Para além da dicotomia entre trabalho decente e trabalho digno: reconhecimento e direitos humanos

Cinara L. Rosenfield
Jandir Pauli

Fonte: Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 65, p. 319-329, maio/ago. 2012.

Resumo: O objetivo deste estudo é realizar uma discussão teórico-conceitual das noções de trabalho decente e trabalho digno, a partir da contraposição conceitual entre cidadania e direitos humanos. O argumento deste artigo é que trabalho decente remeteria à noção de cidadania e a uma concepção operacional, claramente apontada na agenda da Organização Internacional do Trabalho (OIT), enquanto o trabalho digno remete à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e é dependente de uma rede de direitos. A fim de transpor essa dicotomia, propomos uma visão integral do ser humano no trabalho, através da noção de reconhecimento e de uma abordagem holística dos direitos humanos que integra a noção de trabalho decente.

Sumário: Breve contextualização: direitos humanos e trabalho | Cidadania e direitos humanos: o conceito de dignidade | Trabalho decente e trabalho digno | Reconhecimento e dignidade | Uma visão holística dos direitos humanos | Considerações finais | Notas | Referências

Breve contextualização: direitos humanos e trabalho

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH) inaugura um código de ética universal para a reafirmação da dignidade humana. Reafirma porque a Declaração surgiu em um contexto marcado pelo horror ao extermínio praticado nos campos de concentração nazistas que rompeu com o paradigma jusnaturalista, segundo o qual os direitos humanos são naturais e anteriores à própria lei. A Declaração alargou o conceito de dignidade humana, estabelecendo os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESC), ao lado e articulados aos já estabelecidos direitos civis e políticos.

Se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.

Neste sentido, em 10 de dezembro de 1948, é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como marco maior do processo de reconstrução dos direitos humanos. Introduz ela a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada (Piovesan, 2000, p. 94-95).

A Declaração de Viena de 1993 reitera, no seu artigo 5º, que “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase” (ONU, 1993), de maneira que as noções de interdependência e inter-relação dos direitos humanos reforçam a associação entre os direitos civis e políticos e os direitos humanos econômicos, sociais e culturais (DHESC).

Em termos políticos, a DUDH associou o discurso liberal da cidadania com o discurso social, de forma a articular tanto direitos civis e políticos (arts. 3 e 21), quanto direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 e 28), percebidos como direitos fundamentais. Essa perspectiva é ratificada no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) da Assembleia Geral da ONU de 1966, na Proclamação de Teerã de 1968, na Resolução da Assembleia Geral de 1977, e no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como Protocolo de São Salvador, de 1988. De certa forma, tal concepção rompe com as declarações anteriores e inaugura o reconhecimento da dimensão coletiva dos direitos, estabelecendo uma reciprocidade entre direitos formais como a liberdade e a base econômica adequada para o seu exercício.

É mister lembrar ainda que, desde a sua promulgação, a DUDH tenta construir um “Direito Internacional dos Direitos Humanos” com força jurídica vinculante (Piovesan, 2004, p. 48). De fato, após a declaração de 48, iniciou-se um processo de “jurisdicização” finalizado em 1966 com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

O Brasil se insere nesse contexto internacional a partir do processo de redemocratização.

No caso brasileiro, o processo de incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e de seus importantes instrumentos é consequência do processo de democratização, iniciado em 1985.

O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito Brasileiro foi a ratificação, em 1989, da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A partir desta ratificação, inúmeros outros importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Assim, a partir da Carta de 1988, foram ratificados pelo Brasil: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; c) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; d) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; e) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; f) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995. (Piovesan, 2000, p. 100-101).

O Brasil aderiu, pois, ao PIDESC em 24 de janeiro de 1992 e, em 1996, lançou seu 1º Programa Nacional de Direitos Humanos, que continha basicamente direitos civis e políticos. Foi apenas no 2º Programa que os direitos sociais, econômicos e culturais foram contemplados. Segundo Abramovich (2006), a adscrição de um direito ao catálogo de direitos civis e políticos, ou de direitos econômicos, sociais e culturais, tem um valor heurístico, ordenador, classificatório. Contudo, em se tratando de análise teórica, a conceituação rigorosa remeteria a um “continuum de direitos, no qual o espaço de cada direito estaria determinado pelo peso simbólico do componente de obrigações positivas ou negativas nele delineadas.” (Abramovich, 2006, p. 194). Entenda-se por obrigações positivas aquelas que necessitam da ação governamental para sua efetivação; e por negativas aquelas que devem ser garantidas pela sua afirmação.

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Cinara L. Rosenfield é Doutora em Sociologia do Trabalho e Pós-Doutorado pela Universidade Técnica de Lisboa. Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia, IFCH, UFRGS. Bolsista Produtividade CNPQ. A Sociologia do Trabalho é a sua área de interesse principal. Dentre as suas publicações recentes destacam-se: Trabalho decente e precarização. Tempo Social, São Paulo, USP, 2011; Autonomia e trabalho informacional: o teletrabalho. Dados, Rio de Janeiro, 2011; Trabalho, emprego e precarização social. Sociologias, Porto Alegre, UFRGS, 2010; L’autonomie comme norme et le rapport au travail: une étude comparative France-Brésil. Saarbrücken: Éditions Universitaires Européennes, 2010.

Jandir Pauli é Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade Meridional (IMED). Como pesquisador, atua nas linhas de pesquisas: Trabalho na sociedade contemporâneas e Estratégias e Relações Interorganizacionais. Pesquisador do RILESS: Red de Investigadores Latinoamericanos de Economía Social y Solidaria. Dentre as suas publicações destacam-se: Economia política do trabalho e direitos humanos. Passo Fundo: IMED Editora, 2008; Estratégias individuais e ordens de justiça no capitalismo conexionista. In: Congresso Brasileiro de Sociologia, 14, Rio de Janeiro: SBS, 2009.

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