Quem se furta a criticar a dinâmica do modo de produção capitalista global e seu caráter autoritário, monopolista e neocolonial deve também se manter em silêncio sobre as medidas de austeridade e a PEC da previdência apresentadas pelo governo Temer.
Gustavo Henrique
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 20/03/2017
Urbi et Orbi, à cidade e ao mundo, é como é chamada a bênção de Natal e Páscoa que o Papa, na varanda central da Basílica de São Pedro, fala ao povo de Roma e a todo o planeta. Ao proferir suas palavras, o Sumo-Pontífice baseia-se na metáfora de que os problemas da urbi são uma reprodução do que acontece na orbi, reflexos locais de questões cuja amplitude possui escala global.
Em tempos de globalização, ganha ainda mais força a metáfora da representação de questões locais como caudatárias de acontecimentos geograficamente mais amplos. A recessão econômica oriunda da crise de 2008 aprofundou uma política econômica que, surgida no final da década de 1970, consolidou-se na década de 1990 e ganhou ainda mais força após o colapso do mercado financeiro.
A financeirização do capital, marca deste período, ampliou a influência de entidades transnacionais como o FMI e a Comissão Europeia na soberania de várias nações das quais se tornaram implacáveis credoras. A incompatibilidade do modus operandi do capital financeiro, alheio a fronteiras geográficas, com a autodeterminação política dos países acabou por criar condições para o desenvolvimento de processos profundamente antidemocráticos nos quais os rumos das decisões políticas deixam de se condicionar aos objetivos constitucionais dos Estados-nação e passam a priorizar os comandos do rentismo e dos credores internacionais.
As famigeradas medidas de austeridade são a mais emblemática expressão dessa priorização. Portugal, Espanha, Chipre e Grécia são exemplos de países cuja soberania foi sangrada por meio do comprometimento de seus recursos com o pagamento dos juros de suas dívidas externa. O corte de recursos em serviços públicos essenciais, o enxugamento do Estado e o ataque a direitos constitucionais fizeram e ainda fazem parte da agenda da austeridade imposta pelo mercado financeiro.
Assim como um simples empréstimo em uma agência bancária é feito para não ser pago, visto que o banco ganha em cima dos juros e põe todas as formas de obstáculos para a quitação da dívida, esta mesma dinâmica, em mais um paradigmático exemplo da relação entre a urbi e a orbi, se repete nas relações entre países e entidades financeiras internacionais. Lembremos, nesse sentido, da franca resistência do mercado financeiro em aceitar que o Equador pagasse sua dívida externa mesmo com o país tendo fundos suficientes para quitá-la.
A aprovação da PEC 55/241, responsável por congelar investimentos sociais conforme o índice da inflação nos próximos vinte anos, e a proposta de reforma da previdência apresentada pelo governo Temer refletem o autoritarismo do mercado financeiro que toma a forma das ditatoriais medidas de austeridade. O “globaritarismo”, termo utilizado por Milton Santos para definir a obscenidade autoritária do mercado global, não é uma peculiaridade do Brasil, que hoje lida com uma reforma da previdência cujo teor inviabiliza uma aposentadoria digna por meio dos fundos públicos, empurrando os cidadãos e cidadãs para os braços dos fundos privados de aposentadoria complementar.
O patrimonialismo corporativista é um elemento que ajuda a explicar a canibalização da previdência pública pelos fundos de pensão privados, visto que o Secretário da Previdência Social responsável pela reforma é conselheiro de um destes fundos ao passo que o relator da proposta é sócio de uma das empresas devedoras do INSS, credor de valores que, ignorados pelos arautos da proposta, correspondem a mais que o triplo do déficit anual calculado pelo próprio governo.
Quando se diminui a esfera pública, aumenta-se a presença da esfera privada e, consequentemente, de todos os interesses empresariais e de acumulação que lhe são característicos. Na queda de braço da política, o lobby predatório dos fundos de pensão, arvorando-se no abuso de poder político e econômico, consegue emplacar o interesse de seus acionistas ao arrepio das legítimas expectativas da sociedade em se aposentar com uma idade e tempo de serviço dentro da sua realidade concreta.
Trata-se, portanto, de uma injeção de capitalismo que vem na esteira da tendência global de supressão e ocupação do espaço do público, espremido por reformas de austeridade, pela racionalidade da exploração da iniciativa privada e por todo o pacote ideológico do neoliberalismo.
Slavoj Zizek reflete que o autoritarismo do capitalismo global na urbe é, tão somente, uma reprodução direta da forma com que atua e se organiza na orbi. Sobre o fascismo e o capitalismo da década de 30, Max Horkheimer, expoente da Escola Crítica, afirmou que os que não querem falar criticamente sobre o capitalismo devem, por coerência, se manter calados sobre o fascismo. Da mesma forma, quem se furta a criticar a dinâmica do modo de produção capitalista global e seu caráter autoritário, monopolista e neocolonial deve também se manter em silêncio sobre as medidas de austeridade e a PEC da previdência apresentadas pelo governo Temer.
Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor.