Enquanto os trabalhadores guerreiam entre si para produzir e vender conteúdos atraentes, as empresas demitem e as plataformas engordam.
Leonardo Baldan
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 30/03/2022
Um consumidor liga para o serviço de assistência ao cliente de sua operadora de internet, o sinal da rede está instável. No telefone, uma gravação instrui: “– pressione o número X se você quer falar sobre Y, já para falar sobre Z, pressione…”. Após alguns minutos e cliques, a mesma voz gravada explica ao cliente como restaurar o sinal. Para isso, seguindo instruções da gravação, o consumidor desliga o modem, espera um minuto, reinicia o sistema, configura os padrões de conexão e, enfim, o sinal da internet é normalizado. De volta ao telefone, a gravação agradece a preferência e encaminha o consumidor para uma pesquisa de controle de qualidade da empresa: “– você recomendaria nossa empresa para amigos e familiares? Se sim aperte 1, se não, 2…”.
A situação descrita é emblemática do nosso tempo. Alguns anos atrás, no lugar do robô da voz gravada, teríamos um atendente de telemarketing. Depois que aprenderam a falar, as máquinas começam a substituir uma enorme variedade de profissionais, de vendedores de plano de saúde aos bilheteiros de cinema. Mas, até aí, não há nada de muito novo no capitalismo, as máquinas vêm substituindo o trabalho humano desde o início da Revolução Industrial. A novidade da descrição acima está, sobretudo, no consumidor exercer o trabalho do técnico de rede e do técnico de controle de qualidade. Onde há recursos tecnológicos para tal, as empresas começam a encarregar o consumidor de exercer o trabalho antes feito por empregados, como argumenta a socióloga Silvia Viana em seu livro Rituais de Sofrimento (2013). O que se vê por toda parte é a produção de modelo econômico onde há trabalho, mas não há empregos.
As redes sociais talvez sejam a expressão mais forte dessa sociedade que decidiu abolir o emprego. Um amigo professor foi dispensado da universidade em que dava aulas e achou boa ideia dar aulas no YouTube, misturando conteúdo educativo com temas da cultura pop. Na rede social, a realidade que encontrou foi completamente diferente daquela que tinha na universidade. Enquanto no antigo emprego ele tinha uma rotina clara que consistia, sobretudo, em preparar e dar aulas, no YouTube, por sua vez, ele operava como roteirista, operador de câmera, cenógrafo, figurinista, técnico de som, editor, profissional de marketing e professor. Um trabalho sem hora para começar e terminar que consumia todo o seu dia. Em termos de salário, do rendimento estável da universidade, ele passou a depender do número de visualização dos vídeos, que pode ter grande variação de um mês para o outro, mas que sempre era pouco. Entretanto, em sua opinião, o pior foi perder a independência acadêmica para produzir conteúdo que agradasse o consumidor do YouTube. Um público que podia a qualquer momento abandonar seu vídeo para ver um jovem influencer dinamarquês mergulhar numa banheira de Nutella. Em resumo, ele trabalhava mais e suas aulas chegavam a milhares de pessoas, bem diferente dos 60 alunos de uma classe universitária, mas recebia menos — e se sentia menos feliz. No fim, desistiu desse trabalho e foi procurar um emprego.
Tal como o professor do exemplo, em qualquer rede social há alguém trabalhando em desemprego: um maquiador que ensina consumidores a se maquiar no Instagram, um psicólogo que mistura clínica e autoajuda no Facebook, uma professora de inglês que ensina pronúncia enquanto dança no TikTok, um médico que faz lives sobre boa alimentação e depois envia seus vídeos para grupos do WhatsApp, um internacionalista que escreve textos no Linkedin… São poucas as profissões que ainda não entraram no regime do trabalho-desemprego. Como é de se esperar, essa reserva de mão de obra que trabalha em desemprego, exerce uma enorme pressão nos trabalhadores que ainda estão empregados. Para que contratar um personal-trainer se há todas as dicas de musculação na internet? O emprego parece um favor que se faz ao trabalhador. Assim, na medida que os empregos vão dissolvendo, os empregados perdem seu poder de reivindicação.
Há quem diga que no século XXI a luta dos trabalhadores é a luta pelo emprego. Se antes lutávamos por melhores condições, agora, o emprego seria, por si só, o objetivo final da luta social. Ora, a ideia de luta pressupõe uma organização da classe, algo que está fora do horizonte de possibilidades nesse momento. Submetida ao nível de precariedade do trabalho contemporâneo, como no exemplo do professor universitário acima, resta ao trabalhador um esforço descomunal para inovar-se e se destacar no mundo do trabalho. Nessa perspectiva, o trabalhador que inova, inova em relação ao outro, de forma que, quanto mais um inova, menos inovado o outro é. Na guerra de trabalhador contra trabalhador, banhada em ideologia meritocrática e na ideia do “chefe de si mesmo”, não há a possibilidade da produção de nenhum sentimento de solidariedade que estrutura a luta social. Nesse sentido, estamos diante de um horizonte de derrotas e de precarização da vida.
A crítica social, por sua vez, capitulou à lógica do jogo. Pegue, por exemplo, a militância na internet. Se, como argumentava Nietzsche, forma também é conteúdo, a forma como militamos nas plataformas sociais é uma aderência ao regime do trabalho-desemprego. O problema é que quando a militância adere à gramática do poder, ela acaba não só legitimando-a, como a revigorando. A capacidade de permitir que a crítica circule sem que isso altere as estruturas de poder dá resiliência ao sistema. Desse modo, quando damos nota 0 a empresa do robô do telemarketing ao final da ligação, o sistema ainda assim nos agradece, porque mesmo uma opinião negativa é uma aderência.
Leonardo Baldan é formado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e é Mestre em Estudos do Desenvolvimento pela Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres.