Em 16 de março, as centrais sindicais divulgaram um documento com medidas de proteção à vida, à saúde, ao emprego e à renda dos trabalhadores e trabalhadores. Nenhuma das 33 propostas apresentadas pelos representantes dos trabalhadores foi contemplada na Medida Provisória n. 927.
Renan Bernardi Kalil
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 31/03/2020
Em 22 de março, o governo federal publicou a Medida Provisória n. 927, que trata das medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de emergência de saúde pública em razão da disseminação do novo coronavírus (Covid-19). Dentre as principais ações, estão: a prevalência absoluta da negociação individual (com exceção da Constituição Federal) entre empregador e empregado, a retirada da obrigação em fazer exames médicos ocupacionais, o não reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional, o esvaziamento das atividades da fiscalização do trabalho e a ampliação de possibilidades em que o tempo de trabalho não seja computado como tal.
Grande parte das medidas adotadas pelo governo tem origem nas propostas da Confederação Nacional da Indústria (CNI) para atenuar os efeitos da crise da Covid-19, como as relacionadas a segurança e saúde do trabalhador, a ampliação do banco de horas e a simplificação da adoção do teletrabalho. Além disso, o Ministério da Economia oficiou entidades patronais e representantes de diversos setores econômicos para que apresentassem informações sobre o impacto da Covid-19 e o Ministro se reuniu com pelo menos 10 representantes do setor privado nos dias que antecederam à edição da Medida Provisória n. 927.
Como se vê, foi dada grande atenção às demandas patronais. Porém, a postura do governo em relação às reivindicações dos trabalhadores foi bem diferente. Em 16 de março, as centrais sindicais divulgaram um documento com medidas de proteção à vida, à saúde, ao emprego e à renda dos trabalhadores e trabalhadores. Nenhuma das 33 propostas apresentadas pelos representantes dos trabalhadores foi contemplada na Medida Provisória n. 927.
Olhando para o passado recente, ignorar as demandas dos trabalhadores não é uma atitude inédita. A Lei n. 13.467/2017 – a Reforma Trabalhista – pouco levou em consideração as propostas apresentadas pelos sindicatos. No segundo semestre de 2019, o Ministério da Economia criou o Grupo de Altos Estudos do Trabalho, com o objetivo de analisar o mercado de trabalho brasileiro e propor novas alterações legislativas. Nenhum dos seus integrantes tem relação com os sindicatos de trabalhadores.
É evidente a importância de se pensar em medidas para mitigar os efeitos negativos no mercado de trabalho em momentos de crise econômica e social. Especialmente como a que vivemos, que adquire contornos desconhecidos e dramáticos para toda a sociedade. Contudo, certamente o melhor jeito de encaminhar esse debate não é adotar somente as propostas do lado mais forte da relação capital-trabalho e ignorar a parte mais vulnerável.
Diversos países europeus anunciaram medidas para proteger os trabalhadores por conta da disseminação da Covid-19. A Itália lançou pacote para reduzir o impacto econômico no país. Dentre as ações, está a proibição de dispensas por motivos econômicos por 60 dias e apoio financeiro às empresas. A medida foi uma reivindicação das centrais sindicais. A Dinamarca divulgou um conjunto de ações, objeto de acordo tripartite entre governo, empresas e trabalhadores, em que o Estado ficará responsável pelo pagamento de 75% dos salários por três meses para empregadores que não realizem dispensas. No Reino Unido, foi anunciado que o governo pagará 80% do salário dos empregados que não conseguem trabalhar em razão da pandemia, o que foi uma reivindicação dos sindicatos.
Os exemplos europeus ilustram com propriedade dois fundamentos do direito do trabalho. O primeiro é a importância em se promover o diálogo social e o tripartismo. O segundo é que as soluções para momentos de crise econômica e social relacionadas ao mundo do trabalho devem ser construídas pelos atores sociais que protagonizam as relações de trabalho. Não se trata de necessariamente defender o conteúdo das medidas nos mesmos termos da Itália, Dinamarca ou Reino Unido. Cada país tem as suas peculiaridades e condições econômico-financeiras para lidar com o avanço da pandemia. Entretanto, respostas oferecidas a partir da perspectiva de apenas uma das partes da relação capital-trabalho ou somente pelo viés estatal são insuficientes, uma vez que marginalizam parte substantiva dos interesses afetados.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicou que o diálogo social e o tripartismo são centrais para se estabelecer um ambiente de confiança e permitir a aplicação efetiva das medidas elaboradas para enfrentar a Covid-19.[1] A Recomendação n. 205 da OIT, sobre emprego e trabalho decente para paz e resiliência, aponta para a importância da consulta e do fomento da participação ativa das organizações de empregadores e de trabalhadores no planejamento, execução e acompanhamento de medidas de recuperação e resposta às crises (parágrafo 8, d).
A disseminação da Covid-19 e os impactos econômicos e sociais na vida de todo o país demandam a promoção de uma concertação social. Ou seja, um pacto político consensual com o objetivo de alcançar um mínimo de estabilidade, o que é viabilizado pela participação e pela convergência das vontades dos atores sociais (trabalhadores, empresas e Estado).[2] É característica da democracia a ampliação dos sujeitos que atuam politicamente e contribuem na elaboração de decisões coletivas.[3] Além disso, se os fundamentos da República Federativa do Brasil são os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV da Constituição Federal), é central que o governo leve em consideração as vozes de empresas e trabalhadores no presente momento.
Estamos vivendo uma crise com dimensões inéditas e potencial para afetar dramaticamente a vida de milhares de pessoas. Não é possível que as soluções para enfrentá-la sejam construídas sem que as trabalhadoras e os trabalhadores sejam ouvidos. Os sindicatos são entidades centrais na organização política e social de milhares de pessoas, ao se constituírem como figuras principais de expressão política organizada para a apresentação de demandas trabalhistas e sociais de inúmeros setores da sociedade.[4] Da mesma forma, outras entidades laborais, como associações e cooperativas, tem o poder de colaborar com a exposição de particularidades de grupos específicos, como os catadores de material reciclável. Os trabalhadores, formais e informais, têm muito a contribuir no presente momento.
Os desafios colocados neste momento para toda a sociedade brasileira exigem a revisão da recente trajetória de exclusão dos trabalhadores na elaboração de medidas para regular o mundo do trabalho. Incluir os trabalhadores nesse debate permitirá rever o falso dogma “menos direitos, mais empregos” que orienta toda política pública do atual governo em matéria trabalhista. É urgente que os representantes dos trabalhadores sejam ouvidos pelo governo e os seus interesses sejam levados em consideração para o enfretamento da crise. Somente assim teremos a oportunidade de fortalecer a democracia no Brasil, de permitir que os efeitos da retração econômica não sejam tão deletérios para os trabalhadores, de não construir soluções que sejam enviesadas e de ter um mínimo de estabilidade para lidar com os complexos problemas que temos pela frente. Ainda há tempo.
Notas:
[1] International Labour Organization. ILO Standards and COVID-19 (coronavirus). 23 março 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—normes/documents/publication/wcms_739937.pdf. Acesso em: 28 março 2020. [2] MAGANO, Octavio Bueno. Participação, concerto, acordos sociais nas relações trabalhistas contemporâneas – Direitos dos trabalhadores à informação – A participação dos trabalhadores por metidos diferentes da negociação coletiva. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo. Ano 11. n. 62. julho/agosto 1986, p. 69. [3] BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Campus. 2000. p. 456-457. [4] CIDH. Relatório sobre a situação das defensoras e defensores de direitos humanos nas Américas. OEA/Ser.L/V/II.124, Doc.5 rev. 1. 7 março 2006, parágrafo 209.Renan Bernardi Kalil é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Procurador do Trabalho.