Ainda que esta autorize a fixação de “limitações ou afastamentos de direitos” não é de uma pura e simples autorização para a eliminação de direitos que se trata.
Jorge Luiz Souto Maior
Fonte: Blog do Souto Maior
Data original da publicação: 08/06/2022
Em 02 de junho, julgando o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.121.633, o Plenário do STF fixou, em tema de repercussão geral (1046), a tese de que: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Muito se tem dito que, com isto, se teria chegado à consideração simplista de que o “negociado prevalece sobre o legislado”, no sentido específico de conferir a possibilidade de que, por meio da negociação coletiva, em vez de se avançar na melhoria das condições sociais e econômicas dos trabalhadores e das trabalhadoras (para o que, afinal, se destina o negociado e, neste aspecto, inclusive, sempre prevaleceu e continuará prevalecendo sobre o legislado), se obtenha da própria classe trabalhadora um aceite para o retrocesso.
Mas, concretamente, não é isto que restou dito, de forma expressa, no enunciado da tese.
Ainda que esta autorize a fixação de “limitações ou afastamentos de direitos” não é de uma pura e simples autorização para a eliminação de direitos que se trata. O foco, como já anunciado desde as primeiras discussões trazidas pelo relator na proposição do Tema 1046 é o da exigência, ou não, de contrapartidas para efeito de avaliação da validade de cláusulas fixadas em instrumentos coletivos de trabalho que afetem, de algum modo, direitos trabalhistas legalmente previstos, e o texto final em questão não afastou a exigência da contrapartida, ou como restou dito, de “vantagens compensatórias”, estatuindo apenas que estas não precisam estar explícitas, embora, certamente, devam estar presentes, sob pena de não se configurar uma negociação e sim nada além do que uma submissão.
Além disso, fixou dois delimitadores concretos para “as limitações ou afastamentos de direitos”.
Primeiro, a tese da “adequação setorial” preconiza uma adaptação da regra geral a uma situação específica do trabalho a ser realizado. No contexto desta linha de pensamento, a validade da cláusula estará condicionada à justificativa de que a norma geral não se encaixa de forma precisa nas condições em que o trabalho é realizado, fixando-se, assim, outra que a substitua com vantagem ou o seu afastamento, sem que disto resulte prejuízo abalo concreto na proteção jurídica do trabalhador ou da trabalhadora.
Segundo, o de que devem ser respeitados “os direitos absolutamente indisponíveis”. Neste aspecto, convém, inicialmente, ressaltar que, embora o STF pareça ter pretendido criar, por meio do emprego de um advérbio de intensidade, uma categoria jurídica específica, a dos “direitos absolutamente indisponíveis”, em contraposição aos “meros” “direitos indisponíveis”, resta evidente a impropriedade técnica cometida, pois o que já é indisponível é, como o próprio nome diz, indisponível. Não se pode transformar o que é indisponível em disponível, criando a figura do “absolutamente indisponível”, ainda mais sem parâmetro para separar um do outro.
Aliás, é de suma importância que se compreenda o grave risco que a todos toca esta manifestação da mais alta Corte Judiciária do país. Ora, no afã de acatar a ideia de que nem todos os direitos trabalhistas são indisponíveis, não tendo uma base concreta para especificar quais seriam uns e outros, o STF achou por bem, ou por mal, como a mim me parece, “data venia”, flexibilizar o próprio conceito de indisponibilidade. Assim agindo, deixou a porta aberta para que os direitos fundamentais, os direitos humanos e os direitos de personalidade, todos indisponíveis, como se sabe, se submetam a um crivo arbitrário e, com isto, ser limitados ou afastados.
Verdade que a teoria do pós-positivismo jurídico, preconizada por Robert Alexy, já fez o trabalho de criar este permissivo de afastamento de uma norma de direito fundamental no caso concreto. Mas, mesmo esta engenharia jurisprudencial (ao meu ver, arbitrária e inconsistente) só se efetiva quando se colocam, em posições (aparentemente) contrapostas, dois direitos fundamentais. Assim, pelo critério do sopesamento (mal traduzido como “ponderação”), vislumbrando a proteção do bem considerado de maior valor na situação concreta, uma das normas é afastada. Mas a norma afastada não é transformada, para efeito conceitual, como uma norma não fundamental, perdendo o seu caráter de indisponibilidade. Também não se cria, de forma abstrata, nenhuma diferenciação entre os direitos fundamentais. Ademais, vale destacar que o próprio Alexy faz questão de ressaltar que esta perspectiva jurídica não tem o propósito de fragilizar os direitos fundamentais ou mesmo abalar, por razões ligadas às disputas políticas e aos interesses do poder econômico, as bases do Estado Social Democrático de Direito. Daí porque, como explicita o referido autor, não se submetem ao sopesamento os direitos sociais, fixados nas Constituições e Tratados internacionais como direitos fundamentais, trazendo em contraposição argumentos de ordem econômica, até porque, cumpre lembrar, os direitos sociais existem exatamente para fixar limites à destrutiva concorrência entre os capitais.
Invertendo a própria lógica pós-positivista, para o efeito de fragilizar a efetividade dos direitos trabalhistas, que foram considerados fundamentais pela Constituição Federal, o STF acabou por permitir que outros direitos fundamentais, como os direitos civis e políticos, assim como a liberdade, em todas as suas acepções constitutivas da condição humana, passem a um estágio de total insegurança, o que contribui, sobremaneira, ao avanço de pretensões ditatoriais. Quando as instituições responsáveis pela efetividade dos direitos fundamentais e das normas constitucionais garantidoras do Estado Democrático fragilizam estes preceitos fragilizam-se a si próprias e a todos cidadãos e cidadãs.
E tudo isto se diz apenas para deixar o destaque de que mesmo sob o viés da argumentação civilista não se chegaria ao resultado da efetivação de negócios jurídicos para meramente legitimar o retrocesso social, embora o argumento mais definitivo contrário a esta tese seja o de que, de fato, não se está tratando de um típico negócio jurídico (civilista) quando se fala de negociação coletiva trabalhista e sim de um instituto jurídico posto a serviço da classe trabalhadora para, atendendo preceitos da ordem democrática, permitir a sua integração política, social e econômica na sociedade capitalista, possibilitando e instrumentalizando a sua luta por melhores condições de vida.
Neste aspecto, aliás, reside o ponto mais problemático da decisão em questão, qual seja, o de inverter os papéis dos sujeitos da negociação coletiva trabalhista, fazendo com que os postulantes de direitos não sejam mais os representantes da classe trabalhadora e sim o setor patronal. Os acordos e as convenções coletivas são vislumbrados como mais um fator de opressão de classe.
Há, portanto, um papel extremamente relevante a ser cumprido no campo jurídico, sobretudo, para obstar qualquer iniciativa de se atribuir um sentido discricionário à alusão feita no enunciado da tese do Tema 1046 à existência de “direitos absolutamente indisponíveis”, contrastando com supostos “direitos indisponíveis disponíveis”.
É essencial, pois, compreender o referido enunciado dentro dos padrões constitucionais, que, inclusive, posicionaram os direitos trabalhistas no “Título dos Direitos e Garantias Fundamentais”, fazendo com que tais direitos se apresentem como indisponíveis, sem qualquer subdivisão que possa ser arbitrariamente concebida.
Os permissivos de negociação trazidos no art. 7o, vale dizer, relacionam-se com o princípio, fixado no “caput” do mesmo artigo, da “melhoria da condição social” dos trabalhadores.
Nada há, pois, em termos de previsão constitucional, que autorize a conversão da negociação coletiva em um instrumento a mais a serviço do poder econômico para a espoliação da classe trabalhadora, de modo a impor um rebaixamento de sua condição social. E cumpre não olvidar que, como a própria Constituição Federal estabelece, as conquistas legalmente instituídas integram o patamar mínimo desta condição.
Não bastasse tudo isso, acresça-se que os direitos sociais devem se sobrepor aos interesses meramente econômicos, visto que a ordem econômica deve seguir “os ditames da justiça social” (art. 170 da CF), devendo, ainda, prevalecer o compromisso internacional constitucionalmente assumido em torno da prevalência dos Direitos Humanos (art. 4o II da CF).
Certo é que, somados todos estes fatores jurídicos, políticos e até mesmo linguísticos, não resulta do enunciado da tese expressa no ARE 1.121.663, que, doravante, o “negociado prevalece sobre o legislado, para instrumentalizar a eliminação de direitos trabalhistas”, como a muitos interessou dizer. Se a tese fosse esta, isto estaria dito de forma expressa no enunciado, mas, como é possível ver, para quem quer ver, não está.
Na verdade, considerando todos estes aspectos mencionados, o que se extrai do enunciado em questão é que o campo para que uma negociação coletiva limite ou afaste algum direito trabalhista é extremamente restrito e, mesmo assim, carregado de insegurança jurídica, visto que não há uma delimitação precisa desta possibilidade.
Isto porque só serão considerados constitucionais os acordos e as convenções coletivas de trabalho que, tendo por realidade concreta uma questão que, diante da especificidade do trabalho realizado em determinado setor produtivo, pondo em contraste dois direitos fundamentais, limitem ou afastem um direito, o que pressupõe, no próprio sopesamento realizado, um elemento de vantagem compensatória, que não exige, por certo, explicitação especificada, de modo que não se desrespeite a essência dos direitos fundamentais, rol, ao qual, inequivocamente, os direitos trabalhistas se inserem.
Ou, dito de outro modo e sinteticamente: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Uma visão jurídica um tanto quanto otimista com relação à extração de um sentido que vede a noção de terra arrasada na seara trabalhista ainda mais se justifica quando se depara com a notícia, ainda fresca, de que o STF, no dia de hoje, 8 de junho, apreciando o ARE 999.435, contrariando mais uma vez os termos da “reforma” trabalhista, fixou a tese de que “A intervenção sindical prévia é exigência procedimental imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, que não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção de acordo coletivo” (Tema 638) – mas sobre isto falaremos com maior detalhes em texto posterior.
De todo modo, há muito mais a ser dito a propósito deste tema, seja porque a vida concreta não se circunscreve aos limites da ordem jurídica, seja porque a resposta jurídica a ser dada pela institucionalidade pode não vir a ser esta aqui preconizada.
Falando, pois, da materialidade da condição de vida dos sujeitos cuja vida é diretamente atingida por este debate formal, o que parece importante destacar é que o ambiente jurídico nunca foi, de fato, favorável aos interesses da classe trabalhadora no Brasil e, nos últimos anos, tem sido ainda pior.
A “reforma” trabalhista, rechaçada apenas em parte pelo STF, ampliou as formas de exploração do trabalho e possibilitou que milhões de trabalhadores e trabalhadoras fossem conduzidos a relações precárias de trabalho e, sobretudo, à informalidade, que, chamada pelo nome, nada mais é que exploração do trabalho sem a limitação do aparato jurídico trabalhista.
Esta situação se consolidou diante da quase nenhuma resistência mais efetiva do mundo jurídico institucionalizado. Aliás, bem ao contrário, os principais instrumentos de superexploração tem sido reforçados na esfera jurisprudencial: ampliação da terceirização; redução das fontes de custeio dos sindicatos; eliminação da ultratividade (como reafirmado pelo STF no último dia 27/05, na ADPF 323); negativa generalizada da garantia constitucional da proteção contra a dispensa arbitrária (ainda que se possa propor uma superação deste entendimento com a limitação ora imposta no Tema 381 às dispensas coletivas); esvaziamento do conteúdo do direito de greve tal como foi estabelecido na Constituição Federal; e a eliminação do poder normativo da Justiça do Trabalho, com o estabelecimento do comum acordo como condição do dissídio coletivo (RE 1.002.295 – Tema 841).
Tem-se, pois, um contexto econômico, político e jurídico extremamente desfavorável aos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil.
Assim, diante da ameaça de desemprego e vendo o outro lado munido de todas as armas jurídicas úteis à imposição da sua vontade (fim da ultratividade; direito de greve corroído; terceirização irrestrita; fragilização financeira dos sindicatos; poder de efetuar dispensas arbitrárias – com restrição àqueles que venham a se considerar como coletivas; eliminação da via de acesso ao poder normativo da Justiça do Trabalho), ou, ao menos, não tendo armas jurídicas a seu favor, torna-se muito provável que direitos trabalhistas não venham a ser simplesmente pulverizados nas negociações coletivas. E, considerando todo este contexto, é também provável que esta inconstitucional queima de direitos trabalhistas fundamentais seja institucionalmente validada.
Desse modo, considerando o contexto histórico atual, mesmo com a possibilidade de uma disputa jurídica de sentido em torno da tese fixada no Tema 1046 e com o inegável freio estabelecido no Tema 381 (vedação da dispensa coletiva sem negociação prévia), o fato concreto é que existe uma possibilidade real da eliminação de todo o aparato jurídico trabalhista e o apagamento por completo daquilo que um dia se projetou como elemento básico da formação de um Estado Social Democrático de Direito no país, tendo por base a Seguridade Social, tendo por fundamento o pacto de solidariedade.
Assim, os modos mais efetivos de se garantir a preservação de direitos sociais que contribuem de algum modo para, dentro dos marcos da sociedade capitalista, assegurar uma subsistência menos indigna para a classe trabalhadora, é o de não transferir a disputa material para a institucionalidade (onde a visão de mundo predominante não abarca, de forma generalizada, os interesses da classe das pessoas que vivem da venda da força de trabalho) e o de não compactuar com as iniciativas de retrocesso social, afinal, o efeito, por muitos perseguidos, de que as negociações coletivas servirão de instrumento para aniquilar direitos trabalhistas historicamente conquistados só se dará se houver aceitação expressa das entidades representativas neste sentido.
O problema de ordem concreta é que para que esta resistência se efetive no atual contexto econômico, político e jurídico, que, como acima realçado, confere todas as armas ao capital, é necessária a consagração de um autêntico movimento coletivo dos trabalhadores e trabalhadoras enquanto classe. É fundamental superar o substrato jurídico-formal das categorias profissionais.
Apenas um pacto de não-retrocesso formulado entre as representações de trabalhadoras e trabalhadores, abrangendo, inclusive, mobilizações de solidariedade para se contrapor a eventuais represálias do poder econômico, será capaz de virar este jogo, cujo resultado, até agora, só tem interessado ao capital internacional especulativo e exploratório.
Nem mesmo cabe abandonar a emergência de uma reação coletiva promovida pela própria classe em nome da formulação de novas apostas, considerando a possibilidade do advento de um eventual futuro governo mais atrelado às demandas das trabalhadoras e dos trabalhadores, pois sem esta atuação de base pouco, ou quase nada se moverá na via jurídica institucional.
Ademais, foram estas apostas que fertilizaram o campo para os retrocessos, valendo lembrar que, historicamente, a classe trabalhadora, na perspectiva da luta por direitos, com os ajustes internacionais do capital de cunho neoliberal, foram retirados do papel de protagonistas na conquista de direitos e conduzidos à posição de resistir à retirada de direitos e assim tem sido mantida ao menos as últimas quatro décadas. O problema adicional é que estas resistências são formuladas no plano da subdivisão categorial e, malgrado exemplos de sucesso, no plano geral tem-se demonstrado ser pouco eficazes.
Com a maré atingindo o ponto do insuportável, talvez se tenha chegado, enfim, ao necessário ponto da virada.
Uma virada que, com o horizonte mais ampliado pela constatação dos limites de movimentação em uma sociedade que se estrutura e reconstitui produzindo e naturalizando as diferenças sociais e econômicas, as diversas formas de opressão e de discriminação, a exclusão e a fome, nos conduza ao essencial e urgente debate em torno de uma nova sociabilidade.
A classe trabalhadora possui papel fundamental e indispensável neste percurso e pouca esperança se poderá ter caso, diante de todos os abalos jurídicos e institucionais sofridos, continue concebendo acordos e convenções com retração de direitos e apostando na posterior invalidação institucional da negociação.
Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP. Presidente da Associação Americana de Juristas – AAJ-Rama Brasil.