As empresas de entrega adotam um modelo de organização do trabalho muito similar no Brasil e na Espanha. Sua característica mais destacada, associada aos instrumentos digitais de gestão, é identificar os entregadores como autônomos.
Vitor Filgueiras e Alberto Riesco-Sanz
Fonte: UOL
Data original da publicação: 22/09/2020
A precariedade da situação dos entregadores de aplicativos na Espanha é muito parecida com a do Brasil. Mas enquanto no país ibérico a tendência é que a Corte Suprema chancele o reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas, duas decisões de uma turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) fortalecem a visão de que trabalhadores das chamadas plataformas são “autônomos”.
A comparação é fruto de uma pesquisa realizada em parceria entre a Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Complutense de Madrid (UCM).
Se no Brasil, há divergências nas instâncias judiciais inferiores, na Espanha, a situação parece caminhar para um consenso. Após disputas na primeira instância, todas as quatro cortes superiores que se pronunciaram sobre o trabalhado dos entregadores reconheceram vínculos de emprego. O que vai ao encontro de posições sobre o trabalho para aplicativos na França, Estados Unidos, Suíça e Reino Unido.
As empresas de entrega adotam um modelo de organização do trabalho muito similar no Brasil e na Espanha. Sua característica mais destacada, associada aos instrumentos digitais de gestão, é identificar os entregadores como autônomos – no caso espanhol, apenas uma empresa admite o assalariamento. É desse ponto que surgem as polêmicas e as disputas cujos desfechos jurídicos parecem se distanciar entre os dois países, apesar de as condições vividas pelos trabalhadores nos dois continentes serem muito parecidas.
Após acompanhar trabalhadores no Brasil no início de agosto, a pesquisa entrevistou, na Espanha, 25 entregadores vinculados a sete empresas, e distribuídos por 11 cidades e sete comunidades autônomas – o equivalente aos estados – do país europeu.
A grande maioria dos respondentes é espanhol, usa moto ou carro próprio, tem mais de 25 anos, trabalha há mais de 12 meses exclusivamente para os aplicativos, e tem inscrição como autônomo no INSS espanhol.
Desse modo, a amostra conta com uma espécie de elite dos entregadores, já que, na Espanha, é grande a incidência de imigrantes, jovens, guiando bicicletas e pagando “aluguel” da conta – sem documentos, trabalhadores pagam para usar o perfil de outras pessoas nos apps, o que provavelmente intimida a participação em pesquisas. Portanto, os resultados subestimam as condições precárias que a média dos entregadores no país europeu vive.
Dos entrevistados na Espanha, 69,6% afirmaram trabalhar seis ou sete dias na semana (34,8%, todos os dias), indicando que trabalhar 340 dias por ano, como apurado em recente processo judicial, é comum. Na Espanha, algumas empresas impõem e restringem os dias e horários em que os entregadores podem ficar on-line. Com isso, trabalhadores têm menos tempo on-line do que gostariam para sobreviver, o que se agravou após a pandemia – cerca de 70% tiveram menos trabalho no período. Mesmo assim, até 69,5% deles trabalham acima da jornada normal semanal (que é de 40 horas na Espanha). E entre os trabalhadores que forneceram horários precisos, a média é de 55,3 horas.
A renda média líquida caiu 24,4% com a pandemia, chegando a 798,5 euros, e 59% dos entrevistados têm rendimento substancialmente menor do que o salário mínimo líquido mensal – de 1037 euros, considerando os 14 pagamentos anuais.
Vale ressaltar que o salário bruto de um entregador, para uma jornada normal, deveria ser de 1570 euros, conforme decisões judiciais. Considerando que trabalham, em média, em jornadas acima do máximo legal, o pagamento recebido por hora é mais adequado para calcular a magnitude dos seus ganhos. Nesses termos, após a pandemia, 88,3% passaram a receber menos do que o salário mínimo líquido.
Empresas insistem que entregas sejam feitas mesmo após acidentes
Mais de um terço dos entregadores já sofreram acidente trabalhando para os aplicativos. Somados aos que conhecem alguém que tenha sofrido, são quatro de cada cinco. Segundo os entrevistados, em 62,5% desses infortúnios, a empresa não deu qualquer suporte ao trabalhador acidentado, havendo relatos de insistência para a realização da entrega.
A imensa maioria dos entregadores (82,6%) já foi bloqueada, desligado, ou conhece alguém que já tenha sido bloqueado ou desligado pelos aplicativos. Dentre eles, 44,4% não sabem o motivo do bloqueio ou desconexão. Dentre os que sabem as razões da punição, há situações como recusa de pedido e não ter ficado on-line nos horários estabelecidos.
Assim, apesar de “não ter chefe” ser alegadamente a característica básica do trabalho com aplicativos, as condições e a própria relação de trabalho, além de unilateralmente determinadas pelas empresas, são feitas de modo amplamente arbitrário. Os dados sugerem uma grande ironia no mantra da “autonomia” e “liberdade” que as empresas repetem o tempo todo para convencer trabalhadores e o resto da sociedade.
O cenário espanhol parece muito com o caso brasileiro, como têm mostrado as evidências, inclusive aquelas decorrentes da pesquisa da UFBA e da UCM, que apurou entre os entregadores um jornada média de 10 horas e 24 minutos por dia, 64,5 horas por semana – sendo que 70,9% trabalhando seis ou sete dias na semana e um terço atuando em entregas todos os dias.
Além disso, após a pandemia os rendimentos líquidos caíram 18,6%, com a maioria recebendo abaixo do salário mínimo. A grande maioria conhece ou sofreu acidente e punição trabalhando para os aplicativos.
Na Espanha, entregadores montam cooperativas como alternativa
Na Espanha também há muita reclamação pelas condições de trabalho dos entregadores, e as disputas estão mais avançadas. Uma das reações, que busca superar a própria subordinação e a precarização dos contratos de emprego decorrente de muitas reformas trabalhistas no país europeu, é a formação de cooperativas de entrega.
Os desafios são grandes, pois além dos tradicionais obstáculos desse tipo de empreendimento, como possível hierarquização interna, trata-se de um mercado dominado por megaempresas com as quais elas têm que competir.
Não bastasse, como as cooperativas entregam mercadorias produzidas por outros (restaurantes, lanchonetes de fast food, entre outras empresas), elas ficam imprensadas entre empresas e consumidores. Com isso, podem perder o controle da organização do trabalho e retornar à subordinação, desta vez imposta pelos restaurantes. Vale lembrar que “cooperativas” de motoboys já viveram isso no Brasil.
Outros, percebendo a subordinação e a condição assalariada a que estão submetidos, têm lutado por seus direitos, com diferentes estratégias, seja mobilizando diretamente os trabalhadores, seja pressionando o Estado a cumprir a lei trabalhista – que mesmo precarizada, impõe limites às empresas.
Por fim, uma parte dos entregadores defende o atual modelo contratual. No caso dos contratados como autônomos entrevistados pela pesquisa UFBA-UCM na Espanha, a maioria (60,9%) prefere seguir com o mesmo arranjo, resultado semelhante ao encontrado no Brasil (54,4%). Ou seja, não desejam ter carteira assinada.
As justificativas dos respondentes, em ambos os casos, foram quase sempre ter mais flexibilidade, autonomia e rendimentos. Contudo, há uma situação contraditória, pois esses trabalhadores reportam condições mais rígidas, arbitrárias e piores rendimentos do que aqueles formalmente empregados.
Isso sugere como o discurso empresarial parece encontrar forte eco em boa parte dos entregadores. No Brasil, essa ironia da “autonomia” vai encontrando espaço na regulação desse tipo de trabalho.
Vitor Araújo Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor visitante da Universidade Complutense de Madri.
Alberto Riesco-Sanz é professor da Universidade Complutense de Madri.