Rebecca J. Scott
Fonte: Mundos do Trabalho, v. 5, n. 9, p. 129-137, jan./jun. 2013.
Resumo: O uso da palavra “escravidão” para descrever várias formas contemporâneas de exploração suscita questões de definição legal. A escravidão nas Américas no século dezenove estava ancorada na reivindicação de propriedade sobre pessoas, portanto usar o termo para caracterizar abusos modernos, quando nenhum Estado reconhece mais a propriedade sobre pessoas, pode representar um risco de anacronismo. Em debates parlamentares recentes, tanto na França quanto no Brasil, a acusação de anacronismo foi feita pelos opositores do reconhecimento legal do crime de escravização. Evidências históricas demonstram, entretanto, que o exercício dos poderes inerentes ao direito de propriedade não necessariamente derivam de um prévio direito legal à propriedade. O controle sobre pessoas, equivalente à posse, podia ocorrer fora da lei e, no entanto, ser reconhecido como propriedade legal após o fato. Na justaposição de um caso de 1810, de Nova Orleans, na Louisiana, com a situação que deu origem à decisão do caso Siliadin contra França pela Corte Europeia de Direitos Humanos, esse artigo analisa os paralelos nas circunstâncias de escravidão urbana e os mecanismos através dos quais os “poderes inerentes ao direito de propriedade” foram exercidos, independente de qualquer direito de fato. O argumento apoia tanto a reforma do código penal francês para tornar o crime de escravização explícito, e a emenda proposta à Constituição brasileira que elevaria as penas para o uso de trabalho escravo.
No Brasil, como em outros países, as campanhas contra o trabalho escravo são frequentemente confrontadas com questões complexas de definição. Alguns juízes evitam usar a palavra “escravidão”, alegando que esse termo implica condições de sujeição absoluta, em que uma pessoa seria propriedade de outra. É comum encontrar a ideia de que a escravidão envolve grilhões e chicotes, e que a palavra “escravo” não pode ser aplicada a uma pessoa que é juridicamente livre e formalmente capaz de sair do lugar em que trabalha.
Os que se opõem à criminalização da exploração do trabalho escravo, e à expropriação de propriedades em que o uso de trabalho escravo for confirmado, usam o argumento de que a definição legal de uma situação de escravidão não é clara e que as medidas previstas pela Proposta de Emenda Constitucional atualmente em debate no Senado abririam a possibilidade de abusos por parte de fiscais ou procuradores. Assim, em vez de examinar os parâmetros bem concretos usados por procuradores e fiscais que atuam nessa área, preferem apenas sugerir que a definição de “trabalho escravo” ainda é bastante abstrata e controvertida.
Sabemos todos que esses argumentos são frequentemente movidos pela má-fé e pelo desejo de lucro. Para fazer frente a esses problemas e questionamentos, no entanto, é importante que juristas e outras pessoas que lidam com essa temática levem a sério a questão da definição. Este artigo propõe uma contribuição histórica para esse esforço de esclarecimento.
Como definir “escravidão” ou “trabalho escravo”? O que fazia de alguém um escravo no século XIX, quando a escravidão era uma instituição reconhecida e identificada com a propriedade sobre as pessoas? Como definir alguém como escravo, com alguma precisão, no século XXI, quando a propriedade sobre pessoas não é admitida pela lei? À primeira vista, pode-se imaginar que o termo “escravo” no século XIX significava uma pessoa sobre a qual havia um verdadeiro direito de propriedade; e seria, portanto, enganoso usar o termo no século XXI, pois não há nenhum legítimo direito de propriedade sobre pessoas em um mundo em que a escravidão foi abolida.
Mas, quando examinamos os textos produzidos pela Liga das Nações e pelas Nações Unidas, e outros documentos pertinentes ao tema, vemos que a escravidão é definida no direito internacional do seguinte modo: “o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atributos do direito de propriedade”. É importante observar que a formulação não fala em “propriedade”, mas em “atributos do direito de propriedade”. Talvez seja útil pensar nessa definição como uma fórmula algébrica: o exercício de poderes – abre parênteses – inerentes ao direito de propriedade – fecha parênteses – sobre uma pessoa.
Em outras palavras, existem poderes que são inerentes à propriedade e, se esses poderes são exercidos sobre uma pessoa – mesmo que ela não seja propriedade de ninguém –, a relação pode, no direito internacional, ser descrita juridicamente como de escravidão. Em algumas decisões recentes, vários tribunais têm reconhecido a utilidade dessa definição (que data de 1926, feita pela Liga das Nações) e considerado que se pode compreender vários abusos cometidos tanto em tempos de guerra quanto de paz como escravidão. Mas, se separamos o exercício desses poderes do título de propriedade, propriamente dito, por que usar a palavra “escravidão”? Não seria um anacronismo, já que a palavra “escravidão”, desde pelo menos a época do Império Romano, se refere à propriedade de pessoas?
Para demonstrar por que não é assim, é importante tratar de exemplos específicos, deixando de lado por um momento as questões abstratas.
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Rebecca J. Scott faz parte do Departamento de História e Faculdade de Direito, University of Michigan.