“O sistema capitalista neoliberal não oferece formas de assegurar a preservação do planeta”. Entrevista especial com Cristina Vieceli sobre o encontro Economia de Francisco

Fotografia: Arquivo pessoal

por Igor Natusch

Está cada vez mais claro para quem se dispõe a enxergar: se insistir no atual caminho, a humanidade se encaminha para a própria destruição. O ataque à natureza se acelera, causando graves reflexos no clima e disparando tragédias naturais, em especial em áreas habitadas pela população mais pobre – e a erosão da solidariedade, consequência de um ideário neoliberal que coloca o capital acima do humano e ataca todas as formas de proteção social, dá nova força a flagelos como a fome, a miséria e o desamparo, além de nos tirar a própria esperança de que outro caminho é possível. Esse é o mundo, e nada pode ser feito, parecem nos dizer.

Mas é preciso fazer algo. Em busca de alternativas a um sistema que, em última análise, inviabiliza a vida na Terra, foi promovido, entre os dias 22 e 24 de setembro, o encontro internacional Economia de Francisco, na cidade de Assis, na Itália. Atendendo um chamado do Papa Francisco, ativistas, pesquisadores, empreendedores e pensadores de todo o mundo se reuniram para construir ações e reforçar visões de mundo que protejam nossa “casa comum” do avanço destrutivo e predatório do sistema neoliberal. Uma resposta que só pode ser construída a partir da união de muitos pensares, e que implica não apenas em mudanças sistêmicas, mas na retomada da generosidade e da coletividade como pontos de partida para uma renovação do mundo.

Uma das integrantes da delegação brasileira (a segunda maior a participar do encontro), a economista Cristina Vieceli está envolvida com o evento desde antes do encontro em si, participando de um dos vários grupos temáticos que, durante os anos de 2020 e 2021, se engajaram na busca de ideias novas para um mundo que, mais do que nunca, precisa de novas formas de pensar.

Cristina Vieceli. Fotografia: Arquivo pessoal

Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, Cristina Vieceli conta mais sobre essa experiência, realçando os principais tópicos abordados e a importância de uma economia que coloque a vida como bem maior.

DMT – Eu queria começar nossa conversa perguntando a respeito desse encontro mundial com o Papa Francisco. Como você se inseriu nessa iniciativa? Como foi esse processo de participar dessas discussões em busca de um modelo econômico mais fraterno e menos predatório?

Cristina Vieceli – A ideia do encontro surgiu em 2019, antes da pandemia, portanto. Foi feito um chamado pelo papa Francisco a economistas, empreendedores e ativistas sociais, propondo pensar em um mundo novo e em uma alternativa ao sistema econômico capitalista neoliberal. E eu acho importante destacar que essa convocação não foi somente a católicos e cristãos, mas algo mais amplo, com pessoas de diversas ideologias e de diferentes lugares. Durante esse período de 2020 e 2021 não foi possível fazer encontros presenciais (por causa da pandemia), mas houve todo um trabalho que foi realizado virtualmente, a partir da organização em equipes temáticas.

Na época (em que fui convidada a participar) eu estava terminando o meu doutorado, e a minha pesquisa foi sobre os trabalhos reprodutivos não remunerados. E essa pesquisa traz em si uma crítica também à questão do neoliberalismo, porque o que a gente está vivendo atualmente é uma crise na reprodução social, o que alguns economistas vão chamar também de crise dos cuidados. Isso tem muito a ver com o ensejo do próprio evento. Eu me inseri na vila Mulheres para Economia (em inglês, Women for Economy). Essa vila foi organizada com pessoas do mundo inteiro, então tinha mulheres da Índia, da França, do Líbano, enfim, de diversos países do mundo para discutir as questões das mulheres. Eram doze vilas temáticas, então teve vilas que discutiram sobre a questão da agroecologia, a questão do empreendedorismo, também questões mais ligadas à filosofia e à fé. Então foram diversos agrupamentos que serviram para discutir e, a partir dessas discussões, encontrarem ideias novas para a construção de uma sociedade nova, de um mundo novo, de alternativas a um sistema que inviabiliza a vida.

Em 2020 e 2021 foram realizados encontros virtuais, tiradas cartas de recomendações, e também foi criada uma academia visando financiamento de pesquisas. Eu fui também uma das pesquisadoras selecionadas para participar da academia de Francisco, e eu desenvolvi uma pesquisa junto com o professor Rober Iturriet Ávila, da Ufrgs sobre a questão da tributação e desigualdade de gênero, o que é um aprofundamento de uma pesquisa que eu já havia desenvolvido com ele. E além disso a gente fez um dicionário, que foi lançado no evento de 2022, com diversos termos para repensar a economia. Eu participei desse dicionário escrevendo o termo ‘desigualdade’. Infelizmente o dicionário por enquanto só está em italiano, ainda não está traduzido nem para inglês, nem para português.

E em 2022, então, houve o encontro presencial. Foram três dias de encontro, que reuniram pessoas de diversos lugares do mundo, o Brasil teve a segunda maior navegação. (O encontro) foi dividido em sessões e oficinas – o Suplicy estava lá, ele participou de uma oficina pra falar sobre a questão de renda básica cidadã. Também houve palestras com economistas renomados e também encontros das vilas temáticas para retirar uma pauta a ser seguida. No último dia então foi o evento com o Papa, ele esteve lá e falou sobre questões norteadoras para uma nova economia. Então, foi um encontro muito rico, acho que nem dá tempo de falar de tudo que aconteceu. E foi muito bonito também, coisas além das palestras e das sessões, as trocas entre as pessoas que estavam participando.

DMT – Como você colocou, um grande objetivo desse evento era guiar a busca por uma alternativa ao modelo neoliberal em que vivemos – que é, em resumo, hostil à vida, né? Então, eu gostaria que você falasse do que, a partir dessas discussões, surge como elementos definidores desse modelo e das razões pelas quais ele é impraticável e uma ameaça à própria existência no planeta. Quais seriam os definidores de urgência, da gravidade desse momento que vivemos?

Cristina Vieceli – O que a gente enxerga é que existe uma crise sistêmica. Dentre as diferentes vilas temáticas, todas elas apontam para essa crise. Existe uma crise financeira, a partir da atuação de bolhas especulativas e do descontrole financeiro que está ocorrendo no mundo desde a crise de 2008. O sistema capitalista está se reproduzindo sem ter concretude. E, se essas bolhas especulativas estourarem, isso terá uma repercussão maior sobre a população mais pobre. Além disso, a crise é ambiental. Essas diversas crises estão interligadas, e se falou muito no evento sobre a questão ambiental. Estiveram presentes representantes dos povos indígenas de diferentes países da América Latina, e eles tiveram um papel importante para indicar essa preocupação com a casa comum, o cuidado com os bens comuns, ou seja, a terra, a água.

Isso serve para a gente pensar que o sistema capitalista neoliberal não oferece formas de assegurar a preservação do planeta, que ele vê os recursos do planeta de forma predatória, a fim de gerar lucro. A manutenção desse sistema não é capaz de sustentar tanto a reprodução da vida humana, quanto a própria reprodução do planeta e de sua biodiversidade. A crise climática, esse cenário que todo mundo está enxergando de mudanças e intempéries que vão acontecer no mundo, tudo isso tem uma repercussão maior sobre as pessoas mais pobres, em especial as que vivem em países em desenvolvimento, que não oferecem condições de vida adequadas a essas pessoas. Elas vão ter a repercussão mais negativa, apesar desses países terem uma contribuição pequena na emissão de gases poluentes, por exemplo. Então, é preciso pensar em economia que promova a transição para uma energia mais limpa, para um cuidado maior com o meio ambiente.

E eu destaco ainda a questão da crise dos cuidados, que é algo que eu venho trabalhando também, e que está relacionado justamente com o fato de que o sistema inviabiliza que as famílias cuidem das pessoas idosas, cuidem de suas crianças, das pessoas doentes, ao mesmo tempo que também reduz o tamanho do Estado e dos serviços públicos necessários para que essas famílias tenham acesso à socialização dos cuidados. (Algo que se relaciona com) essa tendência de redução salarial, aumento da jornada ou imposição de uma jornada de trabalho irregular, ou seja, uma precarização geral do mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que se verifica a redução das políticas públicas e dos serviços do Estado. Essa crise vai gerar migrações, principalmente de mulheres, para prestarem serviços de cuidados em regiões mais ricas do mundo. São crises que estão interligadas, inter-relacionadas, e que foram discutidas nesses dias do evento, e também anteriormente.

DMT – Em oposição a esses elementos que fazem com que o atual modelo seja completamente sustentável, que o rumo trágico dele seja bastante óbvio, por mais que haja um esforço de negação em torno disso… O que se pode dizer que surge como indicativos de um outro rumo, a partir das discussões que aconteceram em Assis? O que a gente pode falar a respeito do caminho alternativo que se pode seguir, e que tipo de setas apontam nessa direção?

Cristina Vieceli – Acho que existem diversas alternativas. Uma das questões que foi discutida no encontro se refere a uma renovação de valores, entende? Temos que repensar os nossos atuais valores, que são individualistas, baseados em uma meritocracia que, de fato, não existe, porque não há como falar em meritocracia em um planeta destruído, em um mundo tão desigual e uma sociedade tão desigual. Então, é um evento que não se detém somente em questões práticas, mas que também envolve questões valorativas.

Em relação a essas questões mais práticas, existem diversas alternativas para encontrar uma economia que seja voltada à vida humana. Primeiro nas políticas públicas, na forma como o Estado pode atuar para a consolidação e ampliação de serviços sociais. E não somente o Estado, como também as comunidades. Existem diversos exemplos de empreendimentos realizados por pessoas que se uniram em comunidades, em segmentos como produção agroecológica, de produtos mais sustentáveis e que podem ter rentabilidade a partir de um impacto ambiental menor do que a economia que a gente enxerga.

Na verdade, você tem que fazer uma mudança no principal objetivo da economia, não é? O principal objetivo da economia não pode ser aumentar o lucro sem pensar nas consequências, mas sim buscar formas de trazer melhorias para a vida das pessoas. Não podemos apenas aumentar a produção de bens que vão virar lixo, que vão encher o oceano de plástico. É insustentável. O tempo, né? O que a gente tá enxergando. Sim. Então, é nossa missão pensar uma economia que de fato produza visando ao bem-estar das pessoas e à preservação da vida, se utilizando das tecnologias e do conhecimento que nós temos agregado. E aí a gente volta à questão dos valores, que têm que ser revistos e renovados. Não dá para alcançar sustentabilidade a partir de valores antidemocráticos ou que não sejam solidários.

DMT – É interessante mencionarmos isso, porque é uma união de forças que é, muitas vezes, escamoteada das discussões: o fato de que essa visão mais agressiva e predatória de liberalismo se conecta diretamente com o autoritarismo político, com uma guinada na direção de regimes autoritários, de natureza reacionária. Me parece que isso fala também dessa questão dos valores que você menciona. Como construir essa transformação? Porque é um processo que certamente é longo, é complexo, mas que precisa sair de algum lugar.

Cristina Vieceli – Com certeza. Acho que você falou muito bem. O neoliberalismo tem se conectado muito com essa política do medo, não é? Esse uso político do medo do que seria o mal comum: os migrantes, a esquerda, a população LGBT. (O discurso de que) essas pessoas são as causadoras da crise econômica, e não o próprio sistema. Isso é muito grave, ainda mais considerando que é acompanhado de uma redução da democracia, uma redução da solidariedade – e no momento em que a gente tem essa crise no mercado de trabalho, a gente acaba vendo também uma redução da solidariedade de classe, é mais difícil para os trabalhadores se unirem em torno de sindicatos etc. E é a partir disso tudo que esses sentimentos, esses valores individualistas vão crescendo e, junto a eles, essa questão da falta de democracia, do autoritarismo como você falou. Então é necessário que exista uma reconstrução de uma ética política, que agregue todas as pessoas e que de fato se enxergue que a origem dos problemas não está nas minorias políticas, e sim na forma como o sistema vem produzindo e se reproduzindo.

DMT – E aí há uma questão que talvez seja até mais profunda, que tem a ver com a recuperação da esperança. Afinal, há a disseminação de um pensamento de fatalidade em torno do mundo – de que não dá pra mudar o rumo, os desafios são grandes demais, não temos como salvar o mundo. O que acaba criando um sentimento de alienação em relação às coisas que acontecem. A partir das discussões de que você participou, qual pode ser a chave para a recuperação dessa esperança, do sentimento de que é, sim, possível construir um mundo melhor?

Cristina Vieceli – Eu acho que, na verdade, as forças progressistas sempre foram mais frágeis dentro do sistema, nunca tivemos a força do capital (ao nosso lado). No entanto, mesmo assim, sempre houve um processo de luta ao longo da história, e se conseguiu muitas conquistas importantes que têm que ser valorizadas. Agora mesmo, por exemplo, tivemos uma eleição em que foram eleitas várias mulheres negras, elegemos a primeira congressista indígena. Então, claro que as mudanças vão ser graduais, paulatinas, mas a gente consegue fazer, é possível ver que conseguimos muitos avanços importantes e que é necessário que a gente sempre esteja lutando. Porque a esperança é importante, mas é necessária a ação também, não é? O esperançar.

Não é à toa que a direita conservadora cresceu tanto, mas que também houve um processo de crescimento da das forças progressivas. O próprio evento Economia de Francisco é um indicativo disso. Infelizmente acabou sendo pouco divulgado (pela imprensa tradicional), e isso também é uma questão, porque a maior parte da imprensa e das formas de divulgação não são de esquerda. Mas, ao mesmo tempo, a gente consegue enxergar que existem alternativas, como o próprio DMT, que a gente vai construindo. Então, é claro que existe um trabalho enorme a ser feito, mas é importante entender que não estamos sozinhos.

DMT – Já se pode falar em desdobramentos do encontro em Assis? Já existe uma linha de ação para as próximas iniciativas, encaminhamentos etc?

Cristina Vieceli – Bem, cada vila temática delimitou ações norteadoras para atuação em cada país. A previsão é de que daqui a dois anos haja um novo encontro, e (a partir da ação dos próximos dois anos) teremos mais encaminhamentos. Mas acho que a ideia principal aqui é você conseguir formar agentes de mudança. Participaram do evento pessoas bastante diversas, pesquisadoras, pessoas ligadas a movimentos sociais. Então, um dos objetivos era capacitar essas pessoas para que consigam, em seus países de origem, levantar ideias e construir a mudança.

DMT – Antes de encerrarmos, eu queria uma observação sua a respeito do processo eleitoral que vivenciamos no Brasil. Porque houve uma série de discursos, em especial do candidato à reeleição presidencial, sobre iniciativas que teriam sido tomadas para favorecer as mulheres no mercado de trabalho, falou-se em 13º salário de benefício social para mulheres, enfim, que uma série de políticas teriam sido criadas nesses últimos anos. Sendo você uma pessoa que trabalha muito fortemente com esses temas, pergunto: o quanto que se pode falar efetivamente que existem, ou que tenham existido, políticas econômicas e de trabalho para mulheres?

Cristina Vieceli – O que se observa é que todas essas políticas feitas ao longo da pandemia – como, por exemplo, um auxílio emergencial maior para as mulheres solo, mães sem companheiro ou companheira – foram realizadas também por uma pressão no Congresso. A princípio, o governo não queria dar auxílio, depois falou em dar R$ 200,00, e quando viu que a popularidade dele estava à prova, anunciou que iria conceder R$ 600,00. E agora, no final do ano, realmente trouxe esse grande pacote de auxílios. E R$ 600,00 é realmente um valor muito expressivo, juntamente com o crédito consignado das famílias e o décimo terceiro para mulheres, tudo isso gerando uma propaganda de acesso a renda.

O que a gente tem que pensar é que, primeiro, esses auxílios são descontinuados, e nunca foram continuados ao longo do tempo. Eles são importantes, sim, principalmente em momentos de crise, e é interessante que exista essa visão de que, de fato, as mulheres estão numa posição de maior vulnerabilidade na sociedade, tanto que aumentou o número de mulheres vulneráveis à fome durante a pandemia, enquanto o de homens se manteve (estável). No entanto, não só essas políticas são descontinuadas, como vêm em um cenário de redução dos serviços públicos, dos serviços de educação e de cuidados. E também de aumento da inflação, do preço dos alimentos, e da precarização do mercado de trabalho. Boa parte dos empregos gerados durante esse período foram empregos informais, sem carteira. Então, se faz uma propaganda de que o Auxílio Brasil vai criar oportunidade para empreendedores, mas a gente sabe que boa parte dos empreendedores não são nem formalizados. Então, o auxílio é importante, principalmente para as famílias que estão passando fome, quem tem fome tem pressa, mas é necessário que sejam realizadas políticas de inserção dessa população no mercado de trabalho formal, que seja assegurado que essas mulheres tenham acesso a licença maternidade e previdência.

Na verdade, essas políticas parecem surgir também a partir de um desconhecimento real dos mecanismos que atingem as mulheres nesse cenário pós-pandemia, que, na verdade exacerbou problemas que já existiam. Parece que são medidas tomadas em nome de necessidades políticas de momento, sem compreender realmente quais são as necessidades efetivas da mulher dentro do mercado de trabalho. E eu acredito que, na verdade, isso faz parte de um projeto político neoliberal do governo, que está relacionado à redução do estado. Então você até pode fazer políticas de auxílio à população mais pobre, principalmente em período eleitoral, mas é um auxílio descontinuado, essa população vai ficar sempre à mercê de auxílio do governo. E aí você insere essa população também no mercado financeiro, via crédito consignado, com taxa de juros acima da inflação. E essa população se endivida. A propaganda do governo é de que essas pessoas vão ser empreendedoras, mas olha, é muito difícil você ser empreendedor no Brasil. A tendência, dentro de um cenário em que o governo não tem nenhum projeto político, é que essas pessoas se endividem e gerem mais lucro para o sistema financeiro. É um projeto que não tem ensejo nenhum de mudar de fato a realidade profunda dessas pessoas.

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