Políticas (e lacunas) da proteção do emprego e da renda

Um dos problemas mais críticos atuais é a desproteção de trabalhadores que no momento da eclosão da crise estavam desempregados ou que ficarão sem emprego nos próximos meses. Imagem: Gerd Altmann/Pixabay

A crise econômica se agudizou rapidamente à medida que as expectativas empresariais se deterioravam e as necessárias medidas de isolamento social iam sendo implementadas país afora. Como reflexo, as aludidas estimativas de crescimento econômico adentraram o terreno negativo no final de março (-0,59% no último dia daquele mês).

Tiago Oliveira e Clóvis Scherer

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 14/04/2020

Passada pouco mais de uma década desde a crise financeira internacional de 2008, a economia mundial caminha para uma catástrofe, desta feita empurrada pela pandemia do coronavírus. Nesse cenário, o relaxamento das políticas de austeridade, a implementação de políticas fiscais anticíclicas e a formação paulatina de um novo consenso em torno de uma atuação mais ampla e profunda do Estado na economia, recolocaram na ordem do dia as políticas de defesa do emprego e da renda nos quatro cantos do mundo.

No Brasil, a crise do coronavírus deteriorou rapidamente uma situação econômica já altamente adversa. Entre 2014 e 2019, anos de grave crise política e de austeridade fiscal, as taxas de crescimento econômico foram pífias – o PIB per capita caiu 7,5% entre 2013 e 2019 – enquanto que o mercado de trabalho tornou-se muito mais excludente (a taxa de desocupação passou de 6,8% em 2014 para 11,9% em 2019) e precário (no mesmo período o emprego protegido recuou de 49,8% para 45,4%). Em 2020, as estimativas de crescimento econômico para o ano divulgadas pelo Banco Central indicavam, ainda no período pré-crise, um movimento claro de desaceleração, registrando índices abaixo de 2% já no início do mês de março.

Desde então, a crise econômica se agudizou rapidamente à medida que as expectativas empresariais se deterioravam e as necessárias medidas de isolamento social iam sendo implementadas país afora. Como reflexo, as aludidas estimativas de crescimento econômico adentraram o terreno negativo no final de março (-0,59% no último dia daquele mês). Nesse contexto, o governo relutou em adotar medidas concretas e insistiu na agenda da desregulamentação do trabalho. O maior exemplo foi a edição da MP 927 que permitia a suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses sem negociação coletiva e, sobretudo, qualquer remuneração no período.
Diante da reação contrária, o governo recuou nesse dispositivo, mas manteve as demais propostas flexibilizantes da jornada, assim como manteve a tramitação de outra MP, de número 905, que aprofunda a reforma trabalhista de 2017.

Pressão

O governo somente se moveu para uma agenda preocupada com a proteção social dos trabalhadores a partir de intensa pressão da sociedade e do Congresso Nacional. O poder legislativo tomou a iniciativa de criar a Renda Básica de Emergência, que concede às famílias inscritas no Cadastro Único, aos Micro Empreendedores Individuais e aos trabalhadores informais, com renda familiar de até três salários mínimos, um benefício de R$ 600,00 por três meses, que podem ser renováveis. Segundo o Ipea, dependendo da capacidade do Programa em atingir o público não cadastrado, a cobertura do benefício pode variar entre 93,6 e 117,5 milhões de pessoas (entre beneficiários e seus familiares), o que significa até 55% da população brasileira. O Dieese estima em 42,3 milhões de potenciais beneficiários.

O governo Bolsonaro, por sua vez, editou em primeiro de abril a Medida Provisória nº 936, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Previsto para durar até 31 de dezembro deste ano, enquanto persistir o estado de calamidade pública, o Programa instituiu o pagamento de um Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda consoante a observação de uma das seguintes situações: redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; e suspensão temporária do contrato de trabalho.

De acordo com o programa, a jornada de trabalho e o salário poderão ser reduzidos por acordo individual entre empregado e empregador, em 25%, 50% ou 70%. Se a redução da jornada for negociada coletivamente, será possível adotar-se outros percentuais que não estes. A redução tem prazo máximo de três meses de duração, enquanto que a suspensão do contrato poderá durar até 60 dias, mesmo que em dois períodos de 30 dias.

O valor do benefício terá como base de cálculo o valor do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito e equivalerá ao percentual de redução da jornada. Nos casos de suspensão do contrato de trabalho, distinguem-se duas situações: nas empresas com faturamento inferior a R$ 4,8 milhões (limite máximo do Simples Nacional), o benefício será de 100% do valor do seguro-desemprego; acima desse faturamento, o benefício reduz-se a 70% do valor do seguro-desemprego e a empresa é obrigada a manter o pagamento de 30% do salário.

A Medida Provisória não garante a manutenção dos empregos, sequer dos abrangidos pela redução de jornada ou suspensos, pois o empregador poderá rescindir os contratos sem justa causa mediante pagamento de indenização adicional. Ademais, promove-se a negociação individual da redução da jornada ou suspensão do contrato, num contexto de alta fragilidade dos trabalhadores, e estabelece-se um papel bastante limitado à intervenção do sindicato (somente para negociações de redução de jornada acima de 25% e para empregados com salários entre 3 salários mínimos e R$ 12.200). Segundo a RAIS, em 2018, cerca de 84% dos contratos de trabalho tinham remuneração média de até 3 salários mínimos.

Alcance limitado

Isto posto, importa refletir em que medida o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda é capaz de dar respostas adequadas à crise atual e preservar tanto quanto possível os circuitos de formação da renda e do emprego da economia brasileira.

Em primeiro lugar, cumpre ter em mente que programas dessa natureza têm, em contextos de mercados de trabalho subdesenvolvidos como o brasileiro, um alcance necessariamente limitado, dado o baixo peso que o assalariamento no setor privado com registro em carteira de trabalho apresenta no total da ocupação (35,6% em 2019, de acordo com a Pnad Contínua). Isto põe na ordem do dia a necessidade de que programas como este sejam acompanhados por políticas de sustentação da renda dos trabalhadores por conta própria, domésticos e mesmo dos subordinados a estabelecimentos que, no entanto, submetem-se a relações de trabalho assalariadas não registradas em carteira de trabalho. Este público pode estar apenas parcialmente coberto pela Renda Básica de Emergência, que requer a inscrição no Cadastro Único e atendimento aos requisitos de elegibilidade previstos na lei.

Uma segunda dimensão do problema recai sobre a capacidade de sustentação da renda do trabalhador elegível pelo Programa. Nesse sentido, o fato de ter como referência o seguro-desemprego para o cálculo do Benefício, e não o valor do salário do trabalhador, implica que o poder de compra dos trabalhadores que possuem salários com valores próximos ao do salário mínimo é relativamente mais bem protegido, decrescendo à medida que o rendimento do trabalhador se afasta do salário de base da economia. De acordo com cálculos destes autores, a taxa de reposição do benefício para trabalhadores de até três salários mínimos, no caso da redução de jornada de trabalho e salário, varia de 71% a 90%, a depender da magnitude da aludida redução. A suspensão do contrato de trabalho, porém, implica em taxas de reposição bem mais baixas. Para a faixa salarial mencionada, a redução pode ser de até 42% (reposição de 58%), para trabalhadores em empresas com faturamento até R$ 4,8 milhões, e, para os trabalhadores em empresas com faturamento superior a esse limite, de até 29% (reposição de 71%).

Uma terceira questão refere-se ao fato de que a adesão ao Programa é incerto e não se sabe em que medida os empregadores irão preferir essa via em detrimento do tradicional ajuste pelo emprego. A legislação não protege os empregos formais e a demissão sem justa causa é prerrogativa do empregador. Como há grande incerteza quanto à duração da crise econômica, o prazo máximo de três meses de duração do Programa pode ser curto demais para motivar o empregador a optar pela redução da jornada ou suspensão do contrato. Nesse caso, ele pode preferir demitir agora ao invés de se comprometer com a manutenção dos empregos. O prazo de três meses é claramente insuficiente diante de uma crise que terá desdobramentos para além da fase de desaceleração do contágio da epidemia, arrastando-se para o ano de 2021.

Desproteção

Nesse sentido, um quarto problema, talvez mais crítico, é a desproteção de trabalhadores que no momento da eclosão da crise estavam desempregados ou que ficarão sem emprego nos próximos meses. Trabalhadores que forem demitidos nesse momento terão como recurso o saque de suas contas no FGTS e, principalmente, o seguro-desemprego. Os saques autorizados recentemente para estimular a economia podem vir a fazer falta para trabalhadores que vierem a ser demitidos. E os requisitos de tempo no emprego, que se tornaram mais exigentes no final de 2014, para acesso ao seguro-desemprego, limitarão a efetividade protetiva desse mecanismo.

Em março de 2020, foram emitidos 2,4 milhões de cheques de seguro-desemprego, frente a 12,3 milhões de pessoas desocupadas no trimestre encerrado em fevereiro. Segundo algumas projeções, a taxa de desemprego pode subir para 30% da força de trabalho, o que representaria algo próximo a 20 milhões de pessoas adicionais ao contingente de desempregados. Num cenário como este, o seguro-desemprego será praticamente insignificante. Ademais, a duração do desemprego tende a se prolongar muito além dos cinco meses que é o máximo de parcelas previstas na legislação. As medidas anunciadas até o momento, quer a Renda Básica, quer o Benefício Emergencial, não atacam este problema deixando milhões expostos à perda completa de renda quando a busca por novo emprego ou ocupação será inútil.

Concluindo, a crise atual promete ser a mais grave dos últimos trinta anos. Face às suas consequências, é de fundamental importância que o Estado brasileiro mobilize todos os instrumentos ao seu dispor para minorar os impactos adversos sobre a atividade econômica e o mercado de trabalho, protegendo os empregos e a renda dos trabalhadores, em especial dos mais vulneráveis. Nessa perspectiva, a Renda Básica Emergencial e o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda são iniciativas bem-vindas, mas que apresentam lacunas que precisam ser preenchidas. Torna-se necessário: 1) alcançar os trabalhadores informais que não foram contemplados pela Renda Básica; 2) elevar a taxa de reposição da Renda Básica e do Benefício Emergencial; 3) ampliar, desde já, a duração dos benefícios para motivar a adesão e fazê-los alcançar a fase de recuperação da crise; 4) aumentar o número de parcelas do seguro-desemprego e estendê-lo a quem está em desemprego. O momento exige a intervenção do estado pelo gasto e pela proteção social, com o consequente abandono das teorias ultrapassadas e fracassadas de austeridade fiscal e das falsas promessas das reformas neoliberais. Da crise do coronavírus devemos tirar como lição a necessidade permanente de valorização dos sistemas públicos de saúde, da manutenção de sistemas públicos de emprego preparados para eventos críticos e de se estabelecer de uma vez por todas a garantia universal de renda básica.

Tiago Oliveira é economista, graduado pela Universidade Federal da Bahia, e Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. É pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. 

Clóvis Scherer é economista, com graduação pela Universidade Federal de Santa Catarina, e Mestre em Estudos do Desenvolvimento pelo International Institute of Social Studies da Universidade Erasmus de Rotterdam. Trabalha como economista no DIEESE.

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