Exploração já não se faz como Marx a viu. Neo-rentismo captura a riqueza dos 99% sem investir ou gerar trabalho, mas multiplica crises e abre brecha para novo projeto emancipatório.
Antonio Martins
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 06/10/2022
Em seus últimos anos de vida, o sociólogo Immanuel Wallerstein, que morreu em 2019, anteviu o colapso do capitalismo. Autor da teoria dos sistemas-mundo, ele percebeu que a ordem eurocêntrica estava submetida a tensões às quais não resistiria – e julgou que, ao desabar, ela tornaria insustentáveis as lógicas do capital. Numa série de ensaios curtos, porém muito provocadores, Wallerstein, contudo, advertiu: não comemorem cedo demais. O sistema que se instalará sobre os escombros do atual, considerou, pode ser muito mais explorador, hierárquico e devastador da natureza que o atual. O contrário também é possível… As lutas sociais e políticas é que decidirão o desfecho.
O livro mais recente do economista Ladislau Dowbor, que começa a circular nos próximos dias, vislumbra esta mesma transição incerta, mas a aborda a partir de outro ponto de vista: o das relações econômicas e políticas. Suas hipóteses centrais são igualmente instigantes. O capitalismo está morrendo, diz o autor, porque seu modo de expropriar a riqueza social deixa de ser hegemônico. A indústria já não é o centro da criação de valor. Por isso, a exploração não pode ter como mecanismo principal a mais-valia extraída dos trabalhadores. E à medida em que este processo declinou, emergiu um outro: o rentismo contemporâneo. Por meio de uma série de mecanismos, uma elite cada vez mais reduzida captura a riqueza social sem investir, empregar ou produzir.
As consequências são devastadoras. Em todo o Ocidente, a desigualdade disparou a ponto de 26 bilionários concentrarem mais riqueza que metade da humanidade. Parcelas cada vez mais vastas da população estão desempregadas, precarizadas ou desalentadas. A fome está de volta. As patentes bloqueiam o acesso das populações até mesmo às vacinas. Corporações sem rosto devastam a natureza e zombam do colapso climático sem sofrer danos. O novo sistema, mostra Ladislau, pode de fato despertar saudades do “velho” capitalismo.
Mas as engrenagens do novo horror são frágeis e vulneráveis. Apesar dos imensos avanços da tecnologia, as economias não crescem. Mesmo empanturrados de riquezas, os mercados financeiros permanecem sujeitos a crises prolongadas e potencialmente devastadoras. A instabilidade espraia-se para a política: as maiorias já não se sentem representadas pelos velhos sistemas partidários, que haviam garantido por décadas a coesão social e a legitimidade do sistema. Avançam tanto o rancor fascista quanto alternativas que propõem a superação do capitalismo.
O tempo delas pode ter chegado, sugere o livro de Ladislau Dowbor – intitulado Resgatar a função social da Economia. O fator principal para produção de riquezas não é mais a fábrica, mas o conhecimento. Trata-se de um bem não-rival – que pode ser reproduzido e compartilhado ao infinito, sem que seus detentores percam nada com isso. O último capítulo da obra propõe elementos para um projeto que permita distribuir a riqueza social, estabelecer nova relação com a natureza e transformar a política, nas condições do século XXI. Implica transformar a moeda e as finanças. Estabelecer a Renda Básica. Desprivatizar. Lançar um vastíssimo programa de investimentos públicos, suficiente para desmercantilizar Saúde, Educação e Habitação, além de renovar a infraestrutura e iniciar a conversão energética. Assegurar trabalho com direitos aos que desejem engajar-se nestas tarefas. Estabelecer a democracia participativa como mecanismo essencial de governo.
Aqui, a obra torna-se particularmente necessária ao Brasil contemporâneo. Ela mostra que a tendência ao fascismo pode ser revertida, desde a esquerda não ceda à tentação de salvar uma ordem em social em declínio. Ela precisa, ao contrário, se dar conta do enorme trabalho – político e teórico – que tem pela frente. Tornou-se possível, arrisca Ladislau, pensar uma sociedade fundada não mais sobre a competição e a exploração, mas em dinâmicas cooperativas. Mas as propostas para tanto diferem dos projetos socialistas do passado. A base material da produção de riquezas mudou radicalmente. Por isso, a ideia de superar as lógicas do capital tornou-se mais válida que nunca – mas os programas para realizá-la precisam ser totalmente repensados.
Crise da antiga forma de capturar a riqueza social. Emergência do rentismo contemporâneo. Devastação social e ambiental resultantes. Tendência a crises econômicas e políticas constantes. A alternativa da Colaboração. O livro de Ladislau é um guia para enxergar e começar de estudar o declínio do capitalismo, os riscos já visíveis de emergir um sistema ainda pior e as bases para construir, por meio da política, outra saída para a crise civilizatória. A seguir, uma breve antecipação de suas hipóteses principais.
I. A tecnologia e as políticas que produzem o rentismo contemporâneo
As teorias que marcaram o pensamento humano persistem por longo período, mesmo depois de se alterarem as realidades objetivas que elas descreviam. Desenvolvida por Marx, a ideia de que a mais-valia é extraída no processo de produção dos bens materiais – em especial na indústria – formou a esquerda por um século e meio. A partir dela, definiram-se projetos (como a estatização dos meios de produção), estratégias, visões sobre o “sujeito revolucionário” crucial (a classe operária), estruturas organizativas. Ladislau argumenta que esta forma de exploração do trabalho já não é a principal. Não significa que tenha desaparecido – mas, sim, que as classes dominantes encontraram outros mecanismos, no momento mais efetivos, de capturar a riqueza social.
A mudança relaciona-se a outra descoberta de Marx, já no campo da filosofia política: a dialética entre as forças produtivas da sociedade e as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si. Estas últimas formam, na teoria marxista, “a estrutura econômica da sociedade”. Perduram por longas épocas. Estabeleceram, ao longo da História, distintas dinâmicas de opressão de uma pequena classe dominante sobre as maiorias. São, por exemplo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo. Já as forças produtivas – trabalho, tecnologia, fábricas, ferramentas, matérias-primas etc – estão em incessante transformação. Em determinados momentos, seu desenvolvimento avança tanto que as velhas relações de produção não são capazes de contê-las. Neste ponto, a estrutura econômica entra em xeque e, segundo Marx, “abre-se uma época de revolução social”.
Como estas ideias realizam-se nas condições concretas de nosso tempo? A revolução tecnológica das últimas décadas sacudiu e transformou as forças produtivas em todos os setores da atividade humana – e não cessa de fazê-lo. Ladislau aponta, em outro livro recente2, suas marcas principais. É possível resumi-las assim, empregando essencialmente as palavras do autor.
A base produtiva da humanidade está se deslocando de maneira radical e muito acelerada. (…) O conhecimento transformou-se no principal fator de produção. (…) A máquina continua importante, mas hoje o ser humano programa a sua operação. O que ele gera, fundamentalmente, são tecnologias, design, o chamado “imaterial”. Não é apenas a robótica, que penetra de forma acelerada em inúmeros setores. Surgem aplicações científicas inovadoras em praticamente todas as áreas: energia, transportes, medicina, educação, cultura, geração de novos materiais (…) Além disso, pela primeira vez todas as unidades de informação – letras, números, sons, imagens – podem ser digitalizadas. É possível receber, armazenar, tratar e articular volumes praticamente ilimitados de conhecimento. E a conectividade planetária permite tornar esse fator de produção disponível instantaneamente, em qualquer ponto do planeta.
Há algo muito especial nesta transformação. A centralidade do conhecimento e do imaterial abre, em teoria, espaço para uma socialização inédita da riqueza. Ladislau prossegue: “O principal fator de produção na economia contemporânea não é escasso. Não tem seu estoque reduzido pelo uso – pelo contrário, pode ser multiplicado indefinidamente”. Esta característica abala os alicerces da ideia de propriedade privada e, em especial, a lógica de competição e exploração onipresente no capitalismo.
Ocorre, porém, que esta mudança de época transcorreu, até o momento, em meio a condições políticas singulares. As forças que desejam superar o capitalismo foram batidas pela esclerose e posterior derrocada do “socialismo real”. A potência libertadora da produção baseada no conhecimento e no imaterial foi sequestrada pelas velhas lógicas. As classes dominantes já não podem extrair o mais-valor do trabalho como antes – porque a fábrica e as máquinas perderam protagonismo. Mas, em meio à emergência da ordem neoliberal, fazem-no ressuscitando e atualizando o velho rentismo – ou seja, a extração improdutiva da riqueza social, por meio de mecanismos de intermediação. Por isso, autores como Cédric Durand e Ellen Brown a veem como uma espécie de tecnofeudalismo.
Ladislau aponta com precisão cirúrgica o caráter predatório das relações sociais que derivam deste paradoxo.
Na fase anterior, o capitalista, para enriquecer, precisava pelo menos produzir e gerar empregos, e inclusive pagar impostos, o que enriquecia a sociedade. Na fase que se inaugura no final dos anos 1970, o capitalista descobre que os mecanismos financeiros podem garantir enriquecimento com muito menos esforço, e sem tantos constrangimentos. (…)
Em seu livo anterior, O capitalismo se desloca, ele já havia chamado atenção para a irracionalidade do processo:
Em vez de produzir mais para ganhar mais, o capitalismo passa a buscar formas artificiais de gerar escassez para ganhar dinheiro e combater os processos decentralizados e colaborativos de multiplicação da riqueza. O sistema inverte os valores. Proibir o livre acesso ao livro ou ao filme que poderiam ser acessados online tornou-se fundamental.
Mas quais as formas concretas por meio dos quais esta criação artificial de escassez se realiza – e permite concentrar tantas riquezas? É o que veremos a seguir.
II. As novas formas de extração da riqueza social
Entre as dez empresas ocidentais de maior valor de mercado em 2022, apenas duas – Toyota e Samsung – são industriais, segundo a revista Forbes. Dos dez bilionários com maior riqueza acumulada, somente dois – Elon Musk e Bernard Arnaut – concentram parte de seus recursos na atividade produtiva, por sinal produzindo bens de luxo. E no topo da pirâmide do novo sistema estão três fundos gigantes de intermediação financeira. BlackRock, Vanguard e State Street têm, somados, ativos equivalentes ao PIB dos EUA (US$ 21,5 trilhões) e quatro vezes superiores ao orçamento federal norte-americano. Sozinho, o Black Rock tem poder de investimento cinco vezes superior ao PIB do Brasil.
Os dados bastam para sugerir o quanto migraram – da indústria para as finanças – os mecanismos de captura e concentração da riqueza global. Mas em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor não se limita a enunciar fórmulas genéricas. Ele faz questão de descrever, um a um, os processos que substituíram a produção industrial e agora drenam o trabalho e os conhecimentos de toda a sociedade para uma pequena minoria. O exame atento confirmará que se trata de criações políticas. Os processos eram residuais ou subalternos ao capitalismo industrial, antes da era neoliberal. Tornaram-se dominantes num contexto em que uma pequena elite sentiu necessidade de substiuir a antiga forma de extração do mais-valor pelo apoderamento improdutivo da riqueza. Eis alguns destes mecanismos, descritos em mais detalhes em Resgatar a função social da economia.
Endividamento generalizado:
77% das famílias brasileiras estavam endividadas em julho de 2022. No mesmo mês, a inadimplência quebrou um recorde histórico: 66,8 milhões de pessoas não foram capazes de se manter em dia com seus débitos. O número de empresas inadimplentes chegou a 6 milhões. “Grande parte da humanidade trabalha para alimentar intermediários financeiros”, afirma Ladislau, citando dados do Brasil sobre a punção da riqueza coletiva que isso representa. Já em 2016, R$ 1 trilhão, ou 16% do PIB brasileiro de então, foram transferidos aos bancos, a título de juros. Somados aos 6% do PIB pagos pelo Estado brasileiro aos detentores da dívida pública, perfaziam uma captura, pela oligarquia financeira, equivalente a mais de 1/5 das riquezas produzidas no país.
Esta apropriação foi maximizada pelas políticas neoliberais. Elas reduziram a capacidade dos Estados de emitir moeda para fazer investimentos produtivos mas ampliaram, ao mesmo tempo o poder de emissão dos bancos privados. “Os bancos hoje emitem dinheiro. O papel-moeda impresso pelos governos representa, como ordem de grandeza, 3% da liquidez. Os 97% constituem apenas anotações nos computadores, dinheiro virtual emitido pelos bancos”, frisa o livro, ecoando, entre outros, um estudo do Bank of England.
Dividendos, ganhos financeiros e especulação imobiliária:
Ao longo de 2021, a Petrobras – uma empresa estatal que, em teoria, deveria agir em favor dos interesses nacionais – transferiu a seus acionistas R$ 101 bilhões, na forma de dividendos. Hoje, 63,4% do capital está em mãos privadas e, desta parte, 70% pertence a estrangeiros (em geral megafundos como o BlackRock). Os lucros da empresa foram obtidos, essencialmente, extraindo do subsolo o abundante petróleo brasileiro e vendendo-o com margem descomunal aos consumidores. Enquanto premiava este tipo de acionistas, a Petrobras reduziu seus próprios investimentos, em 2021, a US$ 8,7 bilhões – menos de 1/5 do que haviam sido em 2013. As políticas neoliberais a transformaram numa “vaca leiteira dos mercados”.
E esta máquina de capturar a riqueza comum e transferi-la a uma aristocracia financeira é alimentada com dinheiro público, sempre que para de girar. Tanto na crise de 2008 quanto na de 2019, os bancos centrais emitiram, a partir do nada, cerca de 30 trilhões de dólares, para evitar que os cassinos globais secassem. Eram recursos negados à saúde, à educação ou à infraestrutura, sob pretexto de preservar a “disciplina fiscal”. E a folia não cessou, quando os riscos de colapso financeiro passaram. Os bancos centrais mantêm, até hoje, as políticas de quantitative easing, por meio das quais seguem produzindo montanhas de dinheiro e despejando nos mercados, supostamente para “estimular as economias”. Como se verá adiante, o objetivo nunca é alcançado – inclusive porque os muito ricos entesouram o dinheiro que ganham, ao invés de fazê-lo circular. Mas a minoria beneficiada agradece – e, entre outras “aplicações”, utiliza os recursos recebidos para alimentar a especulação imobiliária global, que torna o custo dos imóveis e aluguéis cada vez mais proibitivo…
Plataformização das economias e do trabalho:
A intermediação do dinheiro, da comunicação, do conhecimento e da informação pessoal transformou-se numa fonte de ganhos bilionários às custas do conjunto das sociedades, prossegue Ladislau. Ele refere-se a plataformas como as que gerenciam motoristas, entregadores e um conjunto cada vez maior de atividades profissionais. Mas também ao oligopólio que controla os pagamentos com cartões de crédito e débito e drena entre 2,5% e 5% de cada operação comercial. E, em especial, a gigantes que passaram a controlar a internet como Alphabet (Google) e Meta (Facebook) – e a mercantilizar via publicidade o conteúdo produzido por bilhões de pessoas.
Em todos estes casos e em muitos outros, o caráter de punção social é evidente e as somas envolvidas, cada vez mais astronômicas. As corporações envolvidas nada produzem. Apenas empregam seu poder econômico gigantesco para criar serviços que se tornam obrigatórios, por constituírem o chamado “monopólio de demanda”: não é possível comunicar-se efetivamente sem recorrer a eles. E só podem fazê-lo porque a própria internet tem sido convertida em território de mercantilização intensa – o oposto exato da rede para livre circulação de conhecimento com que sonharam seus criadores.
Mercantilização da vida e das redes de infraestrutura:
Um dos movimentos cruciais do neoliberalismo foi o desmonte do estado de bem-estar social. Ele abriu espaço, em todo o mundo, para que proliferassem corporações que transformam o que antes foi direito de todos em mercadoria. É a penúria da educação pública que permite a grupos internacionais como Kroton, Laureat e Pearson, ou brasileiros como Eleva (de João Paulo Lemann) e Estácio obter enormes lucros com o ensino-mercadoria que oferecem. É o subfinancimento do SUS que leva dezenas de milhões de pessoas a contratarem planos de saúde de conglomerados como Amil (United Health), Intermédica-Notre Dame (Bain Capital), ou Qualicorp e Prevent Senior. E é a privatização das empresas telefônicas, das distribuidoras de energia elétrica e da Eletrobras, das empresas de gás canalizado; ou a venda planejada dos Correios e das companhias estaduais e municipais de saneamento que cria monopólios privados incontornáveis. Em todos os casos, serviços que deveriam ser oferecidos pelo Estado, sem objetivo de lucro, são convertidos em instrumentos de punção da riqueza social.
Patentes e “Propriedade intelectual”:
Alguns milhões de pessoas morreram de covid-19 desnecessariamente, entre 2020 e 2022, porque as vacinas demoraram a chegar aos que mais necessitavam – e ainda hoje faltam para 40% do população do planeta. Embora mais silenciosa (por se concentrar agora em países pobres), a AIDS continua matando 850 mil ao ano, quando já há medicamentos capazes de impedir os óbitos ou reduzi-los dramaticamente. Tais mortes não são uma fatalidade – mas um evento necessário para que um punhado de empresas farmacêuticas possa lucrar muito com a restrição artificial à circulação do conhecimento científico.
São também o resultado de decisões políticas. Nas décadas posteriores à II Guerra Mundial, as patentes farmacêuticas foram banidas por motivos humanitários evidentes. Sua reintrodução deu-se ao longo da década de 1990, como parte do processo de “liberalização” que culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio. Em Resgatar a função social da economia, Ladislau sustenta que as patentes e a proteção da “propriedade intelectual” tornaram-se – em todos os setores – um entrave, uma forma de gerar feudos tecnológicos e multiplicar lucros para muito poucos, fabricando escassez para as multidões. Ele cita Mariana Mazzucato, que demonstrou, em O Estado Empreendedor, o papel central que a pesquisa pública desempenhou no desenvolvimento de invenções das quais mais tarde as empresas privadas se apropriaram. A lista vai das vacinas contra a covid aos microchips; dos HDs e memórias dos computadores às telas touch hoje presentes em cada celular.
Evasão de impostos e paraísos fiscais:
O sistema tributário brasileiro é tão injusto e comporta absurdos tão flagrantes (como a inexistência de impostos sobre dividendos), que muitas vezes parece ser um “jabuticaba”, presente apenas no país. Ladislau demonstra que não. Uma das características das políticas fiscais adotadas em todo o Ocidente, nas décadas do neoliberalismo, foi a redução generalizada dos impostos pagos pelos mais ricos e pelas corporações, a pretexto de “estimular os investimentos”. Nos EUA, por exemplo, toda a valorização de imóveis e outros ativos é isenta, até o momento em que são vendidos. Esta norma permitiu ao bilionário Warren Buffett – um dos dez homens mais ricos do mundo – aumentar sua riqueza em US$ 24 bilhões, entre 2014 e 2018 e pagar apenas US$ 23,7 milhões em impostos, no mesmo período. “Uma alíquota efetiva de 0,1%…”, destaca o livro.
A redução de impostos é, na prática, a permissão para que os mais ricos apropriem-se de uma vasta parte da riqueza coletiva. E é agravada pela proliferação dos paraísos fiscais, outra marca da globalização comandada pelo capital. Para reduzir a quase nada os tributos que paga em todo o mundo, a Microsoft “transfere” seus lucros, por meio de artifícios contábeis, para a Irlanda, onde uma de suas subsidiárias permaneceu isenta em 2020, mesmo lucrando US$ 314,7 bilhões. E um estudo da revista The Economist avaliou que em torno de 40% dos lucros das multinacionais são “transferidos” para países de impostos baixos.
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Em lugar da mais-valia extraída nas fábricas, uma nova classe dominante – ainda mais minoritária que a velha burguesia industrial – criou mecanismos financeiros para capturar o suor de toda a sociedade. Mas este rentismo contemporâneo, tão capaz de concentrar riquezas, seria ao mesmo tempo estável? No próximo texto, veremos que não – e por quê.
III. A maldição de Marx: quanto mais desigualdade, mais crises
No tempo do capitalismo industrial, um tema que fascinou de modo permanente os estudiosos do sistema foram suas crises. Karl Marx foi pioneiro também em explicá-las, ao apontar que elas originavam-se de uma contradição fundamental. A produção de riquezas era cada vez mais socializada, à medida que a industrialização espraiava-se pelo mundo e incorporava novos contingentes de trabalhadores. Mas a apropriação dos bens produzidos mantinha-se privada e cada vez mais concentrada. Por isso, abria-se aos poucos um fosso entre o imenso volume de mercadorias produzidas e a incapacidade das sociedades para consumi-las. Em certo ponto, eclodia uma crise de superprodução. As fábricas e seu maquinário tornavam-se inúteis. Era preciso destruir o capital existente – ou, fisicamente, por meio de guerras, ou com o advento de novas tecnologias, que exigissem o descarte e renovação das estruturas de produção anteriores.
Em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor mostra que também esta dinâmica mudou, na era do tecno-rentismo contemporâneo. As crises de superprodução persistem – como demonstra a “Grande Recessão” iniciada em 2008. Mas a elas sobrepõe-se um novo fenômeno, que o livro analisa em detalhes: o desperdício das estruturas de produção existentes. É algo que resulta da própria natureza do novo sistema. Agora, como se viu, os lucros derivam em grande parte da criação artificial de escassez. Ou seja: para que uma minoria cada vez mais ínfima continue a concentrar riquezas, é preciso instalar catracas por toda a parte e impedir que a potência produtiva da sociedade se realize. As novas tecnologias permitem que o conhecimento mais avançado esteja disponível para todos. Mas o caso de Aaron Swartz – um gênio precoce da programação e do ativismo digital – é emblemático. Ao programar um computador público do MIT, uma das principais universidades dos EUA, para baixar milhões de artigos científicos mantidos pela empresa JSTOR, que cobra pelo acesso, ele foi preso, implicado num processo que poderia resultar em 35 aos de cárcere e levado ao suicídio, aos 26 anos.
A obsessão do novo sistema em restringir o desenvolvimento do Comum também pode ser observada em outros fenômenos, menos pontuais, mas igualmente grotescos. No Brasil, a Emenda Constitucional 95 proibiu o Estado de ampliar os investimentos sociais por duas décadas – ignorando a premência do combate à pobreza, a relevância dos serviços de saúde e educação e até o crescimento vegetativo da população. Alegou-se “disciplina fiscal”. Mas não há nenhum limite ao desperdício de dinheiro público com o pagamento, pelo Estado, de juros (os mais altos do mundo) à oligarquia financeira.
Porém, também aqui não se trata de uma jabuticaba brasileira. O bloqueio à produção de vacinas contra a covid, em meio a uma pandemia, é ultrajante e exemplar. A partir de 2020, África do Sul, Índia e movimentos ligados à saúde pública em todo o mundo tentaram obter, da Organização Mundial do Comércio (OMC), licença provisória para produzir os imunizantes enquanto durasse a emergência sanitária. Em janeiro de 2022, um estudo demonstrou que havia mais de cem laboratórios na Ásia, América Latina e África preparados para produzir as vacinas – num momento em que, no Sul global, 92% da população estava desprotegida. Mas o que teria sido uma oportunidade, na época do capitalismo industrial, foi visto como ameaça. A OMC mantém até hoje a proibição.
No capítulo III de Resgatar a função social da economia, Dowbor lança um olhar sobre o imenso desaproveitamento de capacidades produtivas que caracteriza o novo modo de captura da riqueza coletiva. O mais dramático é o do trabalho. “Um sistema cuja principal forma de se apropriar do excedente social se dá por meio de rentismo improdutivo precisa cada vez menos de força de trabalho para ter quem explorar”, resume o autor. E aponta como exemplo o Brasil. Das 106 milhões de pessoas que compõem a população em idade de trabalhar, apenas 44 milhões (42%) têm emprego formal na iniciativa privada (33 milhões) ou no setor público (11 milhões). Enquanto isso, há 15 milhões de desempregados e 40 milhões que “se viram” em ocupações informais, na maioria das vezes precárias.
Não se trata apenas de percentuais. A era em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção deveria ser a do trabalho mais qualificado, menos penoso e realizado em jornadas mais leves. Mas a ultraconcentração da riqueza social nas mãos de uma oligarquia mínima produz o efeito oposto. Multiplicam-se os trabalhos exaustivos e degradantes, as jornadas que se prolongam após o expediente, a obrigação de estar permanentemente à disposição da empresa (e do algoritmo), a ausência de direitos e garantias.
Num livro publicado este ano (Automation is a Myth), o sociólogo neozelandês Luke Munn ajuda a desvendar como a plataformização está transformando para muito pior o mundo do trabalho. Por trás dos processos dos “sistemas automatizados”, diz ele, há um contingente cada vez maior de trabalhadores precários. Não são apenas os motoristas ou empregadores de aplicativos – mas também os dezenas milhões que atuam na captura (quase sempre sub-reptícia), de dados pessoais, no tratamento e uniformização destas informações (que em seguida alimentarão máquinas e sistemas), na moderação de conteúdos das redes sociais ou em atividades mais antigas e banais, como os serviços de assistência ao cliente. A automação não remove o trabalho humano, diz Munn, mas elimina “o trabalhador pleno, com pagamento integral, com plenos direitos”. O sistema não almeja o “fim do trabalho”, e sim “submissão total dos assalariados às plataformas e à inteligência artificial”. Por isso, “a precarização não é mero acidente”.
Mas não se desperdiça apenas trabalho. A inibição da capacidade de produzir, por um sistema que ganha instalando catracas e criando escassez, atinge também a terra (urbana e rural), as políticas públicas, o potencial científico e… o próprio capital. Dowbor examina cada um desses processos.
A área agricultável não pode estar disponível para todos, ou os poucos que a controlam perderão seus privilégios, mostra o livro. Por isso, resiste-se tanto à reforma agrária num país como o Brasil, em que há 225 milhões de hectares disponíveis (já excluídas as florestas, os demais biomas protegidos e as áreas onde não há solos adequados ou água suficiente) e apenas 63 milhões (26%) são usados para lavouras. O restante (160 milhões de hectares, ou cinco Itálias) está reservado para especulação ou destinado à pecuária extensiva. Aqui, as lógicas pré-capitalistas (o privilégio de posse da terra, como forma rentista arcaica) entrelaçam-se com o rentismo contemporâneo, uma aliança visível na articulação do agronegócio com o desmatamento, a grilagem de terras pública e os grandes traders internacionais de commodities.
As políticas públicas e o investimento do Estado, que seriam cruciais pra renovar a saúde e a educação públicas, construir cidades humanizadas e para todos ou oferecer infraestrutura moderna, estão constrangidas pela ideologia da disciplina fiscal. Em consequência, impõem-se as lógicas da mercantilização e do privilégio: os serviços de qualidade são oferecidos apenas aos que pagam, precisamente para que gerem lucros. Embora seu alvo principal sejam as maiorias, esta restrição acaba atingindo também as classes médias.
Os serviços públicos e a renovação da infraestrutura poderiam oferecer ocupações dignas e estimulante para gerações de profissionais de formação superior hoje à margem. De engenheiros e economistas a assistentes sociais; de psicóloga a planejadores e ambientalistas; de sociólogos a biólogos e geólogos. Mas o estreitamento destas possibilidades leva ao desperdício do potencial científico e obriga um enorme contingente de pessoas bem formadas a aceitar ocupações muito abaixo das habilidades que poderiam exercer, e quase sempre inseguras e precárias.
O desaproveitamento do capital é a dimensão mais surpreendente reportada por Dowbor. Mesmo nas condições de desigualdade extrema existentes no Brasil, seria possível direcionar a riqueza acumulada pelas elites econômicas para atividades produtivas. Mas as dinâmicas atuais conduzem ao contrário: os “investimentos” mais rentáveis para o dinheiro sobrante são os que o conduzem à especulação rentista. “O grande dinheiro se divorciou em grande parte dos processos produtivos. E o capital vai para onde rende mais”, lembra Dowbor.
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Esta dinâmica de degradação do trabalho e da natureza em favor de uma oligarquia cada vez mais reduzida multiplica fortunas – mas tem meios para se reproduzir? Resgatar a função social da economia sugere que não. As próprias taxas de evolução do PIB, mostra o livro, são agora medíocres. Parece inacreditável, mas o imenso avanço tecnológico das últimas décadas não foi capaz sequer de garantir o crescimento das economias. É como se, um século e meio depois, a maldição de Marx se impusesse: enquanto não resolverem o nó da desigualdade, as sociedades viverão sob o fantasma das crises.
Quando virá o próximo colapso dos mercados financeiros? Esta pergunta perturba todos os dias as novas oligarquias. Beneficiárias de uma transferência maciça de recursos públicos, elas intuem que, em algum momento, não será possível mais sustentar a captura do trabalho social. Nesse ponto, a pirâmide desabará.
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Um de seus flancos frágeis é o da política. O velho centro liberal, que dava estabilidade às instituições e mantinha as sociedades coesas em torno da velha ordem capitalista, está ameaçado. Cresce o descrédito da democracia, vista por muitos, entre as maiorias, como mero teatro para maquiar as desigualdades e ocultar os bastidores do poder, onde as elites fazem seus negócios. Surgem, em especial nas antigas classe médias decaídas, o ressentimento e o desejo de fazer tudo voar pelos ares.
Mas o declínio dos partidos que defendem as velhas lógicas de dominação seria necessariamente má notícia? O último capítulo do livro de Ladislau sugere que não. O autor já não se contenta em afirmar que surgiram bases materiais para sociedades baseadas na colaboração. Ele aponta eixos para as mudanças políticas que poderão abrir a transição para uma nova ordem social. É o que veremos na última parte deste texto.
IV. Alternativas: caminhos para outro pós-capitalismo possível
A ausência, em meio à crise civilizatória, de uma alternativa à crise do capitalismo e à emergência do tecno-rentismo é um dos problemas mais dramáticos de nossa época – e uma das causas centrais do ressurgimento do fascismo. As políticas neoliberais estão produzindo, como se viu, desigualdade obscena, empobrecimento e desesperança. As maiorias não encontram na democracia caminhos para a mudança – e por isso veem, no jogo político, apenas ambição de poder e de aproveitamento. A ultradireita sustenta um discurso anti-establishment. Embora falso, ele tem força para mobilizar ressentimentos.
A esquerda, com raras exceções, não atualizou seus programas. Frequentemente saudosista, continua enxergando o mundo e a luta de classes como eram nos séculos passados. Ao invés de interagir com os dramas concretos que afligem as sociedades, sonha com o retorno triunfal da velha classe trabalhadora. Como esta volta é uma quimera, acaba se limitando, na prática, a defender a ordem liberal contra os assaltos do fascismo. Por isso, é vista por muitos como parte da elite e cúmplice de sua rapina. A incapacidade de compreender a nova realidade e suas brechas – e de agir em consonância – desgasta rapidamente governos como os de Alberto Fernández (Argentina), Gabriel Boric (Chile) ou Pedro Castillo (Peru). Torna extremamente penoso, para Lula, apresentar qualquer perspectiva de futuro. Abre espaço para que a ultradireita avance em toda a Europa – particularmente na Itália, França, Espanha e Alemanha.
O objetivo de Ladislau Dowbor, em seu livro, não é oferecer soluções para os impasses da esquerda. Mas ao desvendar novos mecanismos por meio dos quais o rentismo contemporâneo apropria-se do trabalho coletivo, Resgatar a função social da economia abre horizontes. Não se tratar de requentar debates como Revolução ou Reforma, que dizem respeito a um capitalismo industrial que não existe mais. Retomar os projetos emancipatórios exige encontrar meios políticos de frear a captura; de tornar comum a riqueza produzida na era da economia do conhecimento.
Em seu último capítulo, o livro esboça propostas para isso. Fala em estabelecer a Renda Básica. Reduzir dívidas financeiras. Desprivatizar. Lançar um vastíssimo programa de investimentos públicos, suficiente para desmercantilizar saúde, educação e habitação. Renovar a infraestrutura e iniciar a conversão energética. Assegurar, por meio do Estado, trabalho com direitos aos que desejem engajar-se nestas tarefas. Estabelecer a democracia participativa como base da gestão.
São medidas, como se vê, de forte apelo popular. Algumas delas foram submetidas recentemente – e com sucesso – a testes de realidade. Bernie Sanders, que esteve próximo de bater Joe Biden na disputa para concorrer à Casa Branca pelo Partido Democrata, cresceu ente o eleitorado ao propor a criação de um sistema público de atendimento universal à saúde, a anulação das dívidas estudantis e uma agenda socioambiental muito ambiciosa (o “Green New Deal”). Jean-Luc Mélenchon livrou-se da guinada da Europa à direita, ficou próximo de disputar o segundo turno das eleições presidenciais francesas e liderou uma campanha que obteve 31,6% dos votos legislativos por defender um programa semelhante. Resgatar a função social da economia permite compreender o apelo de tais propostas.
Elas seguem três lógicas, muito articuladas entre si: a) repartir: eliminar catracas, impedindo que uma oligarquia diminuta aproprie-se da riqueza produzida por todos; b) produzir a partir de novas lógicas, rompendo as barreiras que o rentismo impõe para gerar escassez artificial e mercantilizar o que deveria estar universalmente disponível; c) democratizar, estabelecendo mecanismos de controle popular sobre o que precisa – e o que não deve – ser produzido. Juntos, estes eixos podem ser base para definir um novo horizonte pós-capitalista.
Na visão de Ladislau, as três lógicas antissistêmicas parecem sempre se combinar. A renda básica da cidadania, que o livro vê como indispensável, é evidentemente um meio de redistribuir a riqueza, de desfazer parcialmente a captura da riqueza social promovida pelos rentistas. Mas também é uma maneira de destravar a produção, pois permite que, num país como o Brasil, dezenas de milhões de pessoas deixem de passar fome, consumam os alimentos que a agricultura camponesa produz, abram caminho a uma produção rural alternativa à do agronegócio. O mesmo se dá com a redução das dívidas bancárias e outras medidas que bloqueiem a apropriação da renda pelos sistema financeiro. Além de frustrar a captura rentista, elas reintroduzem no consumo dezenas de milhões de pessoas que hoje têm boa parte de sua renda sequestrada pelos juros.
O caráter desmercantilizador das propostas é claro. Dowbor quer investir maciçamente na educação e na saúde públicas, para fazer delas serviços de excelência e inovação. A ideia de pagar ao setor privado para obter atendimento de qualidade deve desaparecer. Além disso, é preciso renovar a infraestrutura, devastada pela segregação colonial das periferias e por décadas de subinvestimento. O Brasil precisa oferecer a todos saneamento básico; despoluição dos rios e córregos urbanos; ruas regulares e arborizadas. Também precisa espalhar metrôs urbanos, reconstruir uma malha ferroviária e iniciar a transição energética para o aproveitamento de seu imenso potencial solar e eólico.
Este imenso leque de tarefas exigirá enfrentar o que é, como vimos, uma das tendências centrais do rentismo: a desmobilização da força de trabalho. Inspirado em exemplos internacionais, Dowbor propõe a garantia, pelo Estado, de ocupações dignas a todos os que desejem trabalhar na obra da reconstrução nacional. É um caminho eficaz para combater o declínio dos direitos laborais: os empregadores privados serão forçados a seguir os padrões públicos, ou perderão seus próprios assalariados.
Aqui se trata de uma pequena revolução. Imagine quantos milhões de brasileiros podem se integrar em missões (para usar um conceito de Mariana Mazzucato) como a garantia de saúde e educação públicas de excelência, a universalização do saneamento, a revolução urbanística das periferias, a construção de sistemas de transporte público ou o aproveitamento da luz solar e dos ventos para a geração de energia. E são ocupações de todos os tipos: peões, mestres de obras, professorxs, médicxs, enfermeirxs, engenheirxs, psicólogxs, sociólogxs, urbanistas, planejadores urbanos e tantas outras.
O papel do Estado nestas transformações é indispensável. Dowbor demonstrou, nos capítulos anteriores que o rentismo caracteriza-se precisamente por tentar apropriar-se da riqueza social sem investir na produção ou na geração de trabalho. Para superar o desperdício de capital, que o livro descreve, é preciso que outro agente econômico dê um passo adiante. Ocorre que as políticas neoliberais bloquearam a ação estatal por meio de amarras tão absurdas como o “teto de gastos” brasileiro.
Será preciso romper estas barreiras – e aqui está algo que nem Boric, nem Alberto Fernández, nem Lula ou Dilma em seu período de governo fizeram. A disciplina fiscal imposta pelos mercados foi seguida à risca. Felizmente, a tranca está cedendo. Como se viu, a ideia de que os Estados só podem gastar aquilo que arrecadam foi desmentida de forma escancarada desde a crise de 2008. Num outro livro – Camisa de força ideológica – que merece leitura muito atenta, o economista André Lara Rezende aponta a morte do mito, e as imensas perspectivas que ela abre. Tanto Lara Rezende quanto os partidários da Teoria Monetária Moderna (TMM) lembram que não há limites “econômicos” para a emissão de moeda pelo Estado. O constrangimento é político. Para quebrar as amarras estabelecidas pela classe dos rentistas, é preciso mobilizar a sociedade. Nada melhor, para isso, que mostrar como é possível realizar direitos e aspirações há tanto negados às maiorias.
Mas o mesmo Dowbor que propõe investimento maciço do Estado reconhece que ele não pode se dar da forma ultracentralizada que marcou o passado em várias parte do mundo. “Na era do conhecimento, e com as tecnologias disponíveis”, diz o livro, “a ideia de uma sociedade descentralizada e participativa se torna realista, como vemos em numerosos países (…) Não estamos mais na pré-história em que uma minoria tinha acesso à educação e aos conhecimentos gerais. Em toda parte há, hoje, gente escolarizada e a conectividade global permite interações colaborativas. É a base de um sistema democrático muito mais participativo que precisamos assegurar, fazendo contrapeso ao sistema centralizado de interesses das grandes corporações e de suas articulações políticas (…) Quando o principal fator de produção é o conhecimento, imaterial e portanto passível de produção infinita sem custos adicionais, abrem-se imensas oportunidades em que a colaboração é mais eficiente que a competição”.
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Dowbor não é um otimista. Seu livro termina com um alerta sobre o poder cada vez mais destrutivo do rentismo. “Os rumos não são promissores. Tenho chamado isso de impotência institucional. Todos sabemos que temos de mudar, mas muito pouco acontece. Os computadores das corporações, que definem onde serão aplicadas imensas massas de recursos financeiros, seguem os algoritmos de maximização de retorno no mais curto prazo, enquanto os departamentos de relações públicas lançam declarações sobre a importância de governança ambiental e social (ESG). É um universo de faz de conta”.
Mas não deixa de haver um esperançar freiriano numa obra que, depois de desvendar o ocaso do capitalismo e o surgimento de um modo de produzir e concentrar riquezas ainda mais devastador, explica seus mecanismos – e propõe caminhos para revertê-los.
Não será fácil, frisa o livro, inclusive porque é preciso rever projetos emancipatórios. “Quando os mecanismos de apropriação do excedente social se deslocam, mudam as frentes de luta para que os recursos voltem a servir à sociedade”, lembra, em certo trecho, Resgatar o função social da economia. Mas termina com uma pergunta e um chamado: “É sonhar demais com uma mudança profunda de valores na própria cultura de competição, de exploração, de guerra de todos contra todos? Na realidade, trata-se de evitar o pesadelo. (…) Frente à força das grandes corporações mundiais, teremos democracia participativa ou não teremos democracia. E em particular, precisamos resgatar mais Paulo Freire, Franz Fanon e tantos indignados do planeta que buscaram uma vida digna para todos. Não hesitaria em dizer que precisamos de um novo humanismo, e das formas correspondentes de organização de como a sociedade decide seus rumos”.
Antonio Martins é editor de Outras Palavras.