A presença feminina no mercado de trabalho é um tema frequente nos debates sobre igualdade de gênero. As estatísticas revelam que as mulheres recebem salários inferiores aos dos homens para desempenhar as mesmas funções e são minoria nos altos cargos de gestão. Para a pesquisadora Maria Cecília Máximo Teodoro, professora de Direito do Trabalho da PUC de Minas Gerais, a legislação brasileira, além de não ser eficaz para diminuir esse quadro de preconceito, até mesmo colabora para o acirramento do problema. “Muitas normas justrabalhistas baseiam-se na divisão sexual do trabalho e, sob o intuito de proteger as mulheres, acabam as deixando mais desprotegidas. Isso é o que chamamos de impacto adverso da norma. Ela parece ter um fim nobre, de gerar igualdade, mas seu verdadeiro resultado é causar mais discriminação”, avalia a jurista.
A divisão sexual do trabalho, conforme Maria Cecília, pode ser entendida a partir de duas esferas: a reprodutiva e a produtiva. A esfera reprodutiva está ligada ao âmbito doméstico e aos cuidados com os filhos, ao passo que a produtiva relaciona-se com o mercado, a circulação de bens e riquezas, e ao objetivo de lucro. Historicamente, a esfera reprodutiva foi reservada à mulher, e a produtiva, ao homem. Ao ingressar no mercado do trabalho, a mulher acumulou ambas as responsabilidades, pois ainda é comum ela ser a única encarregada dos afazeres domésticos. Também em razão de ser associada à esfera reprodutiva, a mulher ocupou a maior parte dos trabalhos precarizados, como é o caso dos trabalhos em tempo parcial e das terceirizações. “São postos em que há maior circulação de trabalhadoras, maior rotatividade, o que permite que a mulher flexibilize seus afazeres com as obrigações em casa e o cuidado com os filhos”, afirma a pesquisadora.
Para demonstrar a gravidade da situação, Maria Cecília cita a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de 2010 do IBGE, que revela que as mulheres recebem, em média, em torno de 72% dos rendimentos percebidos pelos homens para realizar as mesmas funções. A jurista também faz referência à pesquisa do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que traçou o perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e constatou que as mulheres, embora representem 51,4% da população brasileira, só ocupam 13,6% dos altos cargos de gestão das empresas. Apesar disso, conforme o censo de educação superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o nível de instrução das mulheres é superior ao dos homens: a população feminina apresenta uma média de sete anos e meio de estudo, e a masculina, apenas sete. As mulheres também são maioria entre os brasileiros matriculados na Universidade (55,5%) e entre os que concluem o curso superior (59,2%). “As mulheres, embora sejam maioria e, em média, tenham uma qualificação superior à dos homens, crescem menos nas empresas. Por quê?”, questiona a pesquisadora.
Impacto adverso das normas
Maria Cecília elenca algumas normas que parecem proteger as mulheres, mas geram o efeito contrário. Um primeiro exemplo é a diferença de tempo entre a licença maternidade, de 120 dias, e a licença paternidade, de apenas cinco dias. “Atualmente temos a possibilidade de adoção por casais homoafetivos, ou até mesmo por uma única pessoa. A legislação precisa adaptar-se aos novos tempos, mas ainda busca uma lógica ultrapassada, na qual o filho é apenas da mãe”, critica. A pesquisadora também cita as Leis 8.212 e 8.213, que em 1981 estenderam os benefícios previdenciários do salário maternidade à adotante ou guardiã, ou ainda ao cônjuge ou companheiro nos casos de morte de genitora. “Se, no momento do parto, a criança sobrevive e a mãe morre, o benefício será concedido ao pai. Isso mostra que o benefício não é para a mãe, ele existe em razão do nascituro, que precisa de cuidados. É claro que a mãe, que acabou de parir, também precisa de cuidados. Mas nada impede que o pai também tenha direito à licença”, analisa. A jurista comenta que diversos países europeus utilizam a expressão “licença parental”, cujo nome já afasta a questão de gênero como critério para a garantia do direito. “Isso é importante porque esses direitos também direcionam-se ao filho, que é do casal. O problema é que no Brasil apenas a genitora é protegida. A consequência é que a mulher acaba tornando-se mais cara do que o homem no mercado de trabalho”, avalia.
A pesquisadora também cita alterações normativas que pareciam trazer avanços para a igualdade de direitos, mas que foram tímidas demais para alcançar esse objetivo. É o caso da lei 13.257/2016, que adicionou à CLT o direito de o empregado deixar de comparecer ao serviço um dia por ano, sem prejuízo do salário, para acompanhar o filho de até seis anos a uma consulta médica. “A sociedade brasileira de pediatria preconiza que, até o primeiro ano de vida, a criança deve fazer em torno de oito consultas médicas. E dos dois aos sete anos, são quatro consultas anuais. Se o trabalhador só tem direito a um dia por ano, quem irá acompanhar a criança nessas outras datas?”, questiona. Essa mesma lei assegurou o direito de o empregado ausentar-se do trabalho por até dois dias para acompanhar a esposa ou companheira em consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez. “Estes foram pequenos avanços, mas ainda insuficientes, para a extensão de certos direitos aos homens no mercado de trabalho. É preciso pensar também sob uma perspectiva econômica, porque com a equiparação de direitos, homens e mulheres teriam o mesmo custo”, explica. Maria Cecília também vê problemas em outros dispositivos da legislação que asseguram exclusivamente às mulheres direitos que deveriam ser garantidos a todos os trabalhadores, independentemente do gênero. Entre eles, o artigo 373-A da CLT, que proíbe a revista íntima das empregadas pelo empregador, mas não garante a mesma proteção aos homens. “Não se trata aqui de retirar-se as normas de proteção ao trabalho da mulher, mas de pensarmos na sua extensão ao homens. Porque sua aplicação apenas às mulheres não se justifica”, pondera.
Reforma trabalhista e efeito backlash
Ao avaliar os efeitos da Reforma Trabalhista no mercado do trabalho da mulher, Maria Cecília utiliza o conceito de “efeito backlash“. Este fenômeno ocorre quando uma decisão do Poder Judiciário gera grande comoção, e então o poder Legislativo, por sentir-se controlado pelo Judiciário e no intuito de proteger-se, atua para minar esta decisão. Conforme a pesquisadora, isso ocorreu com o artigo 384 da CLT, revogado pela Reforma Trabalhista. Originalmente, o artigo previa um intervalo de 15 minutos de descanso para a mulher antes de entrar no período de hora-extra. Esta norma vinha sendo interpretada pelos TRTs, e houve decisões afirmando que a leitura mais correta e condizente com a Constituição Federal seria a de estender também ao homem esse intervalo. “Não havia justificativa adequada, proporcional e necessária para que esse intervalo fosse concedido apenas à mulher, isso acabaria onerando sua força de trabalho no mercado”, explica. No entanto, com a Reforma Trabalhista, acabou ocorrendo no Poder Legislativo o efeito backlash: o artigo foi revogado, e foi retirado de todos os trabalhadores o direito a esse intervalo.
Maria Cecília também criticou fortemente a proposta original da Reforma Trabalhista que previa que, nos casos de insalubridade em grau médio ou mínimo, a mulher gestante só seria afastada do local de trabalho mediante apresentação de atestado médico. A jurista defende que não caberia à legislação infraconstitucional alterar normas de saúde, segurança e higiene do trabalho. Além disso, Maria Cecília ressalta que a mulher grávida, que já sofre uma dupla discriminação, é colocada em uma situação difícil se tiver que decidir junto a seu médico sobre a necessidade do afastamento, pois terá o receio de ser tachada como má funcionária. “Caso ela decida ficar no trabalho durante a gestação, podemos ter um sério risco ao bebê, que é objeto da real proteção da norma”, afirma. Atualmente, o dispositivo da Reforma Trabalhista sobre o afastamento da mulher gestante de atividades insalubres em grau médio ou mínimo foi alterado pela Medida Provisória 808/2017, que retomou a previsão anterior de afastamento automático, mas acrescentou que a trabalhadora pode manter-se nessas atividades caso apresente atestado médico que autorize a permanência.
Outras alterações polêmicas na legislação trabalhista foram as que permitiram a terceirização na atividade fim e o trabalho intermitente. “São mudanças que impactam diretamente no trabalho das mulheres, porque elas são esmagadora maioria nas áreas típicas dessas relações de emprego, conforme o relatório do Dieese de 2017”, alerta. As estatísticas também revelam que as trabalhadoras terceirizadas recebem, em média, salários 27% menores do que as contratadas diretamente pelo empregador. A jurista defende que as alterações trazidas pela reforma ainda precisam ser interpretadas pelos seus aplicadores, pois é no momento da interpretação que se constrói o real significado da norma. “É uma oportunidade para que a gente faça uma leitura constitucional e atualizada, com base nos princípios justrabalhistas, colocando então a mulher em uma situação de real proteção no mercado de trabalho. Isso não é feito apenas tornado-a mais cara no mercado. A extensão dos direitos também ao homem acaba deixando a mulher em condições de igualdade”, conclui.
O seminário completo de Maria Cecília Máximo Teodoro sobre o impacto da legislação e da Reforma Trabalhista na proteção da mulher pode ser acessado aqui.
Fonte: TRT-4
Data original da publicação: 08/03/2018