O trabalho como determinante do processo saúde-doença

Ana Claudia Moreira Cardoso

Fonte: Tempo Social, São Paulo, v. 27, n. 1, jan./jun. 2015.

Resumo: Pretende-se analisar como, no contexto atual, as condições organizacionais e físicas do trabalho, as situações e as relações de trabalho e as formas de gestão estão determinando e contribuindo para o adoecimento dos trabalhadores. Para compreender uma relação tão complexa, discute-se a necessidade de empreender olhares diferentes e complementares. Assim, a partir do depoimento de uma trabalhadora adoecida pelo trabalho, pretende-se construir um diálogo com alguns estudos teóricos que tratam da relação entre a atividade do trabalho e a saúde do trabalhador, sendo analisadas, ainda, as informações teórico-metodológicas de pesquisas internacionais que têm como foco a saúde do trabalhador.

Sumário: Uma vivência do trabalho no contexto atual | O trabalho como determinante do processo saúde-doença do trabalhador | Do “individual” ao social | Pela abordagem do trabalho como determinante do processo saúde-doença | Considerações finais | Referências bibliográficas

Uma vivência do trabalho no contexto atual

Este artigo se inicia com o relato de uma trabalhadora do setor bancário que está em licença para tratamento de saúde há dois anos e cinco meses.

Paula sempre quis ser superintendente e, para isso, investiu muito em sua formação. A bancária realizou cursos de marketing na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), de recursos humanos no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), de especialização na área de finanças na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e de pós-graduação em gestão empresarial na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Praticamente todos eles foram financiados pela trabalhadora, e, sempre que ela acabava um curso, o seu coordenador lhe dizia: “Ótimo, qual será o próximo?”.

No seu trabalho, cada vez que ela conseguia alcançar um bom resultado em uma agência, seu chefe a mandava para outra agência, considerada problemática, para torná-la rentável e com resultados positivos. Além disso, Paula relata que tinha um número cada vez maior de clientes. Pouco antes da sua licença, era responsável pela folha de pagamento de 267 grandes empresas, além de gerenciar cerca de quatrocentos funcionários, sendo 72 gerentes diretos; ou seja, ela era a responsável por qualquer problema com um desses clientes e/ou trabalhadores. Como “reconhecimento” pelo seu bom trabalho, mediante o alcance das metas, ganhava cada vez mais clientes em mais estados para administrar, não tendo mais tempo “para sequer almoçar, nem responder e-mails”. Muito menos para sua família e amigos.

Foi quando deslocaram Paula para trabalhar no Rio Janeiro, na época da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O motorista que a acompanhava até o trabalho várias vezes ia à frente, para ver se era possível entrar nas agências em que ela trabalhava, localizadas nos morros do Jacaré, Macaco e Borel. Paula, ao voltar para o hotel em que se hospedava, estava esgotada e ainda tinha todos os e-mails do dia para responder, somar a produção diária, cobrar os que deixaram de fazer, entre outras pendências.

Ela se sentia muito cansada, com fadiga, dores de cabeça, no ombro, tontura e “vontade de sumir”, confessando ter desejado se jogar do 27º andar do luxuoso hotel Othon. Mas queria se mostrar firme e precisava atingir a meta, ou seria humilhada na reunião semanal do banco. “Eu alcançava todas as metas impostas, sei que consegui fazer muito resultado para o banco. Mas também foi assim que o banco foi tirando as horas da minha vida e da minha família. Eu não tinha mais tempo para nada. Fui sentindo que minha energia estava acabando”.

Cansada de tudo e não vendo mais saída, Paula tirou licença para realizar uma cirurgia da bexiga, que já era solicitada por seu médico há três anos e, por conta da carga de trabalho, não conseguira fazer. Quando se afastou para realizar o procedimento cirúrgico, a bancária passou a ser atendida apenas pelo departamento de recursos humanos do banco e a receber números de protocolos. Tal situação, agravada por seu histórico no trabalho, a deixou transtornada: “meu cérebro entrou em pane mental, tive um branco, tive surto e síndrome do pânico. Naquele momento, me levaram a um psiquiatra, que detectou que eu estava com estresse profundo, correndo risco de a minha mente nem se recuperar”. A Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) foi aberta pelo sindicato dos Bancários de São Paulo e, ainda assim, o banco informou ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que não tinha recebido o documento.

Paula relata tristemente suas idas aos peritos do INSS, um ortopedista, outro otorrino. “Nenhum quis ouvir o que eu tinha para contar, minha experiência no trabalho, meus sintomas e minhas dores: os médicos não consideram o que os trabalhadores falam”. Até que, numa terceira perícia, ela começou falando à médica que, se não pudesse novamente contar o que estava sentindo e o que estava acontecendo, iria embora e desistiria. Nesse momento, a médica se propôs a ouvi-la e explicitou que não conhecia muito sobre adoecimento mental ou, especificamente, sobre a Síndrome de Burnout, mas solicitou que Paula deixasse com ela o material sobre o assunto para que pudesse pesquisar.

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Ana Claudia Moreira Cardoso é doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo em co-tutela com a Universidade Paris 8, com pós-doutorado pelo Centre de Recherche Sociologiques e Politiques de Paris (2013) e pela Universidade de Brasília (2011). Trabalha no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômico (Dieese) desde 1990 e atualmente é professora na Escola Dieese de Ciências do Trabalho.

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