Na primeira operação do ano em combate a regimes de trabalho análogos à escravidão foram resgatados 285 trabalhadores no interior de Minas Gerais, na região da cidade de João Pinheiro. Comandada por auditores fiscais do trabalho desde o último dia 24, essa é a maior operação de resgate em território nacional nos últimos 10 anos.
“Já começamos o ano com o dobro do número de vítimas do maior resgate do ano passado. E também com o dobro do resultado da Operação Resgate, que realizamos em janeiro de 2021 e que foi a maior da história, já que aconteceu simultaneamente em 20 unidades da federação, quando foram resgatadas 136 pessoas”, explica o auditor-fiscal do trabalho Maurício Krepsky, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Fica o alerta de que algo a mais precisa ser feito”, aponta Krepsky, que é também chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae/CGFIT/SIT).
Entre as 285 pessoas encontradas em condições de trabalho degradantes, 273 estavam no serviço de corte de cana em fazendas arrendadas pela WD Agroindustrial. As iniciais da empresa são as do patriarca Walter Detoni que a fundou em 1996, décadas depois que havia se mudado de Jardinópolis, no interior paulista, para Uberaba (MG).
Contemplado com o título de “Cidadão Uberabense” pela sua “atuação empresarial”, de acordo com jornal local que noticiou sua morte aos 83 anos em 2013, Walter Deltoni criou o que seria uma gigante da agroindústria.
Tendo a fabricação de álcool, açúcar e a geração de energia por meio de uma usina termoelétrica como atividades econômicas principais, a empresa também cultiva cana de açúcar, milho e soja, além de criar gado.
O Grupo Detoni administra a WD Agroindustrial e tem, entre seus 11 sócios, oito que carregam o sobrenome. Marcelo Pedro, Domingos Afonso, André, Walter, Paulo Tadeu, Jorge Carlos, José Roberto e Walter Júnior. O capital social da empresa é de cerca de R$ 28 milhões.
Sol, agrotóxicos e covid-19
Na usina de cana de açúcar de onde sai a matéria-prima para a geração desse capital foram encontradas 26 infrações trabalhistas pelo operativo composto por representantes da Auditoria Fiscal do Trabalho, Polícia Federal Rodoviária (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério Público do Trabalho (MPT).
Segundo o MPT, sem lugar para comer, as refeições diárias dos trabalhadores tinham de ser consumidas apoiadas em suas mãos ou pernas. E sempre embaixo de um sol intenso, já que foi detectado que sombra no local é tão inexistente quanto equipamentos de proteção individual ou instalações sanitárias. Ao lado de onde era feito o serviço de plantio e corte de cana, agrotóxicos eram mantidos ao ar livre.
Os alojamentos dos trabalhadores, distribuídos em dois municípios do entorno – Luizlândia do Oeste e Varjão de Minas –, também foram inspecionados. Sem móveis além de camas, os lugares destinados a ser moradia dos trabalhadores estavam superlotados, sem fornecimento adequado de água e com banheiros precários.
De acordo com a apuração dos auditores fiscais do trabalho, um dos alojamentos era apelidado pelos trabalhadores de “Carandiru” – fazendo referência à Casa de Detenção que sediou o conhecido massacre de 1992. Quinze dos trabalhadores foram diagnosticados com covid-19.
O Brasil de Fato fez contatos via telefone e e-mail com a WD Agroindustrial, mas não teve resposta até o fechamento da matéria. Caso a empresa mande um posicionamento, o texto será atualizado.
Produção de tijolos sem proteção
Além da usina, a inspeção em uma olaria encontrou 12 pessoas trabalhando na produção de tijolos, também em condições análogas à escravidão.
As polias de transmissão de força das máquinas não tinham proteção contra contato acidental, e a maromba deixava aberto o acesso para a área de prensagem. De acordo com o MPT, os trabalhadores relataram que um colega que já não estava mais na empresa chegou a ter o dedo amputado.
Os auditores fiscais do trabalho encontraram fios de energia elétrica expostos e em contato com água vazando da caixa d’água. Esta, aliás, estava parcialmente destampada e, segundo o que os trabalhadores contaram na inspeção, dentro dela chegaram a encontrar, em uma ocasião, um gavião morto.
Escravidão contemporânea
As 273 pessoas resgatados na usina de cana receberam verbas rescisórias e por danos morais em um valor que soma cerca de R$ 6 milhões. Além disso, cada uma receberá três parcelas de seguro desemprego no valor de um salário mínimo, atualmente em R$ 1212. Os trabalhadores com coronavírus se recuperam em isolamento num hotel.
A partir dos autos de infração lavrados pela Auditoria Fiscal do Trabalho, o MPT firmou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com os empregadores, com o comprometimento, por parte deles, do pagamento por danos morais individuais e coletivo e da garantia de condições adequadas de trabalho em futuras contratações.
Verbas salariais, rescisórias e por danos morais também foram pagas pelos empregadores da olaria. Atendendo ao que foi estipulado pelo MPT, foram pagos aos trabalhadores um total de R$75.780,19.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência, só no ano de 2021 foram resgatadas 1.937 pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão no Brasil. Destas, 80,39% se autodeclaram negras (62,37% pardas e 18,02% pretas).
Entre 2020 e 2021 houve um salto de 106,9% no número de pessoas encontradas nessas condições. Em 2021 aconteceu, de acordo com Krepsky, o maior número de ações de fiscalização desde que o combate ao trabalho escravo foi implementado como política pública em 1995.
Só no primeiro mês de 2022 foram resgatadas cerca de 15% do total de pessoas encontradas em trabalhos análogos à escravidão no país no ano passado.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Gabriela Moncau
Data original da publicação: 02/02/2022