As desigualdades e estruturas de poder originárias desse modelo de colonização estão presentes na realidade brasileira.
Ana Paula Alvarenga Martins
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 11/07/2023
A formação socioeconômica do Brasil deita suas raízes no modelo de colonização implantado pelos portugueses a partir do século XVI, estruturado na monocultura, na grande propriedade rural e na abjeta escravização dos negros e negras africanas, persistindo por mais de três séculos e moldando profundamente a estrutura social e produtiva do país.
A concentração de terras nas mãos de poucos proprietários, a distribuição desigual de riquezas, a sujeição de mulheres pretas e homens pretos à relações de propriedade e poder, sequestrados e traficados de seus países de origem no continente Africano, o patriarcado e o racismo estruturaram a sociedade brasileira. Foram milhões de africanas e africanos trazidos à força para o Brasil, submetidos a condições desumanas de vida e trabalho, sujeitados à violência, simbólica e real, contribuindo para a acumulação de riqueza dos proprietários de terra e perpetuando a desigualdade social, e sobretudo, racial no país.
Último país da América a abolir a escravização, a promulgação da Lei Áurea em 1888, não obstante ter concedido liberdade formal às mulheres e aos homens negros escravizados, não foi acompanhada da implementação de qualquer política pública de inserção social. Os ex-escravizados permaneceram aprisionados pela miséria, pela exclusão do mercado de trabalho formal, pela falta de acesso à educação, à saúde e à terra. A liberdade formal concedida pela Lei Áurea não foi acompanhada de proteção social e possibilitou a manutenção da exploração, da violência simbólica e real e da segregação social e sobretudo, racial.
Mesmo com as diversas transformações ao longo do tempo, como a industrialização e a urbanização no século XX, as desigualdades e as estruturas de poder originárias desse modelo de colonização estão presentes na realidade brasileira atual, influenciando a distribuição de recursos, a concentração de riqueza, as disparidades sociais, a precariedade laboral e a persistente e abjeta escravização de trabalhadoras e trabalhadores, majoritariamente negros e pardos.
Segundo os dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, do Ministério Público do Trabalho, 80% das trabalhadoras e trabalhadores resgatados da escravização entre 2002 e 2022 no Brasil, eram negros e pardos. Os dados brutos do Banco de Dados do Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado, do Sistema de Acompanhamento do Trabalho Escravo (SISACTE) e do Sistema COETE (Controle de Erradicação do Trabalho Escravo), referentes ao período iniciado em 2003 (Primeiro Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo),foram fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil, o tratamento e análise dos dados foi realizado pelo SmartLab.
As condições degradantes de vida e trabalho impostas a estes invisíveis personagens reais da nossa sociedade é estarrecedora. Um retrato do Brasil de tantas misérias e desalento, sujeitando milhares de trabalhadoras e trabalhadores às condições aviltantes de vida, lhes subtraindo toda a dignidade. Ainda que a escravização contemporânea assuma alguns contornos distintos da escravização colonial, não ocorrendo apenas quando o cerceamento da liberdade decorre de constrangimentos físicos, mas sobretudo, e com mais frequência, quando o cerceamento da liberdade decorre de constrangimentos socioeconômicos, a realidade vivenciada por milhares de trabalhadores escravizados no Brasil contemporâneo não difere substancialmente da realidade dos escravizados coloniais. A liberdade de vida e trabalho depende essencialmente da existência de um conjunto de alternativas ou oportunidades reais de escolha, o que, por sua vez, está atrelado aos recursos principalmente econômicos e sociais, que o trabalhador possui e que a sociedade e os governos lhes proporcionam.
A pessoa desprovida de renda e proteção social, é também desprovida de liberdade material, porquanto não há um rol extenso e satisfatório de escolhas reais que possam ser feitas. Não há alternativas para escolha, mas luta por sobrevivência. Escolher entre morrer de fome por falta de trabalho e proteção social ou submeter-se às piores e mais brutais formas de exploração humana, que sequestram a dignidade e corrompem a subjetividade.
Na caracterização da escravidão contemporânea, soma-se ao cerceamento da liberdade – em muitos casos ainda presente -, a submissão do trabalhador e sua família a condições sub-humanas, indignas e degradantes de vida e trabalho. O trabalho em condições análogas à escravidão é a forma mais atroz de exploração do trabalho humano, corrompendo a dignidade do trabalhador, perpetuando a pobreza extrema e a desigualdade social, representando uma violação gravíssima aos direitos humanos em todas as suas dimensões, individuais e sociais.
Ao ratificar as Convenções nº 29 e 105 e demais tratados internacionais de direitos humanos, o Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de enfrentar a escravização de seres humanos. Este compromisso está refletido na Carta Constitucional, o artigo 5º, proíbe o tratamento desumano ou degradante, os artigos 6º e 7º estabelecem um extenso rol de direitos sociais que visam diminuir as desigualdades sociais. Desde 1995, quando o Brasil reconheceu perante a comunidade internacional que ainda havia escravização de trabalhadoras e trabalhadores em seu território (apesar da Lei Áurea, que havia previsto sua abolição em 1888), importantes mecanismos foram criados visando a erradicação da escravização.
A instituição dos dois Planos Nacionais de Combate ao Trabalho Escravo, em 2006 e 2008, institucionalizou como uma política de Estado e prioridade nacional o combate à escravização de pessoas no país. No contexto destes Planos, um importante mecanismo de controle social foi implementado, a Lista Suja de pessoas e empresas que escravizam, tendo sido ainda aprovada a Emenda Constitucional 81, de 2014, que prevê a expropriação de propriedades urbanas e rurais nas quais tenha sido constatada a prática da escravização.
Em 2013, a Lei 10.803 ampliou o conceito legal do crime de redução à condição análoga à escravidão, abarcando sob o leque de proteção dos trabalhadores sua dignidade, perpassando a noção de mera ausência de liberdade, para refletir também aquilo que é sonegado às trabalhadoras e aos trabalhadores com tamanha exploração: sua condição de seres humanos.
Apesar dos avanços no âmbito das políticas brasileiras que promovem a erradicação do trabalho escravizado, muito ainda precisa ser feito. Há, ainda, uma grande discussão sobre a abrangência do conceito de trabalho escravo no Brasil, revelada sob um contínuo esforço de revisar a legislação atualmente vigente sobre o tema.
Diversos projetos de lei tramitam no Congresso Nacional, dentre os quais, destacam-se os projetos de Lei n° 5970, de 2019, de iniciativa do Senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) e o Projeto de Lei 1.678, de 2021, de autoria dos Senadores Rogério Carvalho (PT/SE) e Paulo Paim (PT/RS), ambos propondo a regulamentação do art. 243 da Constituição Federal sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravizado.
Ainda, Projeto de Lei 861, de 2023, de iniciativa do Deputado Federal André Figueiredo (PDT/CE) que propõem a alteração da Lei n. 6.019, de 1974, para determinar que, em caso de terceirização, a contratante seja responsável por impedir que trabalhadores sejam submetidos a condições análogas à de escravo e o Projeto de Lei n° 4371, de 2019, também de iniciativa do Senador Randolfe Rodrigues, que torna crime hediondo a conduta de redução de alguém à condição análoga à de escravo, mediante submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou condições degradantes de trabalho ou restrição de locomoção em razão de dívida. Também o Projeto de Lei 702, de 2023, proposta do Deputado Túlio Gadêlha que acrescenta o art. 394-B ao Código de Processo Penal, para dar prioridade de tramitação nos crimes de redução a condição análoga à de escravo.
Não obstante as várias iniciativas legislativas em tramitação visando ampliar a proteção das trabalhadoras e trabalhadores submetidos à escravização de seus corpos e subjetividades, nota-se uma crescente tendência de retrocesso em relação a outras iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravizado, como por exemplo, o Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escravizada, comumente reconhecido por Lista Suja. Em 2014, a mais alta corte brasileira concedeu liminar em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5209) suspendendo a publicação da referida lista, importante instrumento de controle social. Referida ação foi extinta pela perda superveniente de seu objeto em decorrência publicação da Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 02/2015, e a medida cautelar de suspensão de eficácia dos regulamentos impugnados, foi cassada.
Posteriormente, em setembro de 2020, no julgamento da ADPF 509, o Supremo reconheceu a constitucionalidade da Lista Suja, mas voto condutor balizou a constitucionalidade do cadastro no âmbito da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2011), ignorando o vasto arcabouço jurídico que fundamenta o combate ao trabalho escravizado no Brasil. A constitucionalidade do Cadastro, segundo a mais alta corte do país, está fundada no dever de transparência da Administração Pública, mas os diversos princípios e normas do direito constitucional do trabalho e as normas internacionais ratificadas pelo Brasil, relativas à defesa da dignidade e integridade dos trabalhadores não fundamentam esta decisão.
Em junho de 2023, outra decisão em sede da Reclamação Constitucional 60454, o Supremo Tribunal Federal cassou decisão do TRT da 2a. Região (SP), nos autos da Ação Anulatória nº 0002469-03.2014.5.02.0081 e da Ação Civil Pública nº 0000108-81.2012.5.02.008 contra a uma grande empresa de varejo, do setor de confecções de roupas, afastando a possibilidade de inclusão da referida empresa na mencionada Lista Suja.
Sob o fundamento de que os processos de terceirização amplos, inclusive de atividades fins, (i) garantem os direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho; (ii) preservam o emprego e aumentam a empregabilidade; (iii) formalizam o trabalho, removendo os obstáculos que levam à informalidade; (iv) melhoraram a qualidade geral e a representatividade dos sindicatos; (v) valorizaram a negociação coletiva; (vi) desoneraram a folha de salários, justamente para incentivar a empregabilidade; e (vii) acabam com a imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho, em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego, o Supremo Tribunal Federal cassou decisão do TRT da 2a. Região -SP (Ação Anulatória nº 0002469-03.2014.5.02.0081 e Ação Civil Pública nº 0000108-81.2012.5.02.008) contra a uma grande empresa de varejo, do setor de confecções de roupas, que reconhecendo (i) a ilicitude da terceirização da atividade-fim; (ii) a relação de dependência econômica entre as empresas tomadora e prestadora dos serviços; (iii) que a empresa tomadora exercia controle e gestão sobre todas as atividades de produção; (iv) que a empresa prestadora de serviços não tinha capacidade produtiva autônoma; (v) que era obrigação da tomadora zelar e fiscalizar aquele que contratou; (vi) e que estaria configurada a relação de emprego entre os trabalhadores resgatados e a tomadora, determinou a inclusão desta empresa na Lista Suja do trabalho escravizado.
A mencionada decisão monocrática proferida em Reclamação Constitucional está fundamentada em teses econômicas neoliberais, cujas premissas são, hoje, amplamente rejeitadas. Diversas produções acadêmicas, em todo o mundo, comprovam empiricamente, os efeitos deletérios das políticas neoliberais sobre o mundo do trabalho, e principalmente os efeitos nefastos de um específico mecanismo de redução de custos e riscos adotados pelos empresários, defensores do neoliberalismo – a terceirização. As políticas neoliberais são responsáveis pela precarização, nunca antes vista, das condições de trabalho, pela redução da renda do trabalho, pela fragmentação e pulverização da classe trabalhadora e, consequentemente pela fragilização das entidades sindicais de trabalhadores. E se não fosse suficiente, pelos mais de 200 milhões de desempregados e desalentados e mais de 50 milhões de pessoas escravizadas em todo o mundo.
Segundo Vitor Filgueiras, “aqueles que fazem apologia à terceirização invariavelmente afirmam sua suposta inexorabilidade. Não são conhecidos argumentos com evidências sobre consequências positivas para os trabalhadores. Quando muito, se faz menção a uma suposta geração de empregos, em que pese essa alegação não ter coerência, mesmo do ponto de vista lógico. Todos os postos de trabalho terceirizados, por definição, são demandados pelos tomadores de serviços. A terceirização, per si, não cria nenhum emprego. Se a terceirização fosse extinta hoje a única consequência em termos de emprego seria a formalização de todos os contratos com os tomadores de serviço. A rigor, pelo contrário, a terceirização diminui o número de empregos, pois há evidências de que os terceirizados têm jornada mais longa que os empregados contratados diretamente (CUT/Dieese, 2011).”
Diversos estudos acadêmicos demonstram que a terceirização promove a fragmentação das bases sindicais, pulverizando a representação dos trabalhadores em um sistema sindical no qual a representatividade é estabelecida pela categoria econômica, e a unicidade sindical deve ser observada, fragilizando os sindicatos, e estendendo seus efeitos deletérios ao conjunto dos trabalhadores brasileiros. A terceirização ampla e irrestrita promove a redução de direitos, aprofunda as desigualdades na pactuação da força de trabalho, precariza substancialmente as condições de trabalho às quais são submetidos os trabalhadores terceirizados, determina vínculos mais instáveis, menores salários e mais acidentes laborais. Neste contexto, a terceirização amplia a capacidade de exploração do trabalho e reduz a probabilidade de atuação dos agentes que poderiam impor limites a esse processo, sobretudo, os sindicatos.
É exatamente nessa combinação de fatores que reside a relação entre terceirização e escravização. Os dados apurados Departamento de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Trabalho e Emprego, demonstram que nos últimos anos no Brasil, considerados os maiores resgates de trabalhadoras e trabalhadores escravizados, 90% eram terceirizados.
A história recente da economia brasileira mostra que o desempenho do mercado de trabalho não está associado às supostas inflexibilidades da legislação trabalhista ou à possibilidade de terceirização ampla, mas sim ao crescimento econômico e à adoção de políticas que promovam um modelo de crescimento compatível com a queda na taxa de desemprego e o avanço do padrão de vida dos trabalhadores. Entre esses dois projetos encontra-se o Brasil em momento de conflagração política, em que os interesses econômicos não se intimidam em direcionar os rumos da sociedade.
Para além do discurso único que propala construções teóricas questionadas mundo afora, é preciso compreender o sentido que está por trás de cada um dos modelos oferecidos ao país e, recorrendo-se ao passado recente, constatar que é na definição de uma estratégia de crescimento que fortaleça o investimento público, a expansão e sofisticação da estrutura produtiva e a popularização do consumo e, sobretudo, na defesa intransigente dos direitos sociais e sua prevalência sobre os interesses meramente privados, retomando o sentido do público, que está uma proposta de país que favorecerá o conjunto das brasileiras e brasileiros e a construção de uma sociedade justa, equânime e solidária, em que mulheres e homens não serão mais escravizados, objetificados, discriminados e violentados material e simbolicamente.
Ana Paula Alvarenga Martins é juíza do Trabalho do TRT 15, membra do Conselho Diretor da AJD e associada da ABJD e mestranda em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.