Os ‘EUA sem leis trabalhistas’: a fake news jurídica da nossa era

Círculos de direita propagaram a ideia de que empregador pode tudo nos EUA.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 29/11/2022

Na semana que passou estive no Consulado dos EUA no Rio de Janeiro para obter um visto de intercâmbio acadêmico de um ano naquele país e, para minha surpresa, ganhei do governo americano uma cartilha intitulada “Seus Direitos Trabalhistas nos EUA”.

Lembrei imediatamente de certos círculos ignorantes da direita que (ainda) apregoam que os EUA “não têm Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), não têm Justiça do Trabalho, nem ações trabalhistas”. Esse tipo de militância abestalhada vem produzindo farta literatura nessa linha, em geral sob a forma de memes e, ao menos desde 2017, tem conseguido convencer muitos incautos de que o Brasil é uma excrescência mundial no que tange à proteção legal da classe trabalhadora. E mais, que o Brasil deveria seguir o “exemplo dos EUA”, e abolir a CLT e a Justiça do Trabalho!

O governo Bolsonaro, através do seu porta-voz Paulo Guedes, tem ajudado a expandir essa “lenda urbana”, pois em mais de uma declaração o ministro da Economia sustentou esse absurdo, só comparável à “mamadeira de piroca” e ao “kit gay” em termos de veracidade.

Se tais figuras obtusas tivessem convencido apenas a plebe rude de tamanho despautério, já seria preocupante, pois graças à benfazeja e indispensável democracia, a plebe rude vota. Mas, inacreditavelmente, com apoio de certos setores da mídia reacionária (como o ex-Manhattan Connection Ricardo Amorim, que distorce o assunto constantemente), conseguiram convencer até mesmo alguns segmentos da elite pensante.

O ministro do STF e professor Luís Roberto Barroso, por exemplo, certa vez foi a uma garbosa conferência em Londres e, com toda a sua prosápia iluminista, declarou indignado e em tom de espanto que “o Brasil tem 98% das ações trabalhistas do mundo”. O dado, aberrante, era simplesmente falso, como já demonstrei aqui no JOTA. O pior é que o “argumento de autoridade”, vindo de um ministro do Supremo, foi parar no relatório do Senado que justificou a aprovação da infausta reforma trabalhista. Vejam a que ponto chegou essa “fake news” jurídica.

Mas voltemos à cartilha que o governo americano distribui para quem vai estudar ou trabalhar nos EUA. Minha surpresa começou pelo fato de que o manualzinho é distribuído por força de legislação federal. O Congresso americano aprovou a lei pública 110-457, de 23 de dezembro de 2008, determinando, entre outras providências, que as repartições consulares do país entreguem um guia com informações sobre direitos trabalhistas aos que vão aos EUA para estudar ou trabalhar, informando-os de que, sim, os EUA têm leis trabalhistas e órgão administrativos e judiciais para o seu “enforcement”.

A cartilha principia enunciando os direitos básicos de qualquer pessoa que vá trabalhar nos EUA: “ser tratado e pago de maneira justa”; “não ser mantido no trabalho contra sua vontade”; “manter seu passaporte e outros documentos de identificação em seu poder”; “denunciar abuso sem retaliação”; “solicitar ajuda de sindicatos, grupos de imigrantes e de direitos trabalhistas ou outros grupos”; e “recorrer à justiça em um tribunal dos Estados Unidos”.

Logo a seguir a cartilha detalha os princípios básicos da legislação trabalhista americana, tanto no plano do direito individual como no coletivo. Quanto ao primeiro, ressalta o direito de não sofrer discriminação e de não sofrer retaliação por exigir os direitos previstos em lei. Na seção sobre remuneração, explica o salário mínimo federal e estadual, bem como os limites de jornada e a forma correta de pagamento de horas extras. Quanto a estas, o governo americano dá o seguinte conselho: “mantenha um registro detalhado de todas as horas que trabalhar. Adquira um caderno e anote os dias e horas que trabalhou, o quanto foi remunerado, as datas que recebeu os pagamentos, descontos e deduções de cada salário, assim como o motivo destes descontos”.

Há uma seção especial sobre a proteção do trabalho da mulher, com detalhamento sobre a proteção à gestante e explicação sobre condutas que podem ser consideradas assédio sexual perante a lei americana, como “exigir que você pratique atos sexuais”, “tocar em você de uma maneira sexual” ou “dizer ou gritar comentários ofensivos e sexuais”. O consulado orienta as trabalhadoras estrangeiras a “manter um registro detalhado de cada comentário impróprio e/ou ato de seu empregador contra você e anotar os nomes e telefones de testemunhas”.

Além de descrever em detalhe as condições mínimas de segurança e saúde no local de trabalho e de informar sobre o direito de unir-se a um sindicato e de beneficiar-se de negociações coletivas, a cartilha reserva uma seção para tratar do direito de ação contra maus empregadores.

O documento informa inclusive a possibilidade de processar a empresa durante a relação de emprego, como em uma “rescisão indireta” em nosso sistema: “você poderá fazer uma reclamação formal ou entrar com um processo contra o seu empregador enquanto ainda estiver trabalhando. Há penas severas para o empregador”. Além disso, o estrangeiro é informado de que “poderá permanecer nos Estados Unidos legalmente para dedicar-se a uma reivindicação judicial”.

Nada mal para um país que não tem CLT, Justiça do Trabalho ou ações trabalhistas.

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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