionais precisam continuar a ser tutelados por uma legislação que não considera os desafios próprios de sua realidade de trabalho.

Assim, apesar de alguns esforços legislativos, permanecem inúmeras inseguranças. Na conformação normativa atual, é praticamente impossível implementar o “anywhere-office”, salvo para os nômades digitais estrangeiros. Mais importante do que tentar adivinhar o futuro, com afirmativas do tipo “o futuro do trabalho é remoto”, o Brasil precisa tomar uma decisão: ele quer cuidar dos impactos da transformação digital nas relações de trabalho, ou quer continuar prestigiando as normas aplicáveis às relações trabalhistas tradicionais? São decisões que devemos amadurecer em instâncias legítimas do exercício de poder, com ampla participação da sociedade civil e especialistas.

Notas

[1] Trata-se da Resolução CNIG MJSP nº 45, de 9 de setembro de 2021. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cnig-mjsp-n-45-de-9-de-setembro-de-2021-375554693

[2] MADER, Luzius. A avaliação legislativa: uma nova abordagem do Direito. Legislação, n. 1, abr./jun. 1991, p. 39-49.

[3] CHOUDHURY, Prithwiraj. Our Work-From-Anywhere Future. Harvard Business Review, nov-dec 2020. Disponível em: https://hbr.org/2020/11/our-work-from-anywhere-future

Thais de Bessa Gontijo de Oliveira é Doutora em Direito (UFMG) e mestre em Direito (UFSC). Advogada do Grupo Enacom. Coordenadora de Projeto de Pesquisa pelo Edital Universal do CNPq (Big Data, Ética e Direito). Pesquisadora associada ao LegisLab” – Laboratório de Legislação e Políticas Públicas.

Rayssa Amendoeira de Araújo é Graduanda em Direito pelo Centro Universitário UNA (MG). Estagiária no Grupo Enacom. Pesquisadora no projeto de extensão “orientação a respeito da atuação trabalhista no mundo pós Covid”. Criadora do perfil jurídico @filhadethemis no Instagram.

Renê Morais da Costa Braga é Doutorando e mestre em Direito (UFMG). Advogado e Professor do UNILAVRAS. Pesquisador do LegisLab – Laboratório de Legislação e Políticas Públicas.

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