
Glaucia Campregher
Caros leitores, hoje não tratarei de nenhum trabalho social (ao menos não diretamente). Não tratarei do trabalho coletivo que gera coisas, riquezas. Não terei por objeto nenhum filme que mostre a exploração do trabalho de muitos humanos por uns poucos, pouco humanos. Hoje tratarei do trabalho que fazemos, em grande parte sozinhos, sobre nós mesmos. Um trabalho que – se o fizermos bem feito – não produz algo mas alguém, a nós mesmos, como seres únicos e conscientes. Não irei mirar a exploração coletiva mas a alienação individual, a prisão que podemos nos colocar a nós mesmos por falta de coragem. Mesmo que o medo possa ser bem justificado, mesmo que um pouco de medo possa ser mesmo sábio, o medo que imobiliza a vida é dela inimigo. Precisamos enfrentá-lo. Sendo assim, os convido a encararem comigo “O segredo dos seus olhos”, filme visto talvez por muitos aqui, mas que merece ser revisto por estes e visto uma ou mais vezes por quem nunca o viu. Ver é mais que olhar, e olhar ainda é pouco quando não ousamos encarar o que vemos, e que, por vezes, pode ser a própria felicidade.
“O segredo de seus olhos” do argentino Juan José Campanella, com o nosso arqui amigo Ricardo Darín, é um filme, ao meu ver, principalmente sobre coragem. Bem, nem imagino que alguém possa discordar, uma vez que na primeira ou segunda cena o personagem de Darín acorda no meio da noite e escreve num pedaço de papel – “temo”. Quem é esse homem que “teme”, e do que ele tem medo? O personagem Benjamin Esposito, é um funcionário público, do judiciário, que trabalha no gabinete de um juiz e sob as ordens diretas de uma mulher (muito qualificada, bonita, e, saberemos, corajosa). Trata-se de um personagem não simplesmente covarde, medroso ou frágil, sequer é alguém que prefere não bater de frente, que opta sempre pela acomodação. O roteiro, aliás, o coloca mais de uma vez a desobedecer leis, regras, hierarquias e, por vezes, o bom senso. Ele irá encarar mesmo um criminoso (e protegido, pois utilizado, pelo regime autoritário de então). Mas o que ele não encara, mesmo quando cara a cara, são os olhos dela (sua chefe), isso porque ele não opera, não toma uma atitude, que mostre que entendeu o que estes olhos estão a lhe dizer. Só na cena final (quando se passarem 25 anos desde que ele a conheceu!) é que ele irá se declarar verbalmente, dando voz ao que o olhar já dizia.
É mesmo genial como o filme parece comédia quando brinca explicitamente com o olhar e o dizer. A investigação do nosso herói sobre si começa com sua aposentadoria, quando cisma de escrever (dizer coisas ao papel, no papel de escutador indefinido) que relembra uma outra investigação, um crime ocorrido. Logo no início a cena do bilhete escrito para si mesmo. Mas o recado do inconsciente era só esse mesmo, está tudo dito no “temo”, ou falta algo? O quê? E a investigação do estupro e morte de uma garota, o que faz desse caso tão especial? Ah, há um olhar… Que nosso investigador acha um dia numa foto, em que ele vê algo criminoso. A partir desses dizeres e olhares centrais, outros tantos são dados ou evitados por todo o filme. O casal central se olhando apaixonadamente, ainda que ele distraidamente e ela focada numa esperança – que se acende todas as vezes quando ele pede para lhe dizer algo em sua sala. Chega a ser jocoso ela perguntando nestas vezes (talvez uma meia dúzia de cenas) se deve deixar a porta aberta (assunto público) ou fechada (assunto privado), e se decidindo por deixá-la aberta, dada a covardia do rapaz. Outro confronto entre olhar e dizer, nada cômico desta vez, é quando ele e ela tentam fazer o criminoso falar, depois que ela se convenceu da culpa deste só pelo jeito dele olhar para ela (um olhar doentiamente cobiçoso e assustador que muitas mulheres já tiveram o desprazer, ou mesmo o perigo, de encarar). Nesta cena o roteiro destaca a coragem dela ao encenar uma bem pensada provocação à masculinidade do criminoso que o leva a se delatar. E por que ela não usou esse tipo de ardil com ele? Porque as mulheres que sabem de si, sabem que ao amado não se arma armadilhas, se ama na esperança de que um dia ele tenha coragem de sair sozinho daquela que se auto impôs..
Mas não é a coragem feminina o tema central do filme e sim as várias formas de coragens e covardias masculinas. O rapaz que perdeu a esposa não apenas teve coragem de chegar nela quando a conheceu como tem coragem de implementar sozinho a pena a seu assassino (cujo castigo maior é não ter ninguém para quem dizer nada…). O assassino que se delatou ao mostrar não ter medo de expor seu órgão sexual e seu desejo destruidor, e não tem medo também das consequências de matar alguém, teme contudo a recusa sexual e amorosa, a ponto de preferir o estupro e o assassinato. Nosso herói que não temeu chamar pra briga um capanga dos militares no poder, que enfrentou o patrão e pareceu não temer a perda do emprego, temeu por toda a vida tentar a vida com a mulher que amava. Esse último caso é o mais chocante, pela contradição que carrega. Mas tudo se esclarece se pensarmos que o que ele temia (dado inclusive que a mulher o amava igualmente) era a liberdade. Se se declarasse, se sentiria sem amarras, e, por vezes, estas amarras são bem confortáveis, funcionando muito bem como desculpas para não tentarmos ser quem queremos e podemos ser.
Por fim, o que afeta a disposição para que finalmente nosso herói se investigue (mesmo que sob o disfarce de uma outra investigação, do crime a ser revisitado) é que ele não está mais trabalhando. O que o filme mostra algo essencial ao meu ver, que frequentemente, o trabalho, e as dificuldades materiais em geral, funcionam perfeitamente bem como amarras para nossa liberdade, sempre ali a justificar nossos medos. E é assim primeiro porque elas nos limitam mesmo – diminuindo concretamente nossos recursos, nos impedindo de desenvolver nossos talentos e consertar nossos traumas – mas também porque nos fornecem uma boa desculpa para não expandirmos nossos limites. Acho fabulosa a declaração de nosso herói de que, uma vez aposentado, ele não pode mais “se distrair de si”. Vejam, claro que o trabalho (alienado de nossos tempos) nos cansa a energia física e mental, mas ele nos distrai justo por isso, tira nossa atenção da exploração coletiva e também da alienação individual. Se é que nosso personagem central vai ter coragem de amar na fase final de sua vida é que só então, sem algo a lhe distrair, ele finalmente se ocupou de si. Interessante ele começar a escrever, não deixa de ser também um modo de dizer algo, e a si ainda que disfarçadamente para um outro. Minha tese é de que a coragem de tentar fazer algo novo, quem sabe mesmo tateando uma nova profissão, mesmo que de início traga angústia e ansiedade (ilustrada nos mil escritos rasurados e jogados ao chão) traz consigo uma nova sensação, um gostinho de liberdade.
Marx dizia que devíamos escovar a história a contrapelo para entendermos como funciona a sociedade, como ela veio a ser o que é. Isso significa ir do presente pro passado, do sentido dominante (dos pelos que percorrem certas direções) pra sua raiz. Creio que Freud nos convida a fazer o mesmo na vida pessoal, escovar a nossa história a contrapelo. Indo pra trás e confrontando os sentidos dados pra percebermos outros sentidos possíveis. A investigação que podemos e devemos realizar sobre nossas vidas não deve visar nos penalizar com culpas mas nos responsabilizar. A culpa paraliza e se satisfaz com o flagelamento. A responsabilização exige correção de rumos, atitudes. Que todos tenhamos em algum momento da vida a oportunidade para fazer essa investigação. Mais, que todos estejamos atentos a todo momento sobre o que nos move ou demove, se o medo ou a coragem. É e será sempre triste se a maioria de nós não conseguir, mesmo quando o trabalho e o emprego obrigados cessarem suas funções diversionistas, encarar os segredos dos nossos próprios olhos.
Glaucia Campregher é professora aposentada de economia, ex-professora da UFU, UFRGS, UFBA e apaixonada por cinema.