A exclusão de pessoas da base da pirâmide do mercado de trabalho tende a perpetuar o binômio baixa escolaridade – baixo rendimento.
Flavio Fligenspan
Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 17/10/2021
Com a fraca retomada da economia brasileira, estudiosos do mercado de trabalho têm notado que seus indicadores tradicionais estão respondendo com mais lentidão que os indicadores de atividade, um fenômeno conhecido, mas que agora se pronuncia com mais intensidade que o usual. Não que os indicadores de atividade estejam maravilhosos; longe disso, apenas chegam perto de recompor seus níveis de pré pandemia, os do início de 2020. Alguns deles até já foram melhores, na virada de 2020 para 2021, mas voltaram a cair nos meses seguintes, como os da Indústria e do Comércio, por conta de problemas de abastecimento de peças e componentes, da elevação da inflação e do próprio mercado de trabalho, que não produz uma massa de rendimentos suficiente para gerar demanda. O fato é que o mercado de trabalho não consegue sequer acompanhar a resposta fraca do lado da produção e das vendas.
Tomemos um indicador relevante do mercado de trabalho como exemplo, a taxa de participação, que corresponde ao percentual de pessoas ocupadas ou procurando ocupação em relação à população em idade de trabalhar. Esta taxa era de 62% antes dos efeitos da pandemia, caiu abruptamente para cerca de 55% no segundo trimestre de 2020 e voltou a subir lentamente desde então, mas agora está em 58%, abaixo do ponto de partida e sem mostrar força de recuperação.
O que aconteceu com esta variável? No início da pandemia, quando o desconhecimento sobre a doença era grande, ainda não havia sequer perspectiva de vacinas e as pessoas tinham muito medo de se expor, muita gente abandonou o mercado de trabalho e se isolou em casa, fazendo a taxa cair rapidamente. Com o tempo, já em 2021, veio a vacinação, um entendimento melhor de como se proteger e, infelizmente, a retirada do Auxílio Emergencial. Este conjunto de fatores levou as pessoas de volta ao mercado, em busca de renda, fazendo subir a taxa de participação, mas para níveis inferiores aos de pré pandemia. A pergunta relevante, então, é porque a taxa não volta ao nível anterior? A resposta óbvia é: porque o mundo mudou e nada será como antes.
Especialmente no mercado de trabalho, há alterações que vieram para ficar, como por exemplo, um sistema híbrido entre trabalho em casa e trabalho na empresa. O fato é que estas alterações são, em geral, poupadoras de mão de obra e estão associadas a aumentos de produtividade. Contudo, estas novidades não se distribuem igualitariamente sobre os vários segmentos do mercado de trabalho, pois exigem mais qualificação, tanto para manter seus antigos trabalhadores ou para incorporar novos. Quem não for bem treinado e/ou não tiver capacidade de se adaptar ao novo paradigma, ficará fora do mercado. E “fora do mercado” aqui tem um caráter absoluto; não significa alguém que não teve êxito na sua busca por ocupação formal ou informal, mas sim alguém que já se convenceu de que não consegue penetrar neste espaço, não consegue se candidatar sequer ao grupo dos que procuram ocupação e não tem sucesso. Ou seja, alguém que já desistiu.
Portanto, estas pessoas estão fora do numerador da taxa de participação e, assim, rebaixarão a taxa permanentemente, mesmo que a atividade econômica retorne ao patamar anterior. Este é o fenômeno chamado tecnicamente de histerese, quando uma variável alterada por determinada força não volta a seu nível anterior, mesmo que a causa inicial da mudança tenha cessado. No jargão menos técnico, alguns chamam o fenômeno de “cicatriz”, como uma marca definitiva de um acidente. A redução da taxa de participação seria uma “cicatriz econômica e social” do mercado de trabalho brasileiro em função da combinação de aspectos estruturais com a forma como a pandemia foi tratada no Brasil.
A situação já seria suficientemente triste e complicada se fosse “apenas” como descrita anteriormente. Mas, na verdade, é pior. Se o fenômeno do afastamento das pessoas menos qualificadas do mercado de trabalho – obviamente as menos escolarizadas e de rendimentos menores, ou seja, as mais desprotegidas – for entendido em combinação com o fato conhecido de que há no Brasil uma perversa transmissão familiar do binômio baixa escolaridade – baixo rendimento, o problema se torna mais dramático. Efetivamente, várias pesquisas ao longo dos anos mostram que famílias cujos responsáveis têm baixa escolaridade e baixos rendimentos – resultado de precária inserção no mercado de trabalho – mantém seus filhos por menos tempo (anos) na escola, o que limita seu futuro profissional e reproduz a situação dos pais. A consequência é uma baixa mobilidade social no Brasil.
Pois bem, estamos diante de um agravamento do fenômeno, já que a exclusão de pessoas da base da pirâmide do mercado de trabalho – exposto pela redução da taxa de participação – tende a perpetuar e talvez até incrementar o binômio baixa escolaridade – baixo rendimento. Não há lógica numa economia capitalista aceitar passivamente a exclusão de boa parte da sua força de trabalho e de seu mercado consumidor, justamente uma economia que tem no seu tamanho uma das forças de atração de investimentos. Penso que um projeto de (re)integração é urgente, tanto do ponto de vista de justiça social como de sobrevivência do próprio regime. A não ser que o plano seja cada vez mais afastar a base da pirâmide, ou pior, que já se tenha abandonado qualquer projeto nacional.
Flavio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).