Por que a vida gira em torno do dinheiro?

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Fotografia: Jorge Araujo/Fotos Públicas

Assim como a sociedade medieval girava em torno da terra, já que a nobreza era a detentora das terras, a sociedade capitalista vai girar em torno do dinheiro, já que a classe dominante, isto é, a burguesia, é a grande detentora do capital.

Raphael Fagundes

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 16/07/2025

O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, porque o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu sou – segundo minha individualidade – coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; não sou, portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom também o seu possuidor, o dinheiro me isenta do trabalho de ser desonesto, sou, portanto, presumido honesto; sou tedioso, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu possuidor ser tedioso? Além disso, ele pode comprar para si as pessoas ricas de espírito, e quem tem o poder sobre os ricos de espírito não é ele mesmo mais rico de espírito do que o rico de espírito? Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário? 

Karl Marx¹

Em várias sociedades e épocas distintas, as mercadorias são qualquer coisa que satisfaça às necessidades e os desejos humanos. Quanto mais mercadorias (cada sociedade dará um valor específico para os objetos), o indivíduo terá um status social determinado, de modo que a riqueza de um homem é medida pela quantidade de mercadoria que possui. Mas foi no capitalismo que o dinheiro se tornou a chave e a finalidade para se viver em sociedade. 

“Os nativos de regiões da Índia usavam amêndoas. Os guatemaltecos usavam milho, os antigos babilônios e assírios usavam cevada. Nativos das Ilhas Nicobar usavam cocos, e os mongóis computavam tijolos”.² Porém, de acordo com Jack Weatherford, “provavelmente seria […] difícil para eles compreender o nosso mundo, organizado como é, em torno dessa curiosa abstração chamada dinheiro”.³ Porque os objetos usados para troca nessas sociedades tradicionais possuíam um valor de uso, já o dinheiro tem como finalidade apenas o valor de troca. 

A classe dominante faz a regra 

Antes se trocava mercadoria por dinheiro para se comprar os objetos necessários para a satisfação do indivíduo. Uma pessoa ia até a feira levando o produto da sua horta, por exemplo, e trocava por dinheiro. Com a ascensão dos comerciantes nos centros urbanos esse processo se transforma. O objetivo não é mais a mercadoria. O comerciante compra do produtor e repassa com a finalidade de adquirir mais dinheiro. Aqui já se encontra o germe de uma lógica eterna e gananciosa de acumulação já que o comerciante retira de circulação mais dinheiro que colocou no início do processo. 

Karl Marx explica que o dinheiro de papel ganhou predominância na lógica de crédito, substituindo, de forma irreversível, os metais preciosos. “À medida que se amplia o sistema de crédito, desenvolve-se a função de meio de pagamento exercida pelo dinheiro. Através dessa função, ele adquire formas próprias de existência no domínio das grandes transações, ficando as moedas de ouro e prata geralmente delegadas para o comércio a retalho”.⁴

Ao longo dos séculos XVI até os finais do século XVIII, essa lógica foi alimentada pela burguesia que tomaria o poder e, consequentemente, tornaria o que tem em abundância (o dinheiro) como elemento central de toda a vida em sociedade. Uma classe, quando assume o poder, tende a levar o resto da sociedade a circular em torno do que ela tem o domínio. Assim como a sociedade medieval girava em torno da terra, já que a nobreza era a detentora das terras, a sociedade capitalista vai girar em torno do dinheiro, já que a classe dominante, isto é, a burguesia, é a grande detentora do capital. As ideias dominantes são sempre as ideias da classe dominante. 

A burguesia, como classe revolucionária, “dilacerou os variados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e não deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível ‘pagamento em dinheiro’”.⁵

“É sabido que o dinheiro existe desde as civilizações primevas, como a Mesopotâmia, mas somente nas economias de mercado capitalistas a sociabilidade é construída e articulada pelos nexos monetários”.⁶ Para a burguesia manter o poder, ela precisou construir um mundo que girasse em torno do dinheiro. Um processo que não foi imposto imediatamente, já que a mutação da mentalidade demanda uma longa duração. A nobreza ainda impregnava a alta esfera da sociedade com seu espírito feudal e, de acordo com Arno Mayer, “a terra continuou a ser a principal forma de riqueza e renda das classes dirigentes e governantes até 1914”.⁷ Portanto, o projeto burguês de submeter tudo e todos ao totalitarismo do dinheiro se dará por concluído nos anos 1970. 

A consolidação do projeto burguês 

Após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo sofreu restrições, o que provocou o nascimento do Estado de bem-estar social. O contexto da época levou o Ocidente a uma espécie de capitalismo tardio em que os mercados não desfrutavam da liberdade do período do entreguerras. E com os avanços da economia e das conquistas tecnológicas da URSS, muitos acreditavam que os dias do capitalismo estavam contados.  

Todavia, os detentores do capital resistiram a essas restrições com o objetivo de revitalizar a fé no modo de produção que lhes dava sustentação. De acordo com Wolfgang Streeck, isso ocorreu através de “uma política estatal que comprou com dinheiro tempo ao sistema capitalista, garantindo uma espécie de lealdade das massas ao projeto neoliberal de sociedade enquanto sociedade de consumo de uma forma que a teoria do capitalismo tardio não podia, pura e simplesmente, imaginar”.⁸

A Escola de Chicago desenvolve o paradigma da escolha racional, ponto central na argumentação de Milton Friedman, Theodore Schultz e Gary Becker. De acordo com Joel Spring, “a premissa do paradigma da escolha racional é que o homem age por meio do cálculo entre custo e benefício”.⁹ Foi somente nesse momento que o propósito subjetivo da burguesia, detectado por Marx e Engels em 1848, se concretizou. Foi nesse instante que a antiga classe revolucionária (que se tornou conservadora) “afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalhereisco, do sentimentalismo pequeno-burguês”.¹⁰

  1. A. Hayek é um dos grandes pilares da mentalidade que dará sentido a uma vida que gira em torno do dinheiro. Em seu clássico O caminho da servidão, o austríaco associa liberdade ao dinheiro na sua crítica à economia planificada. “Se lutamos pelo dinheiro, é porque ele nos permite escolher da forma mais ampla como melhor desfrutar os resultados de nossos esforços”.¹¹ Se houvesse outra recompensa, como as oferecidas pelas políticas públicas, como educação, moradia ou alimentação, “significaria apenas que o beneficiário já não teria liberdade de escolha e que o dispensador das recompensas determinaria não somente o seu valor mas também a forma específica em que elas seriam desfrutadas”.¹²Ou seja, o dinheiro é a única recompensa que nos torna livres para termos o que quisermos. Com a posse do dinheiro, ninguém poderá decidir a maneira como devo viver, o que compro, a educação que devo escolher, a moradia e a comida que eu desejo para mim.

Após essa teoria neoliberal, tudo passou a estar submetido à lógica do investimento e da recompensa. Ser inteligente é pensar se vale a pena investir em determinada ação para colher vantagens econômicas pessoais. Isso se transformou em uma mentalidade adentrando o “plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperança, medos, angústias e desejos assimilado e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação”. ¹³É algo que atinge todas as classes sociais, como Jacques Le Goff afirmava: “a mentalidade de um indivíduo histórico, sendo esse um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo”.¹⁴ Assim, a religião, a educação, as relações amorosas, tudo foi colonizado por uma lógica matemática relacionada às vantagens que o indivíduo terá ao adotar uma determinada ação (toda ação passa a ser investimento, como na Bolsa de Valores). Esse fenômeno se tornou parte da mentalidade, e muitos passam a acreditar que a fortuna de um indivíduo está relacionada a sua competência em saber escolher racionalmente as suas ações. 

Foi assim que os matemáticos de Chicago reduziram a economia a números levando à financeirização da economia. A matemática se torna a ciência mais importante porque a política econômica que visa apenas o lucro, a eficácia do cálculo do investimento, tornou-se predominante. 

Thierry Guilbert mostra que esse pensamento se espalhou pela sociedade principalmente porque foi incorporado pelos meios de comunicação. “Esse pensamento econômico hoje globalizado, mas também ‘desistoricizado’ e ‘constituído em modelo e medida de todas as coisas’, propagou-se dos domínios econômicos aos sociais, políticos, esportivos, midiáticos, educativos, ecológicos… Os economistas na origem do discurso neoliberal escolheram, no início dos anos 1980, um duplo modo de difusão: ao mesmo tempo (pseudo) científico, entre pares de uma mesma disciplina e de um mesmo meio social, e midiático (rádio, televisão, cinema, revista, jornais…), permitindo assim ter acesso ao conjunto da sociedade”. ¹⁵

O neoliberalismo, o programa de pensamento que faz a vida girar em torno do dinheiro, conquistou a mídia por ser “uma doutrina fácil de compreender”.¹⁶ Tudo se resume ao 2 + 2 = 4. Essa mentalidade neoliberal faz brotar dos confins mais obscuros da internet os “intelectuais orgânicos da ignorância”, como Olavo de Carvalho, Leandro Narloch etc.. e os indivíduos idiossubjetivados, “incapazes de reflexão, acríticos e subordinados às informações seletivas produzidas pelos meios de comunicação de massa dominados por grupos econômicos que exercem pressão com o objetivo de manipular a opinião pública”. ¹⁷

O fim da soberania do dinheiro  

Se a vida gira em torno do dinheiro porque este é o objeto que a burguesia tem em abundância, a única forma de transformar essa lógica será quando a classe trabalhadora tornar-se classe dominante. A partir desse momento, seguindo a lógica histórica que expomos anteriormente, a vida giraria em torno do trabalho, já que aos que foram excluídos os meios (o dinheiro, na sociedade capitalista) para se adquirir mercadorias, passaram a ter apenas o trabalho (que, na sociedade capitalista, está submetido ao dinheiro, sendo uma mercadoria como outra qualquer). O trabalho, portanto, seria o ponto gravitacional de uma sociedade dominada pelos trabalhadores. 

Pensar em um mundo onde as pessoas trabalham sem remuneração monetária parece utopia, mas um mundo em que a terra fosse um objeto submetido ao dinheiro era uma utopia que se realizou quando a burguesia se tornou a classe dominante. Sendo assim, seria lógico imaginar que o trabalho seria o elemento central dessa sociedade pós-capitalista.  

Escusado dizer que o dinheiro não seria abolido imediatamente, mas deixaria paulatinamente de ser o centro das relações sociais, assim como a terra foi se submetendo ao valor supremo do dinheiro. 

Todos seriam trabalhadores, desde o campo até a construção de instrumentos virtuais e espaciais. Bastaria trabalhar para se ter acesso aos bens produzidos pelo trabalho de todos. O indivíduo não teria (parafraseando Marx e Engels¹⁸) uma única atividade, mas poderia aprimorar-se no ramo que o satisfaça, a produção geral seria regulada pela que me daria a possibilidade de hoje fazer determinada coisa, amanhã outra, pintar pela manhã, desenvolver sites e aplicações online à tarde, analisar dados ao anoitecer, tocar algum instrumento depois do jantar, segundo meu desejo, sem que jamais me tornasse pintor, programador, analista de dados ou músico. 

O indivíduo poderia trabalhar no que quisesse, não para ganhar dinheiro, mas para aprimorar seus dons. Não haveria para quem vender a força de trabalho, já que o dinheiro seria menos importante social e culturalmente. Outras formas de reconhecimento fagocitariam a recompensa em dinheiro. Talvez o mérito fosse de fato reconhecido. O trabalho estaria livre do capital, a criação humana estaria livre das imposições do lucro. Os remédios, a tecnologia, a educação, o meio ambiente, tudo estaria submetido à criatividade humana emancipada do capital. 

Hoje vivemos, nas palavras de Frederic Jameson, em “uma sociedade em que o valor de troca se generalizou de tal ponto que mesmo a lembrança do valor de uso se apagou”.¹⁹ Na sociedade em que a vida giraria em torno do trabalho, o valor de uso seria mais importante que o valor de troca, este, tenderia, com o tempo, a se apagar. 

Enfim, não adianta especular o que seria essa sociedade. Não queremos nos confundir com uma ficção científica soft. O certo é que uma outra sociedade nasceria das entranhas de um mundo dominado pelo dinheiro, com outros valores e propósitos de vida. 

Notas

1 MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 159.

2 WEATHERFORD, J. A história do dinheiro. São Paulo: Negócio Editora, 1999, p. 22-23.

3 Id., p. 11.

4 MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro 1, v. 1, tradução de Reginaldo Sant’Ana, 30.ed., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p. 166.

5 MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, Martin Claret, São Paulo, 2006, p.48.

6 BELLUZZO, L. G. e GALÍPOLO, G. Dinheiro. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021, p. 36.

7 MAYER, A. A força da tradição. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 19.

8 STREECK, W. Tempo comprado. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 54

9 SPRING, J. Como as corporações globais querem usar as escolas para moldar o homem para o mercado. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 25.

10 MARX, K., p. 48.

11 HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto von Mises Brasil, 2010, p. 102.

12 Ibidem.

13 JÚNIOR, H. F. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 184.

14 Apud VAINFAS, R. História das mentalidades e história cultural. In: FLAMARION, C. e VAINFAS, R. (orgs.) Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 139.

15 THIERRY, G. As evidências do discurso neoliberal na mídia. Campinas, SP: Edunicamp, 2020, p. 28.

16 Id., p. 28.

17 CASARA, R. A construção do idiota. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024, p. 143.

18 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 59-60.

19 JAMESON, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997, p. 45.

 

Raphael Fagundes é professor

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