Esses tempos pedem resistência e olhares atentos. A desumanização, não raro, vem travestida de direito.
Raphael Varga Scorpião
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 14/11/2018
Dentre as inúmeras definições para o momento de hipercomplexidade de nosso tempo e deste sentimento de mal-estar coletivo que compartilhamos, a do filósofo e teórico sul-coreano Byung-Chul Han parece ser perfeita ao propalar que estamos submersos na sociedade do cansaço. Se antes vivíamos a sociedade disciplinar composta de instituições totais, tão brilhantemente escancarada por Michel Foucault, hoje entra em cena a sociedade do desempenho. O sujeito da obediência abre espaço para o sujeito do desempenho.[1]
Ao contrário do que o senso comum teórico alegaria, a queda da instância dominadora não leva à liberdade, mas sim transforma liberdade e coação em algo que beira ao sinônimo. O explorador se torna o explorado; agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. O sujeito do século XXI internaliza a ideia de ser empresário, nem que seja empresário de si mesmo, nem que a sua empresa seja a sua vida, nem que seja desprovido de qualquer capital e seu meio de produção seja única e exclusivamente sua energia vital.
O sujeito do desempenho acredita que reside nele, e só nele, a responsabilidade de transformar a sua vida. O animal laborans moderno (ou pós-moderno) aceita a ideia de que as soluções para o mundo estão na individualidade, no próprio esforço e, por óbvio, este esforço está canalizado no trabalho. Nesta sociedade, trabalho e existência se misturam. A realização do ser humano é vista quase que exclusivamente pela régua do mercado de trabalho e ao ficar desempregado ou se aposentar, acaba entrando em colapso. O senso de coletividade se dissolve, resta apenas o indivíduo e sua crença heroica (e portanto infantilizada) de tudo poder, do nada ser impossível ou inalcançável. Vende-se a ideia de que quem quer consegue e se o sucesso (sempre visto pela lente profissional) não é alcançado, estamos diante de um sujeito fraco, preguiçoso, incapaz, intelectualmente limitado.
Esta crença de que o erro está em si mesmo e não em como a sociedade está estruturada, esta fé de que todos são iguais e que o mérito é que define quem deve ocupar os espaços mais privilegiados da comunidade atende muito bem a quem sempre esteve nestes locais e não pretende sair tão cedo. Da mesma forma que o machismo sorrateiramente responsabiliza a mulher pela frustração do homem, da mesma forma que a sobrevitimização inverte papéis, a sociedade do cansaço legitima o que está posto, o que está estabelecido. De uma maneira absolutamente cruel, a autoestima do sujeito de performance é abalada, ao mesmo tempo em que reverencia aqueles cujo sucesso profissional já era algo certo desde a concepção. Afinal, não é lugar comum a frase “estude para ser alguém na vida”? E os excluídos educacionais? Seriam eles um nada, um “sem lugar no mundo”?
A partir daí, o imperativo de desempenho adoece o meio social. Difícil discordar de Byung-Chul Han quando prega que a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo, além de decorrer da carência de vínculos, característica para a crescente fragmentação e atomização do social[2]. A depressão se esquivaria de qualquer esquema imunológico, irrompendo no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder. É reflexo do cansaço de fazer e de poder, se tornando possível apenas em uma sociedade que crê que nada é impossível. A depressão é, portanto, o desaguar de uma sociedade sob o excesso de positividade.
Como é natural da condição humana, a crença no tudo-poder é um devaneio e a realidade, mais cedo ou mais tarde, virá à tona. A fim de se evitar essa tomada de consciência e, portanto, um despertar definitivo, como prega Albert Camus, essa sociedade de desempenho coloca à disposição seus instrumentos alienadores. Não parece à toa, que frequentemente nos deparamos com movimentos tendente à criminalização da arte, sob um falacioso discurso moralizador, sem que se pregue ser imoral que 70% dos brasileiros nunca tenham ido a um museu ou centro cultural.[3] O medo do despertar vira projeto de governo, quando se propõe algo chamado escola sem partido (seja lá o que isto signifique), quando se incentiva que alunos fiscalizem professores em sala de aula. Afinal, para a sociedade do cansaço, a escola deve ter um único fim: moldar o animal laborans, ou seria por acaso que universidades divulgam ranking de “empregabilidade”, que partidos políticos proponham o ensino técnico como solução para a educação do país?
Esta sociedade pautada na crença do trabalho e do empreendedorismo acaba por individualizar-se em uma sociedade de desempenho e em uma sociedade ativa, em que o sujeito é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se. Afinal, ele pode ser tudo, menos passivo, vindo a se tornar hiperativo e hiperneurótico[4]. Frente à absoluta falta do ser, ressaltam nervosismos e inquietações, reforçando uma vida nua, crua, sem sentido, tão retratada por Franz Kafka no início do século XX.
Para fazer frente à vida desnuda, a reação social vem pela histeria do trabalho e da produção, já que a sociedade do desempenho é tudo menos livre, ela transforma o vigiado em vigia, o agredido em agressor. Esta coação pelo desempenho obriga o sujeito a trabalhar cada vez mais, a se comparar cada vez mais, gerando um sentimento de carência e de culpa que se retroalimenta. O resultado disso tudo é nítido com a crescente medicalização da existência, com os colapsos psíquicos causados pelo esgotamento e pela percepção ainda que tardia de que se levou uma vida maquinal.
Diante do cenário de incertezas que se aproxima, talvez caiba a denúncia de que o direito não seja mais um instrumento a serviço da alienação, da objetificação e da instrumentalização de pessoas. Se é ingênuo acreditar que ele por si só possa ser uma trincheira contra isto, que ao menos não seja o seu instrumento legitimador.
É sob este enfoque que se pode pensar a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que suprimiu o desconto equivalente a um dia do salário do empregado do mês de março de cada ano destinado a amparar materialmente o movimento sindical, sob a justificativa de premiar o bom sindicato e promover a concorrência entre entidades para a melhor representação sem, contudo, alterar a unicidade sindical, que proíbe a constituição de mais de um sindicato representante da categoria profissional sob a mesma base territorial. Frise-se, motivou-se a supressão de recursos pelo fito de concorrência, sem que houvesse possibilidade jurídica de constituição de mais de um sindicato na mesma base territorial.
Ainda no que diz respeito ao sindicato, suprimiu-se a necessidade da homologação da rescisão contratual se dar perante esta entidade associativa. Prima facie, percebe-se um esvaziamento, a um só tempo, dos recursos e das funções sindicais. Neste passo, difícil imaginar uma atuação coletiva do trabalhador. Na melhor definição existencialista, o trabalhador se encontra condenado a estar só e sem desculpa.
Como ponto de partida a absurdidade, depara-se com a previsão legal expressa possibilitando a terceirização de quaisquer atividades, inclusive da atividade principal da empresa, chegando-se ao paradoxo de haver a possibilidade de existir uma empresa com milhares de funcionários, sendo que nenhum deles com vínculo direto a quem é prestado o serviço. É pela absurdidade que entra em vigor uma lei supostamente de cunho social em que o dano extrapatrimonial é tabelado com base no valor da remuneração do empregado. A dignidade e os direitos de personalidade passam a ser pautados pelo salário do empregado. Ressalte-se: a dignidade passa a ter preço e este é maior conforme o cargo de quem a tem violada.
Dentro deste mal-estar coletivo que é posta norma possibilitando o estabelecimento de cláusula compromissória de arbitragem (arbitragem em direitos indisponíveis?); que o reclamante fica sujeito a verba sucumbencial caso não consiga provar aquilo que lhe é de direito; que há sucumbência inclusive do beneficiário da justiça gratuita; que se possibilita o trabalho intermitente, ocorrendo de tempos em tempos sem que haja formação de vínculo de emprego.
Diante de uma realidade de desemprego em níveis altos, sanciona-se uma lei em que há prevalência dos acordos e convenções coletivas sobre regras estabelecidas na CLT, possibilitando que para determinados trabalhadores as estipulações individuais das condições de trabalho preponderam sobre normas estatais; em que deixam de ter natureza salarial os pagamentos feitos a título de diárias para viagem, abonos, auxílio-alimentação e prêmios, os quais deixam de incorporar o contrato de trabalho e de constituir base de cálculo para incidência de encargos trabalhistas e previdenciários; em que, sob um “mútuo acordo”, possibilita-se o pagamento do aviso prévio e da multa do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em montante reduzido, permitindo-se que a homologação da rescisão deixe de ser feita, alterando-se o prazo para pagamento das verbas rescisórias.
Esses tempos pedem resistência e olhares atentos. A desumanização, não raro, vem travestida de direito (que atualmente gosta de se nomear como reformas).
Notas:
[1] HAN, Byung Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. P.23.[2] HAN, Byung Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. P.27.
[3] Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/ipea70dapopulacaonuncafoiamuseuoucentrocultural,2a6c4bc92690b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html – acesso em 14/11/2018 às 14h10.
[4] HAN, Byung Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. P.43.
Raphael Varga Scorpião é mestrando em Filosofia do Direito pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela PUC/MG, graduado em Direito pela UNESP e analista jurídico no Ministério Público do Trabalho.