O medo nos deixou suscetíveis às crises cíclicas e cada vez mais corriqueiras do capitalismo global, e é por medo que aceitamos a redução de direitos cada vez que elas acontecem. O Brasil precisa, definitivamente, superar essa política do medo.
Almir Felitte
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 23/11/2017
A reforma trabalhista entrou em vigor na semana passada, mesmo com a maioria do país tendo se mostrado contrária à mudança. O governo e o empresariado, principais interessados nesse novo sistema de trabalho, colocavam a geração de novos empregos como principal motivo para a reforma.
Outro motivo apontado foi, ainda, um suposto excesso de direitos trabalhistas que acabava atravancando o investimento e o desenvolvimento no país. Nenhum deles, porém, era verdadeiro.
As falácias de que a reforma pode ser benéfica ao trabalhador, valorizando-o, ou de que ela possa gerar mais empregos já foram discutidas à exaustão por especialistas, inclusive neste mesmo espaço, e, por isso, não explorarei este aspecto.
Aliás, basta observar a Espanha, onde uma reforma semelhante, em 2012, fez a média salarial desabar e criou uma série de cargos de jornada parcial, provocando um êxodo de trabalhadores espanhóis para o resto da Europa.
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No Brasil, onde a organização de trabalhadores e sindicatos sempre foi precária, tudo indica que não estejamos preparados para a flexibilização da CLT. Porém, para além da precarização do trabalho, é preciso expor, também, a falácia de que a redução de direitos pode acelerar o desenvolvimento do país e facilitar a vida de pequenos empreendedores.
Isso porque é de uma desonestidade e covardia enormes colocar a culpa do subdesenvolvimento do país em trabalhadores e aposentados como o governo e as elites têm tentado fazer.
Existem uma série de fatores que contribuem para o baixo desenvolvimento da economia brasileira e para as constantes dificuldades que enfrentam as pequenas e médias empresas e os negócios familiares.
O principal deles, talvez, seja o injusto sistema tributário brasileiro. Assim como acontece com as pessoas físicas, a carga tributária do nosso país incide de forma muito mais pesada sobre as pessoas jurídicas que possuem rendimentos não tão altos, sendo mais leve com relação às empresas gigantes que auferem lucros enormes.
A começar pela tributação de lucros e dividendos, mais uma das “jabuticabas jurídicas” do Brasil. Ou melhor, a falta de tributação, afinal, ao lado da Estônia, somos os únicos que não cobram impostos sobre os dividendos, restringindo-se aos lucros.
No geral, esse sistema de tributação funciona, no mundo, da seguinte forma: as empresas pagam imposto sobre seus lucros e, após isso, eles são distribuídos entre os acionistas na forma de dividendos. Estes dividendos, então, ao serem declarados pelas pessoas que os recebem, passam por uma nova tributação.
No Brasil, o sistema também era assim até 1995, quando reconheceu-se que ele implicava em uma espécie de bitributação, o que seria inconstitucional. A partir de então, passou-se a taxar apenas o lucro das empresas, isentando-se os dividendos.
Dessa forma, segundo dados da ONU, a tributação sobre lucros e dividendos, que atinge uma média de 48% nos países da OCDE, fica abaixo dos 30% no Brasil. Para se ter uma ideia, esse índice chega a 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos EUA, todos países altamente desenvolvidos e industrializados.
Além dessa discrepância em relação aos outros países, a tributação sobre as empresas acaba ficando desbalanceada. Por apresentar apenas impostos sobre o lucro, o Brasil acaba taxando-o de forma mais pesada que os outros países, tendo, contudo, uma arrecadação menor.
Enquanto os impostos brasileiros sobre o lucro podem ultrapassar os 34%, países como Áustria (25%), Chile (22,5%) e Reino Unido (21%) podem tributá-lo menos, já que reservam uma porcentagem dos impostos para os dividendos (25%, 40% e 37,5%, respectivamente).
Ao fim, mesmo com um imposto menor sobre o lucro, a arrecadação desses países sobre ele acaba sendo maior que a nossa (43,7%, 40% e 45,1%, contra apenas 34% no Brasil), e os empresários são encorajados a reinvestirem mais na própria empresa.
Para se ter uma ideia da capacidade que esse sistema tem de concentrar riqueza, um estudo do IPEA revelou que, entre os 71 mil brasileiros mais ricos, 51 mil receberam dividendos em 2013.
Ou seja, os dividendos constituem boa parte da renda dos mais ricos do país, e sua falta de tributação contribui para a alta concentração de renda.
Alta concentração, certamente, escorre também para o mundo empresarial
Grandes empresas acabam tendo uma capacidade de acumular renda muito maior que as pequenas. Num país onde a captura regulatória é a regra, ou seja, onde empresas com forte poder financeiro influenciam facilmente as agências regulatórias e o poder estatal, esse acúmulo leva, invariavelmente, aos oligopólios e monopólios no setor privado.
A tributação de dividendos poderia, em parte, reduzir esses problemas de concentração e, de quebra, poderia aumentar consideravelmente a arrecadação estatal. Segundo informações do Senado, onde tramita o PL 588/15, essa tributação de dividendos, feita a uma alíquota geral de 15%, poderia gerar R$ 43 bilhões por ano, mesmo isentando-se as empresas menores incluídas no Simples Nacional. Há estudos que chegam a falar até em R$ 60 bilhões.
Com maior equilíbrio no jogo político, diminuindo-se o poder de concentração de uma minoria de empresas gigantes, abre-se o espaço para que medidas que visem a consolidação de pequenas e médias empresas sejam pautadas. Além disso, o incremento na arrecadação possibilitaria uma maior faixa de isenções ou reduções tributárias no país.
Isso porque o problema tributário no ramo empresarial brasileiro vai muito além da não taxação dos dividendos. A onda de liberalização no país desequilibrou a carga tributária brasileira, principalmente no início do governo FHC. Nesse período, por exemplo, o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) para as instituições financeiras viu suas alíquotas caírem de 25% para 15%.
Ainda que essa redução tenha sido compensada com o PIS e o COFINS, especialistas consideram uma grande injustiça que instituições financeiras, que trabalham basicamente com práticas rentistas, paguem praticamente a mesma porcentagem de impostos que atividades produtivas, como a indústria por exemplo.
Até existe uma faixa de cobrança reduzida de tributos chamada Simples Nacional, mas sua composição não corresponde ao real cenário empresarial brasileiro. Isso porque somente empresas com uma receita bruta anual de até R$ 3,6 milhões podem adotar tal sistema. Mesmo que esse limite aumente para R$ 4,8 milhões ano que vem, isso não será o bastante para tornar nosso sistema tributário empresarial mais justo.
Os números podem enganar, mas uma receita de R$ 3,6 milhões por ano não representa nenhum negócio multimilionário. Vale lembrar que esse valor não se refere ao lucro, mas sim ao fluxo total de capital que entra na empresa. É plenamente possível que um mercado de bairro ou um restaurante movimentado que não pertençam a grandes redes extrapolem esse limite.
Mas, mesmo dentro do Simples Nacional, há uma grande diferença na cobrança de tributos. Eles variam de acordo com a faixa de renda e a atividade da empresa, podendo ter uma alíquota geral de 4% a 22,5%.
O tamanho das empresas aí incluídas, porém, não excede o de uma EPP (empresa de pequeno porte), o que nos leva a questionar se a diferença tão grande de alíquotas é realmente justa.
Além disso, também nas empresas é possível ver a preferência que o Brasil tem em cobrar impostos sobre consumo e serviços, andando na contramão do mundo desenvolvido, que frequentemente adota maiores impostos sobre a renda e o patrimônio. Assim, impostos como o ICMS ou o ISS podem chegar a representar mais de 30% do total de tributos que essas pequenas empresas pagam.
Ultrapassado o limite do Simples Nacional, as coisas pioram ainda mais para os médios empresários, que vêm as alíquotas subirem exponencialmente. Muitas chegam a mais do que dobrar.
Esse sistema se mostra uma barreira, que acaba formando um abismo entre um grupo pequeno de empresas que se tornam gigantes e acumulam cada vez mais e a maioria de pequenas empresas que têm seu crescimento limitado.
Além disso, a já citada captura regulatória e o lobby praticados por essas empresas que acumulam de forma ilimitada gera, ainda, uma série de políticas de isenções e reduções fiscais para si que aumentam ainda mais esse abismo. Estima-se que esses incentivos alcançaram R$ 271 bilhões só em 2016, mas nada indica que exista, no Brasil, uma política de favorecimento aos pequenos negócios.
Por fim, há, ainda, as políticas de investimento estatal. Analisando, por exemplo, os investimentos feitos pelo BNDES, percebe-se, claramente, como as empresas gigantes abocanham quase todos os aportes púbicos, ainda que sejam minoria.
As pequenas, médias e microempresas representam até 96% das operações realizadas no banco, mas recebem apenas 30% dos valores desembolsados. O “grosso”dos investimentos acaba indo para grandes empresas, que recebem 70% desses valores.
Dos cerca de R$ 70 bilhões investidos pelo BNDES no primeiro semestre de 2016, cerca de R$ 50 bilhões foram para empresas como a Brasil Foods, a JBS ou a OSX de Eike Batista, ou, até mesmo, para empresas estrangeiras como BG Group ou Renault.
Ou seja, parece haver um grande lobby no país que impede que reformas que diminuam as desigualdades empresariais sejam implementadas, ao mesmo tempo que possibilita a captação desenfreada de recursos públicos somente por empresas de porte gigante.
Isso demonstra como o discurso implantado pela grande mídia e pela elite empresarial, representada pelos reis do agronegócio e pela FIESP, de que um suposto excesso de direitos trabalhistas atrapalha o crescimento de pequenos negócios é falso.
O problema parece mesmo residir em outras questões mais estruturais como o nosso desigual sistema tributário, a captura regulatória, o lobby, a injusta distribuição de crédito público e um sistema financeiro que privilegia o rentismo.
Somos um país que, de seus pouco mais de 500 anos, 400 foram vividos sob um regime de escravidão. Seria covardia, para não dizer burrice, dizer que direitos trabalhistas são responsáveis pelo nosso histórico subdesenvolvimento.
Não podemos viver reféns do eterno medo das “medidas que assustam o mercado” ou que “afastem os investidores”.
Foi sob esse mesmo medo que construímos, em cinco séculos, um país de economia agrária que vende soja para comprar computadores, sempre subservientes ao mercado que não podia ser assustado. Foi sob esse medo que nunca criamos uma indústria nacional que pudesse desenvolver nossa economia a um ponto sustentável.
O medo nos deixou suscetíveis às crises cíclicas e cada vez mais corriqueiras do capitalismo global, e é por medo que aceitamos a redução de direitos cada vez que elas acontecem. O Brasil precisa, definitivamente, superar essa política do medo.
Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.