Desigualdades globais e os desafios de 2021 na retomada da economia.
Laura Carvalho
Fonte: A terra é redonda, com Nexo
Data original da publicação: 04/01/2021
As expectativas de mercado reunidas no último Boletim Focus do Banco Central giram em torno de uma queda do PIB (Produto Interno Bruto) de 4,4% em 2020 – um tombo alto, mas bem menor do que os 6,5% previstos no meio do ano. Se comparada às projeções realizadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) no World Economic Outlook publicado em outubro, uma queda de 4,4% colocaria 105 países (de um total de 176) em posição pior do que o Brasil. O que explica esse resultado acima da média apesar de nossa total incapacidade de controlar a crise sanitária causada pela pandemia? Podemos, com isso, ter expectativas melhores para o ritmo de recuperação da economia brasileira em 2021?
Grosso modo, três gamas de fatores explicam as diferentes magnitudes de queda do PIB observadas ao redor do mundo em 2020: características estruturais; a profundidade da crise sanitária e, finalmente, o tamanho dos pacotes fiscais voltados ao combate à crise. Os três elementos atuam na direção de exacerbar desigualdades globais.
Começando pelos fatores mais estruturais, as economias latino-americanas estão entre as mais vulneráveis ao tipo de choque causado pela pandemia. Para além das desigualdades elevadas, trata-se de uma região com alto grau de informalidade no mercado de trabalho (que concentra entre 30% e 80% dos trabalhadores) e com alta participação relativa de serviços no PIB, com destaque para atividades de turismo e serviços pessoais. Como tais setores concentram uma mão de obra menos escolarizada, o impacto da pandemia na América Latina tendeu a prejudicar de maneira mais profunda e ainda mais desproporcional a base da pirâmide distributiva. Esses fatores ajudam a explicar, portanto, o porquê de a queda projetada pelo FMI para o PIB na América do Sul ser de 8,1%, ante 4,9% na América do Norte.
Segundo, a capacidade de controlar o ritmo de contágio pelo vírus importa. Uma análise que relacionou a queda do PIB do segundo trimestre de 2020 com o número de óbitos por um milhão de habitantes em 38 países não encontrou nenhum trade-off (situação conflituosa) entre proteger a saúde e a economia: ao contrário, países com taxas de mortalidade mais altas sofreram também as quedas mais profundas do PIB (como Peru, Espanha e Reino Unido). Por outro lado, países que controlaram melhor a crise sanitária aparecem com quedas menores do PIB (como Taiwan, Coreia do Sul, Lituânia). Ou seja, tampouco parece vir do descaso do governo brasileiro com a contenção da pandemia uma contribuição positiva para o PIB deste ano.
Resta apenas o terceiro fator como possível explicação para a atenuação da queda do PIB brasileiro: a aprovação de medidas de natureza fiscal para o combate à crise. De fato, quando ordenamos os mesmos 176 países analisados pelo Monitor Fiscal do FMI pelo valor dos gastos adicionais e renúncia de receitas, o Brasil aparece como o 16o na destinação de recursos para a resposta à pandemia (até então com 8,4% do PIB ante uma média de 3,9%). Em particular, o auxílio emergencial destinou em 2020 mais de seis vezes o valor anual do programa Bolsa Família, reduzindo os níveis de pobreza e desigualdade para patamares historicamente baixos e injetando ânimo no consumo das famílias.
A combinação dos três fatores nos ajuda a entender, por exemplo, as diferenças entre a magnitude de queda do PIB no Brasil e nos países vizinhos. Peru e Chile também tiveram respostas fiscais substantivas (6,6% e 8,4% do PIB, respectivamente), mas, ainda assim, o Peru, por sua alta dependência do setor de turismo e outras fragilidades estruturais de sua economia, além do seu desempenho desastroso na contenção do vírus, tem queda do PIB projetada em 14%. Já a Argentina, que ficou restrita por sua menor capacidade de financiamento devido ao alto endividamento externo, gastou apenas 3,9% do PIB com a resposta à crise e tem a contração de sua economia projetada em 12%.
Mas o que determinará os diferentes ritmos de recuperação das economias em 2021? Da mesma forma que o controle dos ritmos de contágio pelo vírus afetaram a queda do PIB em 2020, esse controle e, em particular, a celeridade na aplicação das vacinas serão fundamentais para ditar a retomada. Além disso, os estímulos fiscais realizados desempenharão mais uma vez o seu papel.
Nesse contexto, ainda que volte a apresentar taxas positivas de crescimento econômico como esperado, o Brasil pode acabar em uma posição relativa pior em 2021 do que em 2020, se comparado ao resto do mundo. Isso porque, se em 2020 conseguimos neutralizar parcialmente o custo de nossas fragilidades estruturais e da atuação desastrosa na área da saúde com um estímulo fiscal de alta magnitude, em 2021, ao que tudo indica, o governo contribuirá negativamente em todas as frentes: ainda não garantiu a compra das vacinas necessárias para imunizar a população e tampouco destinou espaço no orçamento para atender às demandas por gastos adicionais com saúde e assistência social.
Enquanto isso, países ricos encerraram o ano encaminhando a aprovação de novos pacotes de estímulo fiscal e a compra das doses necessárias para vacinar a maior parte de sua população até o fim do primeiro semestre. Em 2020, a pandemia já exacerbou desigualdades globais, na medida em que os países que mais precisariam gastar para neutralizar seus efeitos eram os menos dotados de recursos. Em 2021, o aumento das disparidades entre o Norte e o Sul global pode ser ainda maior: a compra em quantidade suficiente das vacinas e a opção ou a capacidade de expandir novamente os gastos públicos parece até aqui concentrada nos países ricos.
Como se já não bastassem as dificuldades inerentes a um sistema econômico e político que não tem dado trégua para os mais vulneráveis ao redor do mundo, ainda teremos de enfrentar no Brasil as consequências da atuação de um governo que permanece avesso às evidências e imposições da realidade. Se as esperanças de um mundo mais justo e sustentável pós-pandemia parecem ter ficado mais remotas em meio à geopolítica das vacinas, fica o desejo de que nos livremos ao menos da parte que nos toca: o ônus de um governo inepto para lidar com os desafios de 2021.
Laura Carvalho é professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Autora, entre outros livros, de Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico (Todavia).