Enquanto Congresso e governo federal discutem as reformas da Previdência e trabalhista, um outro projeto de lei propõe alterações voltadas aos trabalhadores rurais. A proposta é de autoria do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), para quem as mudanças vão reduzir os custos da produção e “gerar novos postos de trabalho” no campo.
A reforma trabalhista aprovada na Câmara, em 27 de abril, não tratou especificamente do trabalhador rural. O projeto de lei número 6442, específico para a área, foi apresentado em novembro de 2016 e aguarda a formação de comissão especial, responsável para discutir a proposta antes de submetê-la à votação.
5 milhões é o número de trabalhadores assalariados rurais no país, segundo a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares.
Na justificativa do projeto, Leitão diz que a regulamentação em vigor é “arcaica” e inadequada “à realidade do campo”. Em direção contrária, parlamentares da oposição ao governo Michel Temer e entidades que representam a categoria afirmam que o projeto precariza as condições de trabalho e sujeita os trabalhadores a um “regime análogo à escravidão”. Ainda não há prazo para o projeto de lei (que conta com simpatia do governo) começar a ser discutido. Mas há alguns pontos que devem ser considerados quando o assunto envolve a legislação do trabalhador rural e este projeto especificamente.
1. Bancada ruralista é representativa
Nilson Leitão integra a chamada bancada ruralista, que reúne proprietários de terras ou profissionais do campo. Na contagem do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), eles são 126 parlamentares (109 deputados e 17 senadores) entre um total de 513 deputados e 81 senadores. “É um grupo com capacidade de organização e de negociação para trocar seus votos por projetos de interesse deles”, diz Antônio Queiroz, analista político do Diap. Leitão é o atual presidente da bancada ruralista, filiado ao PSDB, principal partido da base aliada do governo Temer. O partido apoia as propostas trabalhista e da Previdência, apresentadas pela equipe do governo federa
A despeito da força da bancada ruralista, Queiroz diz que o projeto de Leitão é amplo demais e a repercussão é tão negativa que pode afastar o apoio dos demais integrantes da bancada.
2. Projeto tem propostas radicais
O texto proposto por Leitão é extenso. São 166 artigos, que alteram desde a regulamentação da jornada até normas de fiscalização das condições de trabalho no campo. No primeiro artigo, o deputado propõe que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) não seja aplicada nas relações de trabalho rural. “Só por esse enunciado esse projeto já é uma aberração”, afirma Paulo Sérgio João, professor de direito do trabalho da FGV Direito SP. Para ele, o projeto confronta pontos assegurados pela Constituição, que também define direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. A professora de direito do trabalho da PUC-SP, Ana Amélia Camargos, diz que é razoável se discutir revisões das leis do trabalho, mas com discussões mais profundas. Ela cita como exemplo a reforma trabalhista, aprovada na Câmara, que teve pouco tempo de debate. “São transformações muito grandes para se fazer sem discussão. Isso é mais grave quando envolve o trabalhador rural, que tem menos acesso à informação e menos mecanismos de proteção”, afirma Camargos.
3. Ocorrência de trabalho escravo é comum
As confederações de trabalhadores rurais afirmam que o projeto de lei pode piorar as condições de trabalho no campo, já consideradas precárias. De acordo com a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares), 64% dos trabalhadores rurais não têm registro em carteira. Na chamada “lista suja” do trabalho escravo de 2017, divulgada pelo Ministério do Trabalho, entre os 83 empregadores flagrados por cometer irregularidades, 68 são identificados como fazendas, sítios ou áreas de cultivo. Há críticas de setores empresariais contra a divulgação da lista, mas a relação, iniciada em 2003, tornou-se referência internacional de combate ao trabalho escravo. Ela expõe publicamente o nome das empresas flagradas, que por dois anos perdem acesso a financiamento de bancos públicos, como BNDES e Banco do Brasil
Mudanças no salário, jornada e fiscalização
Para a Contag e a Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais), o projeto de lei abre brechas para que o trabalhador seja pago com moradia, comida ou parte da produção e não, necessariamente, com dinheiro, conforme reportagem do jornal “Valor Econômico”. O entendimento é em razão do artigo 3º do projeto de lei:
“Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural ou agroindustrial, sob a dependência e subordinação deste e mediante salário ou remuneração de qualquer espécie” artigo 3º do projeto de lei 6442/2016
Na avaliação dos professores de direito do trabalho ouvidos pelo Nexo, o artigo, como está escrito, deixa em aberto a interpretação do que pode ser pago como salário. Em nota divulgada em seu perfil no Facebook, o deputado autor do projeto afirma que o projeto de lei “nunca levantou a hipótese” de mexer no salário. Leitão afirma que, em outros artigos, fica registrado que moradia e alimentação não integram a remuneração e é estipulado um desconto máximo no salário em troca desses benefícios. Na mesma nota, o deputado diz que “eventuais ajustes” na proposta são “normais”. “Todavia, o que não se pode admitir é a prática de um ‘terrorismo social’ por parte de pessoas que sequer leram o texto”, diz Leitão.
O que mais propõe o projeto
Acordos coletivos
Autoriza que regras também sejam reguladas por acordos coletivos, sem necessariamente seguir o que diz a lei. Permite ao trabalhador que more no local de trabalho a venda integral das férias.
Terceirização
O projeto amplia a possibilidade de o empregador terceirizar toda a mão de obra, a exemplo do proposto por lei recentemente sancionada pelo presidente Michel Temer para o trabalho urbano.
Jornada
Deixa de considerar o deslocamento até o local de trabalho como parte da jornada e permite flexibilizar o período de descanso. A jornada também poderá ser estendida até 12 horas diárias “ante necessidade imperiosa” e até 18 dias consecutivos. Também reduz em uma hora o período considerado como “trabalho noturno”, em que a remuneração é acrescida de 25%.
Fiscalização
O projeto revoga normas sanitárias, de segurança e de fiscalização. O texto, por exemplo, diz ser obrigatório instalar um vaso sanitário apenas para cada 40 trabalhadores e não para grupos de 20, como é atualmente para trabalhadores urbanos. Em caso de infrações, o empregador será punido na “segunda visita” do fiscalizador, a menos que a situação seja “de grave e iminente risco”. Para o procurador-geral do Trabalho Ronaldo Fleury, a proposta é equivocada. “Ela legaliza a escravidão”, afirma. Segundo ele, o Ministério Público do Trabalho, que tem entre suas atribuições fiscalizar a legislação trabalhista e mediar as relações entre empregadores e empregados, está acompanhando o desenrolar do projeto. O órgão avalia emitir uma nota técnica para auxiliar os trabalhos dos deputados chamando atenção para as questões jurídicas do projeto. Na breve entrevista abaixo, Fleury fala sobre o projeto de lei e os direitos trabalhistas.
Qual a avaliação do Ministério Público do Trabalho sobre a proposta?
Ronaldo Fleury – Usando uma frase bem curta e de cunho técnico, esse projeto vai repristinar a Lei Áurea. É como se esse projeto de lei revogasse a Lei Áurea e voltássemos à escravatura. Você admitir que um trabalhador seja remunerado com comida é algo impensável em qualquer sociedade civilizada. Ainda mais quando estamos discutindo a modernização das relações de trabalho. A intenção do deputado vai contra um princípio constitucional, que iguala os trabalhadores urbanos e rurais. Ele poderia até propor uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), mas não um projeto de lei. Portanto, já há um vício de constitucionalidade no projeto. Além disso, é como se se tratasse o trabalhador rural como alguém de segunda classe, com direitos diferentes do trabalhador urbano. A proposta não dá um tratamento diferenciado de acordo com uma peculiaridade específica do meio em que ele trabalha, mas sim um tratamento diverso que mexe com a dignidade dele.
O deputado diz que não propõe a troca de salário por comida.
Ronaldo Fleury – O grande problema é que o projeto difere do discurso. No meio rural, moradia e alimentação são condições para o trabalho. O patrão não vai pagar todo dia para o trabalhar ir e voltar para casa, para ir almoçar… São necessidades para o trabalho. Falar em acordo coletivo de trabalho no meio rural, por exemplo, é equivocado. Estamos falando de um meio em que parte da população ainda não sabe ler e escrever. Esse trabalhador vai ter condições de negociar com o patrão? A grande maioria dos casos de trabalho escravo ocorre em fazendas. Há três semanas fomos a uma fazenda no Tocantins, em que os trabalhadores dormiam no curral, num local com um cheiro terrível. Propor uma legislação desse porte, dentro de uma atualidade dessas, não é razoável.
As normas para o trabalhador rural precisam de atualização?
Ronaldo Fleury – Atualmente o marco regulatório do trabalhador é a Constituição, que não tem 30 anos. A própria CLT já passou por diversas alterações. Se for pensar em reformar todas as normas de 30 em 30 anos, o país vira um caos. A Constituição igualou o trabalhador rural e urbano e aplicou aos rurais todos aqueles direitos assegurados aos urbanos. Podemos até falar em atualização da lei do trabalho rural, mas ela deve ser feita dentro dos princípios da Constituição. E esse projeto de lei passa longe disso. Ele legaliza a escravidão. Sem dúvida trata o trabalhador como uma coisa, ao permitir que ele trabalhe na jornada que o patrão julgar correta, sem descanso, sem férias…
Fonte: Nexo
Texto: Lilian Venturini
Data original da publicação: 03/05/201