O tempo mediando as relações de trabalho

Ghione: tempo é uma moeda valiosa no mundo do trabalho. Fotografia: Charles Soveral/DMT

por Charles Soveral

Em 1º de maio de 1886, um grupo de trabalhadores foi às ruas de Chicago, nos Estados Unidos, reivindicar a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. A partir desse dia, celebrado até hoje como Dia do Trabalho, o mundo entendeu que o tempo tem um imenso valor para quem produz e isto persiste até hoje numa disputa cada vez mais acirrada e complexa. A análise é do professor de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Universidad de La República Del Uruguay, Hugo Barreto Ghione, que participou no último dia 17 de junho do XXXI Congresso Estadual de Advogados Trabalhistas no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre.

Ghione participou do evento a convite da Associação Gaúcha dos Advogados Trabalhistas (Agetra). Discorreu sobre a relação entre o tempo e o Direito do Trabalho e como isto influencia todas as atividades e os contratos entre empregadores e empregados. “É uma relação direta que nasce com o sindicalismo. Desde o início, as primeiras organizações sindicais tiveram como reivindicação o tempo de trabalho. Salário, jornada, saúde e segurança na atividade laboral formaram a primeira pauta reivindicatória. O tempo se expressa como jornada, que estabelece uma limitação da energia despendida na execução da tarefa pelo trabalhador em favor do empregador”, diz o professor uruguaio.

Ao brincar que o tempo é a moeda dos pobres, Ghione analisa as diversas dimensões e implicações que o transcurso das horas impacta no Direito do Trabalho. “Materializado como a duração da relação de trabalho, o tempo é um campo de disputa de diferentes interesses que existem em uma relação de trabalho. O interesse do patrão ou empregador de utilizar a energia do trabalho durante a maior parte possível e a do trabalhador de defender o seu próprio tempo para a realização do ócio, do descanso, da vida familiar”.

Ele ressalta que o tempo está vinculado à subordinação e a hora de trabalho é o tempo que o trabalhador está à disposição do empregador. Esses conceitos foram assimilados pelas principais normas e códigos de trabalho por todo o mundo.

A segunda forma de caracterizar o tempo no Direito do Trabalho está no que o professor uruguaio chama de duração do contrato. Nesses casos, a regra é contrato por tempo indefinido. Ele observa que todos os instrumentos jurídicos oferecem limitações ao tempo, indenizações, avisos, exigências de justa causa. “Todas essas ferramentas existem para preservar o valor do tempo na relação de trabalho e ao Direito do Trabalho interessam os contratos sem prazo. São aqueles contratos que têm uma data para começar, mas seu final é indefinido. Esses abrem o espaço para o trabalhador desenvolver sua atividade em longo prazo”, complementa.

No modelo Fordista o trabalhador só sabe da pequena parte da qual é encarregado. Foto: Wikipedia/ Arquivo.
No modelo Fordista o trabalhador só sabe da pequena parte da qual é encarregado. Foto: Wikipedia/ Arquivo.

O tempo no trabalho foi mudando no transcorrer das décadas e com a evolução dos sistemas de produção. Ghione explica que os modelos clássicos de contrato de trabalho surgiram a partir do Taylorismo e do Fordismo, sistemas de organização da produção que são modos tecnológicos do uso da força de trabalho. Esses sistemas aumentaram a intensidade do trabalho através da cadeia de montagem, estabelecendo uma rígida e forte separação entre concepção de trabalho (elaboração, planejamento) e a execução do trabalho. “Havia um exército de operários e um pequeno grupo de executivos. Nítida separação entre quem planeja e dá ordens e quem as executa. Isso supõe uma forte hierarquização da estrutura de trabalho. Esse modelo exigia um estudo do tempo de trabalho que cada empregado gastava em cada tarefa. O trabalho se fracionava e cada fração de trabalho era medida em tempo.”

Nesses modelos, a maior parte dos operários não necessita de alta qualificação para a execução das tarefas. O professor da Universidad de La República usa a imagem do personagem criado pelo ator Charles Chaplin no filme Tempos Modernos para exemplificar esse modelo de produção em massa e de baixos custos. “O resultado dessa atividade era um operário embrutecido, desqualificado, não tinha uma compreensão do todo, não sabia nem mesmo que tipo de produto ele estava ajudando a fabricar”, observa.

Para  Ghione, não há dúvida de que os modelos clássicos de Direito do Trabalho e de contratos de trabalho são originários desses períodos e que repercutem fortemente nos dias atuais. “A greve é a interrupção do tempo de trabalho, assim classificada para marcar a parada da produção, e a negociação coletiva se pautava pelos salários mínimos por categorias ou por conjuntos de tarefas. Salário homogêneo e a atividade exercida no local da empresa com horário fixo em turnos sob o controle da gerência. O salário medido e pensado a partir do tempo de trabalho”.

Segundo Ghione, esse modelo entrou em crise nos anos 1970 com fortes conflitos na Europa, especialmente na Itália, por suas características rígidas e de pouca preocupação com a qualidade de vida dos trabalhadores.

Ele lembra que, além da pressão dos movimentos sindicais, as transformações no mercado, com mais exigências na qualidade do produto, forçaram uma mudança. “A personalização do produto, por exemplo, aparece como exigência de consumo que levou a um ciclo produtivo mais flexível, com novas tecnologias de gestão e de manejo dos trabalhadores. O consumo nessa fase tinha por foco as pequenas quantidades, mais exclusivas e diferenciadas e com mais qualidade para satisfazer a mercados mais exigentes”.

Para ele, esse modelo reduziu a escala de produção e o tempo de trabalho, forçando a mais qualificação dos profissionais. O novo modo tecnológico rompeu com os conceitos anteriores e naturalmente repercutiu nos novos contratos de trabalho, que passaram a ter outras características.

Finalmente, o modo de organizar o trabalho sofreu, de acordo com o pesquisador uruguaio, mais uma revolução  Está baseada em sistemas informatizados que alteraram os sistemas produtivos e agregaram novos conceitos e elementos, como computadores e programas para computadores. Ghione elenca algumas das mais significativas mudanças: duração da jornada,  horários mais flexíveis, equipes de trabalho com mais autonomia, descanso e hora de trabalho separados por uma linha mais tênue e o retorno do trabalho autônomo. “Atualmente, os trabalhadores não encerram suas atividades quando termina seu horário formal. Em casa, nos celulares, em todos os lugares estamos trabalhando. Desaparece a fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo de uso pessoal. Há uma espécie de invasão do trabalho no mundo pessoal e todas estas coisas começam a se refletir no Direito do Trabalho”.

O professor  Ghione conclui que essas mudanças aparentemente podem ter sido melhores, mas há uma relação desigual entre a produção e o direito que todas as pessoas têm a sua vida pessoal, aos momentos de descanso, de vida familiar. “As novas tecnologias e os novos sistemas de produção estão mais difusos, tornando a linha de direitos mais tênues, o que nos leva a buscar no Direito do Trabalho um tempo de relações mais equilibradas que nos permitam ser mais humanos e menos máquinas de produção”, conclui ele.

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