Piso da enfermagem: legisladores contadores?

Fotografia: Unplash

Os problemas do controle semiprocedimental que suspendeu o piso na ADI nº 7.222.

Roberta Simões Nascimento e Natasha Salinas

Fonte: Jota
Data original da publicação: 14/09/2022

No último dia 4 de setembro, como noticiado pelo JOTA, o ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu, por medida cautelar na ADI nº 7.222, a Lei 14.434/2022, que fixou o piso da enfermagem, em nível nacional.

A decisão acolheu argumentos levantados pela autora da ação, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), quanto aos vícios do processo legislativo que culminou na lei. O principal vício formal consistiria da usurpação da iniciativa privativa do poder Executivo para propor a lei que implicou em aumento de remuneração de servidores públicos.  

Argumentos materiais também foram admitidos pelo ministro para conceder a cautelar, como a alegação de que a Lei 14.434/2022 estaria violando o princípio federativo, ao interferir drasticamente na autonomia financeira de Estados e Municípios. 

Mas a decisão do ministro Barroso não se restringiu a questões puramente formais ou materiais de constitucionalidade. Há uma importante linha de argumentação adotada pelo ministro, presente no item IV (página 23) do seu voto, que não pode ser caracterizada como um controle exclusivamente formal, tampouco exclusivamente material.  

O aqui denominado controle semi-procedimental[1] do processo legislativo foi decisivo para suspender os efeitos da Lei 14.434/2022. É sobre esse aspecto da decisão do ministro que se passa a comentar. 

Em resumo, o ministro acatou o argumento de que o processo legislativo que instruiu a Lei 14.434/2022 teria se baseado em estudo de impacto financeiro inadequado, pois estimou o custo direto dos novos pisos salariais, mas “não comprovou a viabilidade econômica de sua implementação”.  

A hipótese é a de que o grupo de trabalho encarregado de produzir o estudo de impacto financeiro não teria analisado adequadamente os “efeitos econômicos” da adoção do piso da enfermagem, que se traduziriam em demissões em massa de profissionais, diminuição da qualidade e oferta dos serviços de saúde dos sistemas público e suplementar de saúde. 

É curioso que o ministro prontamente aceitou os estudos apresentados pela CNSaúde em conjunto com outras entidades representativas como “evidências” de que os impactos da nova lei seriam mais prejudiciais do que benéficos ao setor de saúde. O “detalhe” é que o único estudo citado na decisão teve por metodologia a entrevista de quase 2,5 mil entidades privadas hospitalares, das quais foi possível extrair a percepção dessas entidades sobre os efeitos da adoção do referido piso salarial (§47 do voto). Qual é a fiabilidade desse método de quantificação do impacto? 

Ou seja, para suspender a lei, o ministrou considerou que o estudo econômico desenvolvido pelo grupo de trabalho parlamentar foi inadequado, ao mesmo tempo em que considerou como satisfatórios os referidos estudos apresentados pela autora. Ocorre que, além de não justificar adequadamente por que os estudos desenvolvidos pelos parlamentares não são confiáveis, o ministro ainda encampou uma objeção quanto à “dificuldade de implementação dos pisos” (§53), que nada tem a ver com a constitucionalidade do procedimento ou conteúdo da lei. 

O argumento ad terrorem de que o piso aumentaria o desemprego entre aqueles que pretende beneficiar; geraria a falência de unidades de saúde ou o repasse dos custos aos usuários de serviços privados de saúde; reduziria a oferta desses serviços por particulares; e acarretaria sobrecarga do sistema público é infirmada a partir da “unanimidade” das entidades representativas do setor de hospitais (§48). Mas até que ponto isso é uma “evidência” para a decisão legislativa ou uma simples valoração política dessas consequências? A dificuldade da legislação baseada em evidências é debatida aqui

Nesse cenário, as perguntas que merecem ser feitas são as seguintes: 1) tribunais constitucionais podem declarar inconstitucionais leis cujos processos legislativos não foram devidamente instruídos por estudos que analisam seus impactos econômicos e sociais? 2) juízes possuem condições institucionais e materiais para avaliar estudos de impacto legislativo realizados no curso dos processos legislativos? 3) quais os desafios, ou problemas práticos, envolvidos em um eventual reconhecimento do controle judicial sobre as escolhas metodológicas adotadas nos processos de formação da lei? 

Como neste espaço não será possível responder todas essas questões, cabe um parêntese para indicar que tribunais mundo afora têm exercido esse controle judicial semi-procedimental, na linha do já comentado em coluna passada. Já é uma realidade em países como Colômbia, Estados Unidos, Israel, Peru e Alemanha, além do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Alguns desses casos são comentados aqui

Em parte, subjaz ao controle semi-procedimental, a chamada “virada legística” que marcou as últimas décadas de pensamento jurídico europeu e vem propiciando a aplicação de modelos de decisão racional a processos de produção de leis. Consequentemente, essa tendência tem surtido efeitos no controle judicial do processo legislativo em todas as partes.  

Uma das decisões paradigmáticas nesse sentido foi o caso Hartz IV, julgado em 2010 pelo Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 125, 222). Aí, declarou-se inconstitucional uma lei que fixava um auxílio social básico não contributivo para cada filho, sob o fundamento de que os legisladores deixaram de fundamentar os valores a partir da apresentação dos métodos adotados para determinar as quantias do auxílio, consistente em 345 euros para o 1º filho, 90% do valor para o 2º filho, e 80% do valor original para os demais filhos. 

No caso, mesmo considerando que os valores do auxílio eram suficientes para garantir o mínimo existencial, os magistrados exerceram um controle que denominaram de “baixa intensidade” do conteúdo final da lei. Ou seja, o tribunal não decidiu que o resultado da lei é materialmente incompatível com a Constituição, mas única e exclusivamente que o modo pelo qual ela foi produzida não era suficientemente racional para a promulgação do projeto. 

No entanto, diferentemente do caso Hartz IV – em que os legisladores deixaram de apresentar estudo demonstrativo dos valores do auxílio básico –, no processo legislativo que culminou na Lei 14.434/22, o referido estudo foi apresentado. Restou atendido o artigo 113 do ADCT, pelo qual “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.  

O artigo 113 do ADCT não prevê a necessidade de que esse estudo indique a origem dos recursos necessários para cobrir essa despesa, como pareceria exigir o ministro Barroso em sua decisão. A discriminação da origem dos recursos seria necessária apenas para a formulação de leis orçamentárias, conforme prevê o artigo 166, §3º, da CF, ou nos termos da LRF, artigos 16 e 17.  

Isso não significa, no entanto, que os parlamentares não tenham considerado a efetiva viabilidade econômico-financeira da instituição do piso salarial dos enfermeiros. Esta foi aferida a partir de um conjunto probatório amplo, que incluiu desde negociações com entidades patronais do setor, até o recebimento de mais de 500 documentos provenientes de Casas Legislativas, prefeituras, associações e entidade de saúde favoráveis à medida. 

No entanto, na decisão do ministro Barroso, a percepção desses atores teve menor peso do que a percepção das entidades representadas pela CNSaúde para a adoção do piso da enfermagem. 

No dispositivo da decisão (§60), lê-se que a Lei 14.434/2022 foi suspensa até que sejam aportados aos autos os subsídios necessários à avaliação de seus impactos no prazo de 60 dias, à luz dos quais a cautelar será reapreciada. Aqui, há o uso claramente inadequado desse instrumento (para sanar supostas dúvidas epistêmicos que apenas mascaram a discordância quanto ao mérito da decisão legislativa).  

Estaria o ministro sugerindo que os legisladores agora também precisam ser “contadores”, apresentando uma memória de cálculos detalhada, com discriminação das metodologias da estatística e da matemática escolhidas? Em relação a quais tipos de proposições isso deverá ser feito? Aquelas sem a estimativa de impacto passarão a ser devolvidas? Essa medida chegou a ser adotada por um tempo, mas logo foi abandonada. 

Como se vê, o controle semiprocedimental surge como um “substituto” do controle material das decisões legislativas. Sua ratio pareceria ser das mais nobres: uma espécie de autocontenção do Judiciário, diante da ampla margem de atuação política, e das dificuldades para a indicação de uma inconstitucionalidade material, dadas as limitações institucionais e materiais para examinar, por exemplo, a proporcionalidade e razoabilidade das opções. 

Ocorre que a opção pelo controle de constitucionalidade semiprocedimental ou de baixa intensidade produz, no mínimo, um paradoxo: se juízes não dispõem de capacidade institucional para analisar o mérito das decisões legislativas, como eles serão capazes de avaliar se o método adotado para a adoção de uma opção legislativa foi aplicado corretamente? 

Levados às últimas consequências, os efeitos do controle semiprocedimental são irracionais, uma vez que os tribunais passariam a ter poderes de declarar a inconstitucionalidade de leis pela suposta falta de observância de “pautas metodológicas” (que sequer contam com previsão legal ou constitucional). Pior, os tribunais fariam isso sem ter condições efetivas de avaliar se os métodos empregados pelos legisladores eram insuficientes ou se realmente estavam equivocados em cada caso.  

O risco é o Poder Judiciário, funcionado como terceira Casa Legislativa de fato, usar esse plus de exigências metodológicas e justificatórias por parte dos legisladores (indo além do que determina a CF) como mero pretexto para substituir os juízos político e de ponderação próprios da oportunidade e conveniência de se legislar. Seria o triunfo do “tricameralismo à brasileira”.

Notas

[1] Bar-Siman–Tov é o autor da expressão. Cf. BAR-SIMAN-TOV. Semi-Procedural Judicial Review, Legisprudence, v. 6, n. 3, p. 271-300, 2013.

Roberta Simões é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB). Advogada do Senado Federal desde 2009. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha. Doutora e mestre em Direito pela UnB.

Natasha Salinas é professora do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio. Doutora e Mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School

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