O projeto de abandono das possibilidades de desenvolvimento do Brasil

Está em curso uma violenta ofensiva contra o Estado brasileiro e os serviços públicos garantidos pela Constituição de 1988. A investida tenciona mercantilizá-los, associando a isso uma fragilização de todas as políticas sociais em curso no país.

Liana Carleial

Fonte: Idées d’Amériques
Data original da publicação: 19/12/2017

Num de seus mais importantes momentos de interpretação da América Latina e Brasil, Celso Furtado afirmou que o subdesenvolvimento não é um estágio para o desenvolvimento.Reverter a situação de subdesenvolvimento exigiria a definição explícita desse objetivo e a concepção de políticas públicas que permitissem atingir esse fim. Não seria tarefa fácil pois, a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho era subalterna e a correlação de forças políticas internas nem sempre seria favorável. Os subdesenvolvidos, assim chamados, emergem com mais vigor no pós-segunda guerra mundial, reclamando um lugar num cenário dominado pelos países que estiveram mais perto das mudanças tecnológicas, desde a revolução industrial, e conseguiram ter alguma autonomia em construir centros/setores responsáveis pelo progresso técnico necessário à sua estrutura produtiva e às exigências da concorrência intercapitalista, num cenário de centralização de capitais.O subdesenvolvimento é responsável por uma estrutura produtiva pouco diversificada com repercussões sobre o mercado de trabalho, concentração de renda e pobreza.

O Brasil conseguiu, a partir dos anos trinta do século passado desafiar a sua condição, centrando esforços na construção de uma indústria que começou tímida, no entorno dos assalariados do café, mas que chegou em 1980 com uma estrutura que acompanhava a tendência mundial centradano complexo químico, metal-mecânica e, em tamanho, o parque industrial era maior do que os da Tailândia, China, Malásia e Coreia do Sul juntos(Cassiolato, 2001).

A implementação das medidas do consenso de Washington, pelos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), notadamente abertura comercial e privatização, retirou elos importantes dessa estrutura e transferiu decisões importantes para as multinacionais que se instalaram no país.A medida provisória 727/2016 reedita os mesmos princípios do programa de desestatização dos governos Collor e FHC, sob a denominação de Programa de Parceria de Investimentos(PPI) com o objetivo de privatizar todas as empresas estatais, aeroportos, estradas, bancos públicos, e não há dúvidas de que as universidades públicas estão na mira.

Sim, o Brasil vive um momento político desolador, submetido a um golpe de Estado de natureza múltipla: parlamentar, jurídico e midiático, sem crime de responsabilidades e hoje, sabe-se, votado por parlamentares denunciados e votos comprados pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, preso apenas após a votação do impeachment no Congresso. Está em curso uma violenta ofensiva contra o Estado brasileiro e os serviços públicos garantidos pela Constituição de 1988. A investida tenciona mercantilizá-los, associando a isso uma fragilização de todas as políticas sociais em curso no país.Está de volta, o projeto neoliberal que associa o projeto desenvolvido pelo PMDB (Partido doMovimento Democrático Brasileiro, do presidente Temer): “Ponte para o Futuro”, divulgado em outubro de 2015 e a agenda neoliberal do PSDB, iniciada nos governos FHC e não implementada completamente naquele período. Em ambos, o que se impõe é a subordinação dos interesses do país e de suas gentes aos interesses da banca internacional, do mercado financeiro, em suma.

Para entender a complexidade do momento

A atuação do governo Lula, mesmo ancorado numa política macroeconômica que preservou o superávit primário, pagou juros altos e manteve a estrutura tributáriaregressiva conseguiu produzir mudanças significativas na economia e na vida das pessoas. A conjugação entre um ambiente externo favorável com grande liquidez internacional, baixas taxas de juros internacionais e uma melhoria significativa nos termos de troca, favorecendo o Brasil, permitiu que se explicitasse desde o Plano Plurianual (PPA) 2004-2007, a intenção de instalar no país um modelo de produção e consumo de massas que valorizasse o extenso mercado interno brasileiro. Os meios para isto foram estimular a formalização do mercado de trabalho, reduzindo o desemprego e a informalidade, promovendo a inclusão social. Associou-se ao projeto de investimentos públicos (Programa de Aceleração do Crescimento–PAC, que atingia 13% do PIB), uma ousada política de valorização do salário mínimo(85%) de 2003 a 2014, um programa de construção de moradias populares (Minha Casa, Minha Vida), um amplo programa de transferência de renda, aBolsa Família que atingia 13 milhões de famílias, o Programa Luz para todos(levando energia elétrica para três milhões de famílias rurais), programas de acesso a crédito pessoal através dos bancos públicos bem como financiamento da produção via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Apesar da desindustrialização em curso no país desde os anos 1980, os governos petistas produziram políticas industriais que haviam desaparecido desde os anos FHC. A Petrobrás, a produção de petróleo e gás estiveram no centro das questões econômicas, por todos os seus efeitos sobre cadeias importantes como indústria naval, produtores de sondas,tubulações, compressores, atividades de P&D e formação de pessoal. É inegável a posição do petróleo como insumo estratégico bem como arma política no cenário da geo-política mundial. A descoberta do pré-sal confirmou a expertise tecnológica em perfuração em águas profundas1. Agora, em junho de 2017, o número de barris obtidos nessas áreas já supera o obtido no pós-sal. Os demais setores relevantes eram a construção civil e a automobilística. Concretamente, o PIB brasileiro cresceu 3,4%,ao ano, entre 2004-2014.

No âmbito internacional, esse período implementou uma estratégia de relativa autonomia, aproximando-se dos países africanos e intensificando as relações sul-sul. Reduziu a importância dos EUA enquanto destino das exportações, ampliou a importância da China e finalmente, juntamente com Rússia, África do Sul e Índia constituiu o grupo BRICS, única inovação institucional que aconteceu após a crise financeira de 2008. O objetivo era claramente construir uma estratégia conjunta de enfrentamento das crises fora do raio de ação do FMI, tendo para isso criado um banco próprio, o NDB (New Development Bank).

Do ponto de vista social, os avanços foram enormes. O desemprego aberto caiu a níveis muito baixos(6,5% e 4,8% nas regiões metropolitanas), foram criados 22 milhões de postos de trabalho formais e 73% dos trabalhadores tinham cesso à previdência social, maior marca da nossa história. O Brasil saiu do mapa da fome, 36 milhões de pessoas saíram da pobreza e segundo Kerstenetzky(2017: 18) a redução de 0,6 ponto de Gini, por ano, durante doze anos consecutivos, superou o ritmo de redistribuição em países desenvolvidos no pós-guerra, apenas a Espanha teria excedido esse ritmo.

O Brasil pós-golpe de abril de 2016

O contexto do golpe foi dado pela conjugação de alguns elementos que merecem ser citados. O segundo governo Dilma Rousseff, em 2014, começou mal pela não aceitação do resultado das urnas, 54 milhões de votos pró-PT, pelo candidato do PSDB(partido que perdia pela quarta vez consecutiva), Aécio Neves, que requereu recontagem de votos, lançou dúvidas sobre a lisura do pleito e instalou um clima de desconfiança. Junto a isso a presidenta enfrentava graves problemas com o Congresso eleito, o mais conservador dos últimos tempos. Mas não só, foi confirmado um déficit de 0,6% do PIB brasileiro, em 2014, após 17 anos de superávits consecutivos. Vale salientar que a pressão política exercida sobre o governo foi grande, e o quarto governo do PT, iniciou um processo de ajuste macroeconômico de cunho neoliberal, e instalou como Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um nítido representante desse projeto.

Paralelamente, o país e suas gentes foram massacrados, diuturnamente, pela mídia sobre as descobertas da operaçãoLava jato, cujo mote era o combate à corrupção e à promiscuidade entre setor público e setor privado, representado pelas fornecedoras e empreiteiras ligadas à Petrobrás. Foi então montado um processo de pedido de impeachement da presidenta Dilma Rousseff, tendo supostamente, como base legal e jurídica, o cometimento de crimes fiscais, os quais posteriormente foram comprovados como inexistentes.

Esse pedido tramitou no Congresso, recebeu aprovação na duas casas, Câmara e Senado, e em 16 de abril de 2016, consumou-se, o golpe, sendo guindado à posição de presidente interino o vice-presidente, Michel Temer(PMDB).

A primeira ação do governo golpista foi alterar a estrutura e as funções do Estado brasileiro, e não haviam instrumentos jurídicos capazes de impedi-lo. Ainda como interino extinguiu ministérios e associou outros. O mais emblemático foi a descaracterização do Ministério de Ciência e Tecnologia ao qual veio associar-se o das Comunicações; o Ministério do Trabalho e Emprego foi incorporado ao da Previdência Social; ao Ministério do Desenvolvimento Agrário foi incorporado o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ao Ministério da Educação foi incorporado o da Cultura, cuja resistência da sociedade foi tão forte que o presidente interino voltou atrás. Finalmente, foram extintos os Ministérios das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos que se transformaram em secretarias do Ministério da Justiça.

Logo de início, o governo interino afirmou-se como produtor das grandes reformas, supostamente necessárias à retomada do crescimento econômico. O programa de austeridade iniciado pela presidenta Dilma Rousseff, aprofunda-se diante da hipótese de fácil aprovação pelo Congresso. Fica cada vez mais claro que está em curso um ajuste neo-liberal de proporções muito mais graves do que o desejado pelos governos FHC.

Aprova-se, rapidamente, a Emenda Constitucional 95 que congela por 20 anos todos os gastos sociais; aprovam-se também a Reforma Trabalhista e as novas regras da prática da terceirização da força de trabalho, projeto que tramitava há anos no congresso, liberando seu uso em todas as etapas da produção e excluindo a responsabilidade solidária do Estado, em caso de não pagamento dos direitos trabalhistas. Inicia-se um processo de esvaziamento do SUS(Sistema Único de Saúde), da Seguridade Social, simulando uma crise que deveria redundar na aprovação de uma Reforma da Previdência, em condições muito duras para os mais pobres. Igualmente, reduzem-se os recursos destinados ao Bolsa Família e simula-se uma crise da educação desde o ensino fundamental até as universidades federais.Como diria Darcy Ribeiro, crise na educação brasileira é um projeto!

Como não poderia deixar de ser, sob condições de austeridade, o PIB brasileiro caiu 3,8% em 2015 e 3,6% em 2016. Em setembro de 2017, o desemprego aberto atinge 13,5 milhões de pessoas. Seguindo religiosamente a liturgia da austeridade, o déficit público previsto para esse ano é de RS159 bilhões, quando em 2014, era da R$ 17,2 bilhões.

Fontes: Congresso Nacional, Ministério do Planejamento e Organização das Cooperativas Brasileiras, “Pagando a conta”,Jornal Valor Econômico, 11 de outubro de 2017. “Dados consideram o acumulado no ano com números fechados entre junho e setembro, dependendo do programa social”.
Fontes: Congresso Nacional, Ministério do Planejamento e Organização das Cooperativas Brasileiras, “Pagando a conta”,Jornal Valor Econômico, 11 de outubro de 2017. “Dados consideram o acumulado no ano com números fechados entre junho e setembro, dependendo do programa social”.

Na realidade, o projeto neoliberal em curso no Brasil, se propõe a garantir o pagamento da dívida pública, honrando os rentistas a uma taxa de juro ainda uma das mais altas do mundo, ao preço de tirar os pobres do orçamento, com atesta o quadro 1, publicado pelo jornal Valor Econômico, no dia 09.10.2017. Estão ali listados os programas que atendem os produtores rurais de alimentos, os mais pobres, cujos produtos eram comprados pelo PAA(Programa de Aquisição de Alimentos), garantindo-lhes renda, o Luz para Todos, o Bolsa-família, a Farmácia Popular, o FIES(Fundo de Financiamento Estudantil) que permite o acesso às Universidades não gratuitas e o Minha Casa, Minha Vida, cujo objetivo era reduzir o grande déficit habitacional das famílias que ganham até três salários mínimos de renda mensal.

A operação Lava Jato como alavanca do golpe e da crise econômica

A operação Lava Jato começou, em 2009, com a investigação de crimes de lavagem de dinheiro relacionados ao ex-deputado federal José Janene, em Londrina, no Paraná, Sul do Brasil. Foi a partir do monitoramento de doleiros que ela chegou aos diretores de abastecimento e da área internacional da Petrobrás, maior empresa brasileira de petróleo e que estava no centro das atenções nos governos do PT. A partir da investigação sobre a Petrobrás, desencadeou-se uma campanha negativa contra essa empresa, responsável por 10% do PIB brasileiro, criando condições objetivas com potencial para levá-la à privatização, exatamente como aconteceu com a Telebrás e suas subsidiárias em todo o país, nos governos FHC.

As ações judiciais que identificaram o pagamento de propinas em torno das duas diretorias da empresa ensejaram a interpretação de que essa empresa estaria à beira da falência, o que certamente contribuiria parar o projeto de privatizá-la. O interessante é que em 2015, a produção total foi de 2,128 milhões de barris-dia(dos quais 1/3 advindo do pré-sal), acima da meta prevista de 2,125 milhões e quase 5% acima do desempenho de 2014. No entanto, após o golpe e sob os auspícios do ambiente negativo criado pela Lava Jato, em 2016, apenas três poços estavam em operação. Isso significou cortar os elos com a produção de sondas, de novas plataformas bem como de novas embarcações que vinham sendo construídas, cada vez mais, com porcentagens crescentes de conteúdo nacional submetido à politica industrial do Governo Dilma, o Brasil Maior. Isso também tem implicações sobre a contratação de pessoal e o desenvolvimento tecnológico em torno do petróleo.

Enfim, o interesse da Petrobrás passou a ser visto como vender jazidas, obter recursos e desvencilhar-se dos efeitos positivos da política anterior. Tanto é assim que, em janeiro de 2017 foram anunciados o leilão de 21 campos de óleo e gás e a licitação de uma obra no complexo petroquímico do Rio de Janeiro, com a participação de 30 empresas estrangeiras e nenhuma brasileira.Também em 2016, o senador José Serra(PSDB) elaborou um projeto de lei, já aprovado, que retira a obrigatoriedade da participação da Petrobras na exploração do pré-sal e sua exclusividade na operação dos campos.

Um segundo setor econômico atingido pela lava jato foi o da construção civil, através das grandes empreiteiras brasileiras que prestavam serviço para à Petrobrás.Vale lembrar que, segundo a UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), a construção civil representa 6% do PIB, nos países em desenvolvimento. Assim, esses dois setores foram responsáveis também pela perda de muitos postos de trabalho. A pergunta que fica é: teria sido possível poupar as empresas e os empregos, mesmo diante das evidências de corrupção?

Do ponto de vista das relações comerciais, os EUA voltaram a dominar o rank das importações brasileiras, fato que havia ficado para trás, diante da postura multilateral assumida pelos governos do PT.Em 2013, os EUA abasteceram 33% das importações brasileiras de óleo diesel, que alimenta todo o transporte rodoviário brasileiro e tem impacto sobre o preço dos alimentos; já em maio de 2017, esse país detém 83% dessas importações, segundo o Banco Central. Também segundo o Banco Central, mas com dados organizados pelo Blog, O Cafezinho, a participação do EUA nos investimentos diretos no Brasil cresceu muito. A média dessa participação no período, 2013-2016 era de 14%; já a média de 2017, após o golpe, essa participação atinge 31% desses investimentos, reduzindo a parcela do resto do mundo de 86% para 69%.

E agora?

José Luís Fiori (2007: 35) considera que nos períodos de grande bonança econômica internacional, “tendem a se ampliar os espaços e as oportunidades para os Estados situados na periferia do sistema. O aproveitamento político e econômico dessas oportunidades, entretanto, depende, em todos os casos, da existência dentro desses Estados e dessas economias nacionais de classes, coalizões de poder, burocracias e lideranças com capacidade de sustentar, por um período prolongado de tempo, uma mesma estratégia agressiva de proteção de seus interesses nacionais e de expansão de seu poder internacional”.

Ao contrário da Alemanha que elege Merkel para quatro mandatos seguidos, sem que paire sobre os alemães a desconfiança de que não são uma democracia, abaixo da linha do equador, o tempo não pode ser suficiente para varrer de vez a fome, a desigualdade, enfim, o subdesenvolvimento. Tristes trópicos, alguém já disse um dia! O mais urgente, nesse momento, é retomar a nossa democracia. Só assim, será possível retomar ainda, quem sabe, o projeto de superação do nosso subdesenvolvimento.

Notas

1. O pré-sal era visto como o passaporte para o futuro: 75% dos royalties seriam destinados à educação e 25% à saúde.

Referências

Cassiolato, José Eduardo. « Que futuro para a indústria brasileira? » in O futuro da indústria: oportunidades e desafios: a reflexão da Universidade. Brasília, MDIC/STI/IEL. Nacional, capítulo 1, 2001.

Fiori, José Luis. O Poder global a nova geopolítica das nações. São Paulo. Boitempo Editorial. 2007.

Kerstenetzky, Célia “Foi um pássaro, foi um avião? Redistribuição no Brasil no século XXI” SP, Novos Estudos Cebrap, n° 108, p.15-34, 2017.

Liana Carleial é professora titular de economia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Também foi professora convidada na Université de Picardie Jules Verne, em Amiens, France (2005-2006). Contato: liana.carleial@gmail.com.

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