O argumento de que a Ford anunciou o fechamento de suas unidades no país, gerando desemprego para cerca de cinco mil pessoas, em função do número de ações trabalhistas contra ela ajuizadas seria apenas risível se não fosse profundamente revoltante e falso.
Valdete Souto Severo
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 19/01/2021
O argumento de que a Ford anunciou o fechamento de suas unidades no país, gerando desemprego para cerca de cinco mil pessoas, em função do número de ações trabalhistas contra ela ajuizadas seria apenas risível se não fosse profundamente revoltante e falso. Essa afirmação implica na conclusão de que, em última análise, o Direito do Trabalho é responsável pela opção adotada pela multinacional.
O Direito não consegue determinar, por si só, os rumos da economia. É preciso investimento, apoio à indústria, escolhas políticas quanto às taxas de impostos praticadas sobre cada produto. Mais: é preciso que haja emprego seguro e que o dinheiro circule para que as pessoas consumam. Então, embora não seja decisivo, o Direito pode atuar como um mecanismo de incentivo estatal para que a economia funcione. O Direito do Trabalho nasce também para isso, para permitir que, assegurado um salário mínimo e uma jornada máxima, quem depende do trabalho tenha condições e tempo para consumir.
Ocorre que o Direito do Trabalho no Brasil foi recentemente violentado por uma “reforma” que autorizou contratação precária, com salários que não permitem sequer manter alimentação e moradia adequadas. Uma “reforma” que criou regras para vedar o acesso à Justiça e punir trabalhadores e trabalhadoras que ousem discutir suas pretensões em juízo. E tudo em nome da competitividade. Tudo para que grandes empresas, que atuam de modo predatório em nosso país, seguissem usufruindo as benesses de uma regulação jurídica que faz do inadimplemento de verbas salariais um ótimo negócio.
Uma “reforma” que se seguiu ao congelamento com gastos sociais e que foi sucedida por alterações na legislação previdenciária, tornando quase impossível a obtenção de alguns benefícios. E que, quando o Brasil começa a enfrentar a pandemia da Covid-19, foi aprofundada através de medidas provisórias que uma vez mais sacrificaram a classe trabalhadora, chegando ao cúmulo de prever redução salarial em plena crise sanitária. Tudo para que grandes empresas permanecessem usufruindo as benesses de um país em que sonegar direitos trabalhistas não gera consequências significativas.
O STF, chamado a se manifestar sobre a constitucionalidade da redução salarial por acordo individual, concluiu não haver agressão à ordem jurídica. Instado a se posicionar sobre a constitucionalidade da TR para a atualização dos créditos trabalhistas, conseguiu construir um efeito modulatório que simplesmente elimina a atualização desses créditos, já que impõe taxa de juros em lugar da correção. Uma taxa que não perfaz 50% do percentual das perdas sofridas pelo salário, sobretudo nos últimos anos. Tudo para que os devedores de créditos alimentares não sejam “surpreendidos” pelo montante das dívidas que contraíram ao não efetuar pagamento de créditos alimentares e, portanto, sigam atuando num país em que dever na Justiça do Trabalho é melhor do que dever qualquer outro tipo de crédito.
E nem assim a Ford permanecerá. E olha que a empresa fruiu incentivos aos quais dificilmente algum empregador brasileiro teve acesso. Como mostra Jorge Luiz Souto Maior, para que a Ford se instalasse no Brasil na década de 1990, o governo “garantiu desconto de 35% no IPI para os carros montados na região até o fim de 2010”, “abatimento de 65% do ICMS até 2013” e financiamento de R$ 1,3 bilhão. A partir de 2006, os incentivos aumentaram; em 2009, a Ford conseguiu prorrogar por mais cinco anos tais incentivos e a estimativa é que tenham chegado a “R$ 69 bilhões no período de 2000 a 2021”.
Não bastasse tudo isso, ainda se confere para a Ford, com o argumento que instiga esse texto, a posição de vítima e de entidade benemerente que foi “explorada” pelos trabalhadores por meio de seus direitos.
E nem assim a Ford quer ficar.
A utilização predatória de países de capitalismo periférico, por multinacionais que aqui pagam menos, qualificam menos e exigem mais horas de trabalho por dia, não é novidade. Também não é novidade a migração dessas empresas sempre que a margem exorbitante de lucro por algum motivo é reduzida, que a extração já atingiu seu expoente máximo ou que a atenção se desvia para outro foco, tal como age um predador. Lucro, diga-se de passagem, que tais empresas não auferem em países de capitalismo central. É a nova edição da colonização destruidora, que marca a nossa história desde o seu início.
A novidade é que todos esses anos em que a sociedade brasileira absorveu e reproduziu a lógica do colonizador desenvolveu-se uma verdadeira “síndrome de Estocolmo”, pela qual as agressões aqui produzidas precisam ser justificadas da perspectiva de que a responsabilidade é sempre do agredido. A agressão, nesse caso, é contra a sociedade brasileira, que foi usada e abusada por essa empresa e agora é simplesmente descartada.
É certo que esse abuso foi autorizado por governantes que não tiveram a mesma compreensão de soberania do governador Olívio Dutra, que, quando a Ford pretendeu abusar do Estado gaúcho ainda na década de 1990, a impediu de se instalar por aqui.
Ora, a Ford deixou de recolher aos cofres públicos recursos que podiam e deviam haver sido alocados em saúde, educação, moradia e trabalho. O fez sob a promessa de geração de empregos. O que obteve foi um lucro extraordinário. Em 2019, quando já experimentava perdas certamente advindas inclusive dos efeitos da “reforma” trabalhista e de toda a política ultraliberal que retirou capacidade de consumo da população brasileira, a Ford Motor “registrou lucro líquido de US$ 425 milhões, queda ante o resultado de US$ 991 milhões de igual período no ano passado”
Os empregos, de qualquer modo, não justificam o tratamento diferenciado que a empresa recebeu, pois poderiam ter existido em empresas brasileiras, que efetivamente produzem e fazem circular riqueza em solo nacional. É bom que se diga, aliás, que nenhuma empresa ou empresário gera empregos e renda. O emprego é a configuração jurídica da exploração capitalista do trabalho, da qual se extrai a valorização do valor investido, ou seja, o capital. O emprego, com direitos e contribuições sociais, é uma tentativa de extrair desse processo de produção de valor parcela destinada ao interesse público, além de evitar o aviltamento da condição humana de quem depende do trabalho para sobreviver.
O argumento que relaciona a saída da Ford ao número de ações trabalhistas que ela enfrenta é perverso para com a sociedade brasileira, injusto em relação a(os) trabalhadora(e)s que sofrerão diretamente as consequências terríveis dessa decisão empresarial e apedeuta do ponto vista econômico, político e mesmo jurídico.
É uma clara tentativa (cínica, por sinal) de colocar na conta da Justiça do Trabalho o resultado de uma política de cafetinagem que durou enquanto serviu para que essa empresa usufruísse lucros significativos, que nunca foram investidos em melhorias que revertessem para quem vive do trabalho no Brasil.
A única coisa que 4,9 mil demandas comprovam é que a Ford, apesar de todo o privilégio que teve para concorrer em condições de desigualdade em solo brasileiro, ainda assim desrespeitou direitos trabalhistas, agredindo a ordem jurídica. Sim, pois do contrário não haveria pedidos procedentes em mais de 47% dos processos, nem teriam sido realizados acordos em mais de 7% deles.
É bom lembrar que ainda em junho de 2019 a empresa já anunciava que iria “eliminar 12 mil empregos”, fechar cinco fábricas e cortar turnos “para voltar à lucratividade”. Também anunciou que gastaria “bilhões de dólares para desenvolver veículos elétricos e autônomos junto com a Volkswagen“, em uma “reestruturação” que implicaria “revisão de sua linha de produtos nos principais mercados globais, como China e Europa”. Na reportagem, consta que naquela época, meados de 2019, a Ford havia gastado “apenas” US$ 2,2 bilhões dos US$ 11 bilhões previstos para a “reestruturação”.
Não é difícil, portanto, saber por que a Ford pretende deixar o Brasil. Difícil mesmo é compreender por que algumas pessoas e instituições seguem prestando esse desserviço à compreensão do tempo presente, aproveitando-se de uma situação trágica como o fechamento das fábricas da Ford em nosso país para insistir em uma ladainha que já foi entoada e desmascarada várias vezes ao longo dos últimos anos, buscando deliberadamente interditar o que precisa ser discutido.
Como refere a nota da Associação Americana de Juristas, o que precisa ser discutido e exigido dessa empresa é a compreensão de que “todo o seu patrimônio, situado no Brasil não pode ser levado embora, devendo ser revertido aos trabalhadores e trabalhadoras que integraram suas unidades produtivas, para, caso queiram, desenvolvam nelas uma produção em modelo de auto-gestão ou, simplesmente, os leiloem”.
Apenas assim uma parte do abuso praticado com o consentimento do Estado brasileiro nas últimas décadas, e bem assim o drama das famílias trabalhadoras de Taubaté e Camaçari, será de algum modo minimizado.
Valdete Souto Severo é juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD).