Os trabalhadores e a Doutrina do Choque

Jefferson Alves

O Brasil vive uma grave crise institucional, que foi articulada por um conjunto de forças de oposição, inclusive grandes empresários de todos os segmentos, articuladas para debilitar o governo. Buscando gerar um estado de ingovernabilidade, os meios de comunicação amplificavam denúncias de corrupção e anunciavam a falência próxima do Estado; medidas eram aprovadas pelo Congresso Nacional para agravar a crise econômica; grupos de extrema-direita foram financiados pelos partidos de oposição para insuflar nas pessoas o medo e a noção de que o país estava à beira de um colapso; o maior partido do país, que dividia o comando do executivo, junta-se aos partidos de oposição visando derrubar a presidenta eleita e assumir o poder. Para atingir seus objetivos, transformaram em crime de responsabilidade operações orçamentárias repetidas nos últimos 20 anos, as famosas pedaladas fiscais.

O Golpe que se consumou no parlamento foi a aplicação metódica da Doutrina do Choque, conforme expressa no livro de mesmo nome da autora Naomi Klein. A criação de uma ideia de crise insolúvel no imaginário social viabilizou a tomada do poder por um grupo que visava, além de garantir sua impunidade, a aplicação de um projeto de desmonte do Estado e desregulação da economia, aprofundando o ataque aos direitos da população, num momento de terror nacional. Um precedente histórico de aplicação da doutrina do choque foi o golpe militar que derrubou o presidente do Chile Salvador Allende em 1973, impondo de imediato grande parte das medidas propostas por Friedman, que teve protagonismo direto no governo Pinochet.

A crise foi construída paulatinamente com este objetivo, seguindo a risca a proposta descrita no livro de Klein, que trata das teorias econômicas defendidas por Milton Friedman, professor na Escola de Economia da Universidade de Chicago (Escola de Chicago), cuja obsessão era atingir a desregulamentação total da economia, que ele chamava de “estado de saúde ‘natural’, quando tudo estava em equilíbrio, antes que as interferências humanas criassem padrões distorcidos.”. Sua premissa é que uma “economia altamente desvirtuada só conseguiria alcançar o estágio anterior aos deslizes por meio de choques dolorosos deliberadamente infligidos”. Ou seja, somente “remédios amargos” poderiam resultar na recuperação econômica e na tão sonhada aplicação do neoliberalismo.

O próprio Friedman havia concluído que a implantação das políticas econômicas liberais extremas não é possível de ocorrer em situações de normalidade política e social, face a resistência popular. Essa é a premissa básica deste livro, que detalha de forma didática a evolução da implantação forçada dessas políticas.

A sucessão de golpes desferidos na democracia, quando a partir de 31 de agosto de 2016 se oficializou a derrubada de Dilma Rousseff, vem crescendo rapidamente ante a demora na resistência dos movimentos dos trabalhadores e reorganização das forças da esquerda. Esse atordoamento, previsto na Doutrina do Choque, é essencial para que se imponha aos trabalhadores perdas de direitos históricos, através de “reformas”, sendo a reforma trabalhista sua ponta de lança.

A Lei 13.467, que tramitou na Câmara dos Deputados e no Senado Federal de forma incomumente veloz, insere na CLT, escondido entre tantos outros descalabros, a supremacia do negociado sobre o legislado.

Ao enxertar na legislação trabalhista o artigo 611-A, eleva o alcance da negociação coletiva a um novo patamar, que poderia ser um avanço na relação dos trabalhadores com as empresas, mas com o movimento sindical fragilizado é afastada a garantia de regras mínimas, encaminha a renúncia de direitos positivados na legislação. O parágrafo 1º deste artigo estabelece que na relação do trabalhador com a empresa, quando o primeiro requerer a proteção judicial para a garantia de seus direitos, deverá a justiça do Trabalho observar o “principio intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”, visando afastar a tutela jurisdicional dos direitos mínimos dos trabalhadores, onde o negociado se sobrepõe ao legislado. Esse é só o exemplo mais claro da retirada de direitos projetada por esta reforma.

A reforma trabalhista mostra seu verdadeiro objetivo ao instituir normas que obstruem o acesso dos trabalhadores à tutela jurisdicional. O artigo 790-B determina, por exemplo, que o trabalhador deverá pagar honorários ao advogado da empresa, caso algum pedido seu não tenha sido procedente, trazendo verdadeira exacerbação na parte final do caput do artigo, ao determinar o pagamento “ainda que beneficiária da justiça gratuita”.

Em julho deste ano, a Suprema Corte do Reino Unido se deparou com questão semelhante ao analisar a legalidade da imposição de taxas que devem ser pagas pelos trabalhadores para obter acesso aos tribunais trabalhistas. Nesse julgamento, a Corte reiterou o acesso à Justiça como direito fundamental e, dessa forma, a imposição de tais taxas implicava no afastamento da jurisdição dos tribunais trabalhistas. O estabelecimento, como no caso da reforma brasileira, de empecilhos financeiros ao ajuizamento de demandas sob o argumento de existirem ações com pedidos sem base fática não se sustenta, uma vez que o direito de acesso á justiça não é restrito as ações integralmente procedentes.

Os setores progressistas da sociedade começaram a esboçar reação contra a implantação forçada da agenda de liberalismo radical que não conta com apoio popular, caracterizada pela aprovação do governo Temer em míseros 3%, conforme as últimas pesquisas. Por isso os golpistas tratam de agir com maior urgência.

Neste contexto, o presidente da Câmara dos Deputados ressuscitou o PL 4.302, que trata da terceirização irrestrita, encaminhado pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso no ano de 1998, deixando de lado a PLC 30/2015, sobre o mesmo tema e em fase adiantada de tramitação.

A atenção dos trabalhadores estava concentrada no Senado Federal, que se encontrava discutindo a inclusão de salvaguardas aos trabalhadores no PLC 30/2015 e a possibilidade de impedir a terceirização de atividades-fim. O rápido resgate e votação do PL 4.302/98 garantiram sua aprovação, impedindo a realização de pressão sobre os deputados.

Mais uma vez, o choque causado pela crise econômica e institucional prolongada cobra seu preço, ao garantir a aplicação de medidas neoliberais que nem mesmo Fernando Henrique conseguiu implementar. Isso demonstra o grau de eficácia da Doutrina do Choque propugnada por Friedman.

Jefferson Alves é Advogado do Escritório CSPM Advogados Associados – OAB/RS 89.504

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