Quais as consequências da reforma Trabalhista para a classe trabalhadora? Essa foi a questão principal posta ao sociólogo Clemente Ganz Lúcio, atualmente diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Em uma conversa de cerca de 40 minutos na última semana, ele destacou que a legislação proposta pelo governo Temer altera drasticamente as relações de trabalho no Brasil, trazendo um efeito muito mais perverso e duradouro do que aqueles da sua irmã mais notória, a reforma da Previdência. Para ele, a permissão de que empresas contratem trabalhadores com contratos intermitentes, sem jornada definida, precariza de forma profunda a situação dos trabalhadores e, em vez de facilitar a geração de empregos, irá apenas tornar legal o que hoje é proibido.
De outro lado, no entanto, ele pondera que o arcabouço de reformas e projetos introduzidos pelo governo tem por objetivo produzir uma desnacionalização da economia brasileira e subordiná-la aos interesses do capital estrangeiro. O que significa isso? Clemente explica que a aposta que está sendo feita é de facilitação para que empresas multinacionais venham produzir no Brasil e o país se desenvolva com o fruto das exportações dessa produção.
“Fazer daqui uma base para que o capital internacional produza aqui e remeta para os seus países é fazer da nossa base econômica uma base de exploração e não de desenvolvimento. Essa é uma escolha. Qual a consequência? É que nós seremos um país cada vez mais rico, de pessoas pobres, porque as nossas riquezas serão exportadas para dar qualidade de vida para os europeus, americanos, seja lá quem vier produzir aqui”, diz.
Confira a seguir íntegra da entrevista:
Sul21 – Qual reforma afetará mais os trabalhadores: Previdência ou Trabalhista?
Clemente Ganz Lúcio: O efeito da reforma Trabalhista é muito mais profundo e duradouro do que o da reforma da Previdência. Primeiro, porque a reforma da Previdência, do ponto de vista dos seus critérios, pode ser alterada em qualquer um dos seus parâmetros a qualquer momento. Segundo, o efeito dela é mais rápido e direto. Ou seja, alterado o seu critério, para melhor ou para pior, tem um efeito mais pontual, apesar desse efeito muitas vezes afetar todos os trabalhadores, como no caso da idade mínima. Entretanto, a reforma Trabalhista é a mais profunda reforma já feita no sistema de relações de trabalho brasileiro desde que ele foi criado, na década de 1940. É uma reforma que afeta a organização sindical, afeta o processo de negociação coletiva e afeta a estruturação da Justiça do trabalho, seu papel, a forma como se organiza e a maneira como os trabalhadores podem acessá-la.
É uma reforma que, ao alterar todo o sistema de relações do trabalho, cria uma situação permanente no qual os direitos materializados nas formas de contrato de trabalho, na definição do salário e na definição das condições de trabalho podem ser alterados, tanto na relação do indivíduo com a empresa, quanto do poder do sindicato negociar a redução desses direitos. E limita severamente a capacidade dos trabalhadores e da própria Justiça do trabalho atuar em relação a esses direitos. O efeito dela é sobre todos os trabalhadores para toda a vida laboral. Portanto, muito mais profundo do que a própria Previdência. Mais perverso ainda é que, materializada do que jeito que ela está posta, provavelmente criará um ambiente de maior dificuldade para os trabalhadores preencherem os critérios para aposentadoria e, ao mesmo tempo, fragilizando o salário e as condições de trabalho, fragiliza as condições dos trabalhadores financiarem sua própria previdência.
Sul21 – Na sua avaliação, quais pontos da reforma Trabalhista afetarão mais os trabalhadores?
Clemente: Em primeiro lugar, a reforma pressupõe que uma virtude do mercado de trabalho é gerar uma série de postos de trabalho com tempo parcial, jornada parcial ou contrato temporário. A ideia é de flexibilidade, materializada por exemplo em um contrato de meia jornada, em um contrato por dois meses, por duas semanas, ou numa jornada totalmente flexível, com o chamado contrato intermitente ou zero hora. Ou seja, um trabalhador poderá ser contratado por várias empresas e não trabalhar nenhuma hora durante aquele mês ou, se trabalhar para a empresa ‘A’ por duas horas, receberá duas horas de salário somente. O fato de ter um contrato intermitente com uma empresa não lhe garante nenhuma remuneração e nenhuma jornada na semana ou no mês. Ele só receberá aquilo que efetivamente trabalhar. Poderá ter uma jornada parcial, portanto trabalhar sábado e domingo, ou trabalhar sábado e domingo, ou trabalhar quatro horas por dia, ou trabalhar por 90 dias, 30 dias, não importa. Formas extremamente flexíveis de contrato passam a ser a prioridade na legislação e todas elas passam a ser formas legais de contrato de trabalho. Ou seja, as empresas adquirem a capacidade da máxima flexibilização no contrato de trabalho e o trabalhador não disporá mais, predominantemente, daquele contrato de jornada de trabalho de oito horas, com salário determinado. Isso implicará em mais de um contrato de trabalho, muitas vezes aumentando o tempo dedicado ao trabalho e ao esforço para financiar o orçamento familiar. Tende a aumentar a jornada global de trabalho, por ter várias ocupações, tende a ter uma pressão maior sobre o mercado de trabalho, porque as pessoas procurarão de forma mais intensa um posto de trabalho para complementar a renda. Tudo isso criando um ambiente de insegurança, de um sobre esforço, provavelmente doenças ocupacionais, o estresse no trabalho, fruto da insegurança do orçamento, poderão aparecer.
De outro lado, os sindicatos poderão, por pressão das empresas, fechar acordos que reduzam salários e condições de trabalho, flexibilizem jornadas, flexibilizem contratos. Além disso, a Justiça do Trabalho terá uma série de requisitos que impedem que o trabalhador o acesse. O acesso à Justiça sempre foi gratuito no Brasil. A partir dessa nova legislação, o trabalhador deverá pagar. A Justiça do Trabalho terá severas restrições para julgar os pedidos dos trabalhadores. Os trabalhadores que entrarem na Justiça deverão ter provas contra a empresa, quando na verdade quem tem as provas é a própria empresa. O cartão-ponto, todos aqueles registros que a empresa detém, agora os trabalhadores deverão ter para poder apresentar contra a empresa. Caso o trabalhador não apresente as provas, ele ainda deverá custear os gastos da ação trabalhista. Ou seja, há uma série de iniciativas que visam impedir ou coibir que o trabalhador acesse a Justiça do Trabalho.
Tanto o trabalhador, quanto o sindicato, quanto a Justiça, são estruturalmente fragilizados, visando criar um ambiente favorável a que as empresas possam, com segurança e com amparo da lei, reduzir o custo do trabalho e reduzir os passivos trabalhistas que hoje elas acumulam por terem práticas ilegais, por não atenderem os direitos definidos na lei ou nas convenções coletivas. A legislação cria um ambiente para que as empresas não se preocupem mais com esses elementos.
Sul21 – Tem alguma possibilidade dessa reforma gerar mais empregos?
Clemente: Tem uma confusão nesse debate, às vezes proposital. No Brasil, a gente tem um mercado de trabalho que se organiza com postos de trabalho ditos formais, que são empregos legalizados do ponto de vista do setor privado – o chamado trabalhador com carteira de trabalho assinada – e os servidores públicos concursados. Todos eles têm uma relação protegida pela legislação. Mas tem outra parte, quase metade da força de trabalho brasileira no setor privado, que vive na chamada informalidade. São empregos precários. É o trabalhador autônomo, por conta própria, sem o registro em carteira de trabalho assinada. Isso ocorre porque essas pessoas têm formas de inserção no mercado de trabalho que não estão amparadas na lei. Ou seja, há uma desproteção porque o empregador não realiza o que a lei exige como requisito mínimo. O que a legislação faz é ampliar a possibilidade de contratação que hoje é ilegal para poder ser legal. Ao fazer isso, provavelmente o que vai acontecer é que uma série de trabalhadores que hoje não são contados nas pesquisas como assalariados passarão a assinar a carteira. ‘Qual é a tua jornada?’ ‘Duas horas’. Bom, ele é legal, passa a ser formalizado. Portanto, este posto de trabalho passa a ser contado como emprego formal. Só que esse emprego já existe. Provavelmente, nas estatísticas oficiais, isso será contabilizado como uma virtude, novos postos de trabalho. Não é. Na verdade, é o mesmo posto de trabalho que passou a ser contado na caixinha do emprego formal.
Outra coisa é a economia gerar mais postos de trabalho. Se nós somarmos hoje o volume de postos de trabalho que a economia brasileira gera, vamos trabalhar com 90 milhões de pessoas ocupadas, tem outras 14 milhões desempregadas, somos 104 milhões de pessoas hoje no mercado de trabalho. Aumentar o número de empregos é dizer que, no mês seguinte, teremos 91, 92, 93, 94 milhões de postos de trabalho e 13, 12, 11, 10 milhões de desempregados. Esse aumento pode ser porque as empresas que têm capacidade produtiva instalada passem a usar essa capacidade. Por exemplo, uma empresa que tem 100 postos de trabalho pode estar trabalhando hoje com 50 pessoas, metade da sua capacidade. Se a economia gera demanda, ela vai contratar mais 10 trabalhadores, mais 20, mais 30, ampliando a sua capacidade até preencher os 100 postos de trabalho. Isso aumenta o volume de emprego na economia. Mas o que é tão importante quanto é que essa empresa não só amplie para 100, mas que amplie para 120, 130. Essa legislação não se propõe a fazer isso. Gerar novos postos de trabalho depende de crescimento econômico, depende de uma dinâmica econômica que esteja voltada para dar condições para a nossa atividade econômica ter uma boa performance. Isso está fortemente vinculado ao nosso mercado interno, a capacidade que as nossas famílias tenham de comprar, que o governo tenha de gastar e que as empresas tenham em investir. Se as três frentes estão fragilizadas, como hoje estão no Brasil, nós dependemos do mercado externo, ou seja, de exportar a nossa produção. Só que no mundo todo os países procuram vender os seus produtos e não exportar, portanto nem o setor externo, nem o mercado interno estão hoje dando tração para a nossa economia. Estudos da própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que com reformas trabalhistas como essa que o Brasil faz hoje, feitas em uma situação de crise econômica, a tendência delas é ampliar o desemprego, porque vários trabalhadores que hoje estão ocupados com jornada de trabalho integral passarão a ser estimulados pelas empresas, na verdade pressionados e demitidos, a futuramente terem um emprego precário. Então, num primeiro momento, parte do mercado formal é desmoralizado, demitido, para depois ser readmitido de forma mais flexível. O efeito de uma medida como essa, no curto prazo, é inclusive aumentar o desemprego do ponto de vista estatístico.
Sul21 – Quais questões da CLT poderiam ser negociadas hoje? A retomada do crescimento passaria por alguma mudança na legislação?
Clemente: Veja, o fundamental do ponto de vista do emprego é o crescimento econômico. É evidente que uma legislação trabalhista que se moderniza, que cria um ambiente mais favorável para as empresas na gestão das relações de trabalho, que cria um ambiente mais favorável e de fortalecimento da própria negociação, tudo isso cria um ambiente institucional que pode favorecer a dinâmica econômica. O nosso crescimento pode e deveria vir acompanhado de uma modernização nas relações de trabalho, que passa pelo fortalecimento dos sindicatos, que passa pela capacidade de organização dos sindicatos no local de trabalho, dando a essas organizações maior flexibilidade para adequações às condições de trabalho de cada empresa, portanto diminuindo o seu custo de gestão e facilitando que as relações de trabalho sejam operacionalizadas nas condições em que a empresa opera, o que é diferente na agricultura, no comércio, no serviço ou na indústria. A proteção pode ganhar formas diferente porque são diferentes as condições de trabalho. Tudo isso faz parte de uma modernização. Não para retirar direitos, mas para criar uma ambiente mais favorável de proteção aos trabalhadores e de condições das empresas se operacionalizarem. Não é isso que garante o crescimento, mas contribui. Uma modernização sempre é desejável do ponto de vista do papel do sindicato, do papel da negociação coletiva, do próprio aperfeiçoamento da Justiça do trabalho, mas não é isso que a legislação faz. Noventa por cento desse projeto que está hoje no Congresso Nacional tem por objetivo a retirada de direitos. Então, um projeto que cria uma ambiente desfavorável para os trabalhadores, creio eu que deverá criar um ambiente mais adverso, ampliará os conflitos de trabalho, provavelmente terá uma incidência ruim na produtividade, os trabalhadores deverão criar situações de desconforto e contrariedade, o que na verdade vai contra aquilo que as empresa buscam, que são relações de trabalho mais pacificadas para que o processo de produção ocorra com o menor volume de conflitos possível. Talvez a legislação atue de forma contrária ao próprio crescimento econômico.
Sul21 – Se passar, há perspectiva de que essa reforma possa ser revertida em algum momento?
Clemente: Primeiro, o projeto é muito amplo. São mais de 300 mudanças. Reverter um projeto com essa amplitude significa ter um Congresso Nacional futuro em condições mais uma vez de fazer uma alteração profunda na legislação trabalhista. A experiência histórica mostra que, considerada a forma como o sistema político funciona, com forte financiamento empresarial, com forte vínculo dos parlamentares com interesses empresariais, reformas desse tipo são difíceis de serem revertidas. Evidente que sempre pode-se alterar pontualmente, mas são 300 itens. Se você fizer um trabalho monstruoso e alterar 100 itens, 200 ficam consolidados. Portanto, é uma mudança que, uma vez feita, deverá colocar o sistema de relações de trabalho em um novo patamar.
Agregado a isso, como pano de fundo que dificulta, é que nós estamos fazendo isso numa situação de elevado e crescente do desemprego. O ambiente é desfavorável, as pessoas precisam urgentemente de postos de trabalho. O argumento usado pelo lado de lá é que essa flexibilidade é necessária para que as pessoas tenham qualquer tipo de ocupação, porque elas precisam de alguma coisa, e o curto prazo deve pressionar para que medidas como essa sejam entendidas como solução pros problemas que temos. O ambiente então não favorece. Sua alteração exigirá uma capacidade política e econômica que, no curto prazo a sociedade brasileira não tem.
Sul21 – Momentos de crise facilitam reformas tão drásticas em um espaço de tempo tão curto ?
Clemente: Há uma série de iniciativas do governo e do próprio Congresso que alteram profundamente as nossas instituições. Talvez nunca o País tenha vivido de forma tão intensa uma destruição e reorganização das nossas instituições. Nós temos observado que esse conjunto de mudanças extremamente profundas se realizam na oportunidade de termos um governo que não tem legitimidade da urna.
Sul21 – Não é uma contrassenso uma agenda de tal monta ser colocada nesse momento?
Clemente: É um contrassenso quando você imagina que coisas como essas devem ser realizadas num processo democrático. Quando as pessoas que fazem isso não acreditam nisso, na verdade, a situação colocada com a deposição da presidenta Dilma e um governo de transição sem mandato confirmado por um processo eleitoral, significa que esse governo não tem compromisso com nenhuma agenda. O compromisso desse governo é com essa agenda. Essa agenda da forma como está posta não seria legitimada e aprovada em nenhum processo eleitoral. Dificilmente, a menos que uma sociedade tivesse um processo de debate no qual ela vota contra ela mesma, porque esse conjunto de medidas que desnacionaliza a economia, que retira direitos, que precariza, apresentado por um candidato que diga ‘eu vou fazer isso’, contra a sociedade, não imagino que a sociedade vote num candidato como esse. Então, a oportunidade desse governo, é uma oportunidade única. Ou se imagina que o processo democrático seja interrompido para o futuro, que tenham novas oportunidades, ou se aposta, como nesse governo, que a oportunidade é essa. Como os candidatos futuros serão outros, ele entrega o serviço feito.
É muito provável, espero eu, que um próximo processo eleitoral legitime profundas revisões em tudo que está sendo aprovado, porque essas mudanças desqualificam a nossa estratégia de desenvolvimento ou criam uma estratégia que me parece não ser a melhor para o Brasil.
Sul21 – Qual a consequências dessa estratégia que está sendo imposta?
Clemente: A consequência é que nós temos, simultaneamente, uma desnacionalização da nossa base produtiva, uma subordinação da nossa capacidade econômica ao interesse internacional e perda de soberania. Estamos estruturando um novo colonialismo, voltamos a 1500; O Brasil está cada vez mais subordinado a interesses econômicos internacionais que vêm aqui fazer uma produção econômica. Qual é o problema disso? Esta forma de organizar a atividade econômica significa que, da riqueza produzida, parte dela será remetida para os países que detêm a origem do capital que aqui realiza investimentos. A segunda é que nós perdemos soberania, a possibilidade de nós firmarmos acordos com esses interesses para que uma estratégia nacional de desenvolvimento econômico própria fica fragilizada. Os países que fizerem, com tamanho e a dimensão do Brasil, o fizeram fortemente orientados por uma capacidade do estado investir e associado a acordos em que trabalhadores e o capital nacional se organizam junto com o estado para desenvolver uma base produtiva e cooperar com o mundo. Ou seja, as empresas internacionais vêm produzir no Brasil e as nossas empresas nacionais fortes vão produzir nos outros países. É essa cooperação que integra a nossa economia. Fazer daqui uma base para que o capital internacional produza aqui e remeta para os seus países é fazer da nossa base econômica uma base de exploração e não de desenvolvimento. Essa é uma escolha. Qual a consequência? É que nós seremos um país cada vez mais rico, de pessoas pobres, porque as nossas riquezas serão exportadas para dar qualidade de vida para os europeus, americanos, seja lá quem vier produzir aqui.
Nós achamos que a nossa produção deve gerar desenvolvimento para a nossa população. Essa estratégia desqualifica isso. De outro lado, as reformas, principalmente a Trabalhista, criam as condições para que as empresas que venham aqui produzir o façam nas condições trabalhistas que elas desejem. Se eu tenho uma empresa que produz na China ou na Nigéria pagando US$ 100 para um trabalhador, eu venho para cá e posso produzir pagando US$ 100 também. ‘Mas aqui o salário mínimo é três vezes maior?’ Tá bom, mas como eu tenho contrato flexível, salário flexível, eu possa contratar esse trabalhador por uma jornada menor. Tudo isso vai criando um ambiente favorável a que a produção aqui se realize nas condições que as empresas queiram produzir. Uma consequência estrutural é que nós teremos fragilizada de forma duradoura nossa capacidade de sustentar uma estratégia de desenvolvimento econômico.
Sul21 – Qual deveria ser a agenda econômica de oposição para fomentar emprego e desenvolvimento?
Clemente: Primeiro, é uma agenda que creio eu deveria ser capaz de reunir forças políticas, econômicas, os trabalhadores, a sociedade civil, setores do empresariado, que acreditam que um país se desenvolve se ele tem capacidade soberana de induzir o seu crescimento econômico. Portanto, numa sociedade capitalista, como nós somos, precisamos ter uma força de trabalho preparada para produzir, com empresários preparados a organizar essa produção e ter acordos políticos de distribuição desse resultado entre salários, lucros e impostos. Essa é a base do acordo. Vamos produzir? Vamos. Vamos produzir gerando bons salários, lucros para os empresários e impostos para financiar o Estado? O financiamento do Estado vai se dar com essa forma de tributação e com esse tipo de investimento. O lucro dos empresários, parte vai voltar para investimento. E os trabalhadores vão ter salário para consumir e esse consumo gera produção na economia. Esse é o conceito básico. Agora, isso é operacionalizado na economia de que maneira? Olhando a nossa base produtiva, as oportunidades que nós temos de produção. Nós somos um grande território, com capacidade de produção agrícola, que nos coloca como um dos principais produtores de alimentos do mundo. Devemos fazer disso uma parte do nosso desenvolvimento econômico. Podemos produzir e exportar a laranja, mas podemos exportar suco de laranja. Ao fazer da laranja suco, nós industrializamos o produto, industrializamos a empresa que faz a caixinha para embalar o suco, a empresa que faz a máquina para espremer.
Segundo, 85% da nossa população mora em cidades. Pequenas, médias e grandes. Se olharmos o que existe de investimento nesse espaço urbano para criar condições de vida decente à população, tem uma base de desenvolvimento no setor da construção e industrial fantástica para estruturar o nosso desenvolvimento econômico. Se nós observarmos a nossa riqueza mineral, a riqueza dos nossos biomas, nós temos por exemplo as maiores reservas para produção de biofármacos nas nossas florestas. Se nós observarmos o nosso litoral, nós temos talvez um dos territórios com maior possibilidade de expansão do turismo, que é um setor que cresce no mundo todo. A nossa base material real nos gera várias oportunidades de desenvolvimento econômico, de produção de atividade para quem quer aqui organizar uma empresa de comércio, de indústria. Temos universidades para desenvolver conhecimento e gerar pessoas capacitadas para fazer isso. E temos que ter um estado indutor. Um estado que ofereça condições, com crédito, com juro adequado, com apoio tecnológico, para, como outros países fizeram, animar e induzir a atividade privada a produzir. Isso é o que chama-se de desenvolvimento nacional.
‘Ah, mas as empresas multinacionais poderão produzir aqui?’ Lógico, só que nós temos que também ter uma capacidade interna para também produzir lá. Esta troca tem que ser equilibrada, se não nós teremos fragilidades econômicas. Esse equilíbrio vai ser dado pela nossa capacidade interna. Se nós formos economicamente fortes, teremos muita capacidade de importar e de exportar. E teremos muita capacidade de atender nossas demandas internas, de melhores salários, condições de trabalho, crédito, produzindo para atender esse consumo. Portanto, parte do que nós fizemos nos últimos 10 anos. Parte nós deixamos de fazer, o que levou inclusive a nossas fragilidades atuais.
Então, a estruturação de um projeto como esse requer uma visão clara do estado e da forma de financiamento – e nós temos hoje severas dificuldades para o estado ser indutor e temos que recuperar -, uma visão do papel das empresas e um acordo em que parte do lucro que elas realizam deve se voltar para novos investimentos, portanto uma organização tributária que favoreça o investimento – tribute a retirada individual, mas incentive o investimento – e condições nas relações de trabalho para que parte desse resultado seja repartido entre os trabalhadores. Isso é a base dos acordos sociais. Fazer uma repartição que diminua as desigualdades na verdade fortalece a própria economia. O gasto do empresário é o seu lucro, porque na hora que ele gasta com salário volta como lucro. E o salário do trabalhador é o gasto que virou lucro do empresário. Essa dinâmica pressupõe uma forte presença do estado coordenador desses processos, que é o que a gente não está observando no Brasil. Na verdade, a gente quer um estado melhor e não um estado mínimo. Hoje, a ideologia dominante é de um estado mínimo, ou seja, a menor presença do estado na economia para que a máxima presença do setor privado se materialize. Só que o que a experiência mostra é que, quando o setor privado predomina, o que nós temos é aumento das desigualdades, fragilização do estado, fragilização das políticas sociais e simultaneamente fragilização do mercado interno. Numa economia do tamanho da brasileira, fragilizar o nosso mercado interno, na verdade, é fragilizar um dos fatores fundamentais para dar tração a nossa economia. Fazer todas essa mudanças para esta condição significa mudar uma série de regras institucionais que estão hoje postas. O exemplo concreto: nós acabamos de aprovar no ano passado que o pré-sal não é mais algo de domínio do país. Ele poderá ser transferido para empresas internacionais e não mais a Petrobras é a proprietária e exploradora do pré-sal. Essa é uma regra importante. Se uma empresa multinacional vier no segundo semestre, como eles anunciam, e comprar um dos quatro mais importantes poços do pré-sal, significa que nós entregamos aquilo que deveria ser nosso, porque o nosso projeto era que, com a exploração desse poço de petróleo, o lucro deveria ser revertido em educação e saúde. Agora, o lucro do poço de petróleo explorado por uma empresa multinacional será distribuído entre os acionistas, que são aqueles que investiram na empresa que comprou o poço. Essa é uma distinção, o lucro vai para saúde e educação ou para o acionista? O Brasil acabou de aprovar que vá para acionista. E assim nós estamos fazendo em várias frentes. Isso altera radicalmente a nossa base de desenvolvimento econômico.
Fonte: Sul 21
Texto: Luís Eduardo Gomes
Data original da publicação: 24/06/2017