O mito da remuneração por produtividade no setor público

Abr Casal Jr. Esplanada dos Ministerios Congresso Nacional Brasilia
Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

É preciso ousadia e coragem para barrar processo de captura e privatização do fundo público que vem se difundindo no Brasil.

José Celso Cardoso Jr., Regina Coeli Camargos, Alexandre Gomide e Douglas Andrade da Silva

Fonte: JOTA
Data original da publicação: 04/08/2025

No contexto de discussões recentes sobre reforma administrativa, muito se tem falado da possibilidade de instituição de remuneração variável como incentivo e retribuição ao desempenho individual e à produtividade diferenciada dos servidores públicos na execução e entrega de suas tarefas administrativas.

O pressuposto de tais ideias se assenta na crença de que servidores responderão positivamente a tais estímulos, aumentando de modo crescente o seu engajamento e sua produtividade nos seus afazeres cotidianos. Ocorre que vários estudos têm demonstrado o caráter inócuo de iniciativas que buscam incrementar – e remunerar – o desempenho individual e a capacidade pessoal de entregas no setor público, a partir de estratagemas como remuneração variável, bônus de produtividade, contratos de gestão, acordos de resultados, honorários de sucumbência etc.[1]

Isso porque, no setor público, ao contrário do que talvez aconteça no setor privado, a operação de individualização das entregas (bens e serviços), que estão voltadas direta e indiretamente para a coletividade, é tarefa estatística e metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável. Afinal, a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional.

Por sua vez, no setor privado, a competição, disfarçada de cooperação, é incentivada por meio de penalidades e estímulos individuais pecuniários (mas não só) no ambiente de trabalho, em função da facilidade relativa com a qual se pode personalizar o cálculo privado da produtividade e os custos e ganhos monetários por trabalhador.

Em outras palavras, dadas as imensas diferenças qualitativas que existem entre as funções de natureza pública (cuja razão última é de índole sócio-política) e as de motivação privada (cuja razão última é de índole econômica, e por isso mesmo mais facilmente quantificável e mensurável), e sendo dificílimo identificar e isolar as variáveis relevantes necessárias ao cômputo da produtividade no setor público, conclui-se que propostas desse tipo são incompatíveis com a essência pública do Estado e suas necessidades de planejamento, gestão e administração.

A ineficácia recorrente das políticas de remuneração variável por desempenho no setor público tem sido amplamente documentada, inclusive por meio de estudos longitudinais internacionais em contextos diversos. Williams e Yecalo-Tecle (2022),[2] por exemplo, ao analisarem 12 tentativas de implementação de esquemas de incentivos individuais vinculados a desempenho, concluíram que nenhuma delas resultou em aplicação sustentável e sistemática de recompensas ou sanções.

O estudo evidenciou que a fragilidade desses modelos decorre de suposições irrealistas sobre a capacidade de definição de metas, mensuração de resultados e viabilidade política de aplicação de sanções, além de mostrar que os efeitos esperados se frustram mesmo em contextos tecnicamente preparados.

Os próprios servidores tendem a desengajar-se do processo diante da percepção de que os incentivos não serão implementados de forma justa, equânime ou previsível. Nesse sentido, o fracasso reiterado dessas experiências sugere que a promessa de remuneração por desempenho não apenas carece de base empírica robusta, mas também tende a comprometer práticas organizacionais voltadas à cooperação, ao aprendizado institucional e à construção de compromissos profissionais típicos do serviço público.

Não obstante, a experiência do Poder Executivo federal brasileiro com remunerações variáveis relacionadas a desempenho não é recente. De forma mais estruturada, há quase 20 anos se adotou, para a maior parte das carreiras e planos de cargos, uma estrutura remuneratória composta por vencimento básico acrescido de gratificação de desempenho, aferida por meio da soma de avaliação institucional e avaliação individual.

Para a maioria das carreiras que adotam a Gratificação de Desempenho, constata-se que ela representa um percentual quase sempre elevado e fixo da remuneração mensal dos servidores, demonstrando que este modelo tem se mostrado muito pouco efetivo na prática, seja para mensurar resultados, seja para estimular positivamente os servidores.[3]

Mesmo assim, recentemente, a administração federal brasileira implementou, para algumas poucas carreiras, uma nova forma de remuneração variável por desempenho, denominada bônus de eficiência e produtividade, atrelada à melhoria de indicadores de resultados de políticas públicas de grande relevância para o Estado e a sociedade, tais como a fiscalização e a arrecadação de tributos, bem como a concessão de benefícios previdenciários. Este modelo de Bônus de Eficiência e Produtividade possui disfuncionalidades significativas que precisam ser consideradas. A seguir, serão indicadas e comentadas algumas delas.

Distorção da política de desempenho. Ao se vincular a remuneração ao desempenho, individual ou institucional, estimula-se o esvaziamento da política de gestão de desempenho, que deixa de estar voltada à melhoria e ao desenvolvimento profissional contínuos, das pessoas e das organizações, e passa a se associar apenas à política remuneratória. Desempenho, nesse sentido, fica vinculado à remuneração, não ao aperfeiçoamento e à atuação crítica e reflexiva das pessoas que trabalham no setor público.

Distorção da lógica da remuneração por subsídio. A remuneração baseada em subsídio foi introduzida na Constituição Federal com o objetivo de eliminar a fragmentação de parcelas remuneratórias e conferir transparência e simplicidade à gestão das pessoas que trabalham na administração federal. O exemplo da Receita Federal é elucidativo. Com uma estrutura composta por múltiplas parcelas criadas ao longo do tempo, promoveu-se a transformação da remuneração em subsídio, incorporando todas as parcelas em uma única. No entanto, a partir do momento em que a pressão corporativa para criação do bônus se intensificou, e como o subsídio é incompatível com qualquer outra parcela, optou-se por voltar à estrutura anacrônica de vencimento básico, tão somente para viabilizar a percepção do bônus.

Bônus pago a todos os servidores. Como desde sempre o objetivo dessa construção foi o de promover incrementos remuneratórios aos vencimentos básicos das categorias de servidores da RFB, criou-se uma situação esdrúxula por meio da qual um mecanismo supostamente criado para incrementar o desempenho individual no campo de atuação específico da arrecadação tributária passou a ser pago em valores fixos, de modo permanente e crescente ao longo do tempo, a todos os servidores da organização, em total contrassenso à lógica da melhoria do desempenho individual.

Conflito de interesses. As variáveis da fórmula de cálculo do indicador de produtividade são todas produzidas internamente pelo próprio órgão, suscitando dúvidas acerca da integridade das informações e da conformidade dos procedimentos de cálculo. Suscita-se, assim, risco de captura e apropriação de recursos públicos pela burocracia envolvida, pois a mesma burocracia que produz os resultados é a que organiza os dados e calcula os indicadores que geram o pagamento dos bônus.

Baixa transparência pública e ausência de meios de controle social externo. Embora a regulamentação do bônus de eficiência traga previsões sobre a divulgação pública dos dados, na realidade as informações disponíveis são parcas e obscuras, de difícil acesso e compreensão imediata pela cidadania ativa.

Redundância das atribuições dos cargos. Quando o agente público recebe bônus ou extras pecuniários por atuação que lhe é própria, vale dizer, que já consta do rol de atribuições específicas dos respectivos cargos, estamos diante de outra situação esdrúxula, que poderíamos chamar de dupla remuneração pelo desempenho das mesmas funções que já constam do rol de atribuições do cargo por ocasião do ingresso desses servidores nas respectivas carreiras.

Incoerência técnica, considerando o pagamento para pessoas inativas. O modelo adotado até o momento estende o pagamento de bônus a pessoas inativas e pensionistas, ainda que a partir de percentuais decrescentes. Ora, se o objetivo da remuneração vinculada a desempenho é reconhecer a contribuição das pessoas para a obtenção dos resultados da organização, parece injustificado que pessoas inativas que já contribuíram para os resultados recebam um percentual fixo do mesmo bônus.

Desvirtuamento de receitas públicas arrecadadas por órgãos específicos para custeio de suas próprias despesas de pessoal. Em geral, as propostas de criação de bônus ou parcelas similares partem do pressuposto de que, se um determinado órgão é responsável pela arrecadação de recursos, então, ele deve ter direito a uma parcela dos mesmos para incrementar a remuneração das pessoas que nele trabalham. O problema desse argumento é que esses órgãos não atuam de modo estanque, pois constituem o Estado brasileiro e sua atuação tem como finalidade última o interesse público, não o interesse exclusivo desse ou daquele órgão ou coletivo de servidores. Se a lógica for essa, áreas que atuam essencialmente com políticas públicas de atendimento direto à população ou não arrecadatórias, seriam preteridas, apesar de sua centralidade para o Estado e para o desenvolvimento nacional.

Descontrole da política remuneratória. A multiplicação de modelos similares ao do Bônus de Eficiência tem o condão de promover incertezas quanto à política remuneratória do Poder Executivo federal, já que parcelas variáveis se multiplicariam e tornariam o sistema atual ainda mais desigual e injusto. A política remuneratória do governo federal, que já contém diversas distorções, seria ainda mais distorcida, com enfraquecimento da transparência, do controle e da isonomia. Isso sem falar nos impactos orçamentários e financeiros que a concessão indiscriminada de bônus dessa natureza tende a gerar, especialmente num cenário de restrição fiscal.

Criação de conflitos internos e de “efeito cascata”. É natural – e legítimo – que algumas carreiras utilizem como parâmetro a comparação com outras que possuem melhores remunerações. No entanto, o Estado precisa avaliar não apenas a demanda de uma categoria ou carreira específica, mas do conjunto do sistema de carreiras, evitando, inclusive, que condições implementadas para uma carreira gerem conflitos internos e comprometam ainda mais o já desigual e heterogêneo sistema de carreiras. Criar modelos de bônus para carreiras específicas constitui medida desestabilizadora do sistema de carreiras, com potencial de gerar um “efeito cascata” entre todas as carreiras públicas.

Contrariedade às diretrizes de carreiras adotadas pelo Órgão Central do Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal (Sipec). De modo a aprimorar o sistema de carreiras do Poder Executivo federal, reduzindo assimetrias e fortalecendo a coerência interna do sistema, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos editou a Portaria MGI 5.127/2024. O art. 9º da referida Portaria apresenta como diretriz a “excepcionalidade na criação de bônus ou parcelas similares vinculadas a desempenho da função” e dispõe ainda que “a criação excepcional de bônus ou parcela similar […] deverá: ser restrita aos servidores ativos; e vinculada ao desempenho adicional temporário no exercício da função”. Essa disposição tem por finalidade deixar expresso que parcelas remuneratórias vinculadas a desempenho devem ser excepcionais e, se criadas, destinadas apenas às pessoas ativas e ao desempenho que, de fato, implique esforços adicionais para gerar resultados diferenciados em função de necessidades circunstanciais da administração.

Tudo somado, em síntese, pode-se afirmar que as propostas de remuneração flexível tenderão a fazer aumentar – ao invés de diminuir – a insegurança financeira e a instabilidade emocional dos servidores afetados, deixando-os mais expostos a vivenciarem situações de assédio moral, captura externa, tentativas de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção ativa ou passiva no desempenho de suas funções. Deste modo, ao invés de estimular um maior e melhor desempenho individual, ou incrementar a produtividade própria ou organizacional, medidas dessa natureza tenderão, na verdade, a acirrar a competição interna e a deteriorar as condições pessoais e coletivas de sanidade e salubridade no ambiente de trabalho.

Desta maneira, uma das formas de se mitigar ou combater o corporativismo predatório no seio do setor público consiste em relembrar e reforçar o caráter público tanto da configuração burocrática como da atuação estatal. Isso porque há diferenças importantes entre os setores público (Estado) e privado (mercado) no que diz respeito à essência, objetivos gerais e formas de atuação de cada uma dessas esferas da vida contemporânea.

Neste sentido, é preciso ousadia e coragem para barrar o processo de captura e privatização do fundo público que vem se difundindo pela administração pública brasileira, seja sob a forma dos tais bônus de produtividade, seja por meio de inúmeros projetos de lei e propostas de emenda constitucional que advogam por autonomia financeira de determinadas organizações. Se levadas a termo, essas tendências reduzirão o que resta de capacidade e autonomia relativa do Estado para agir em prol da democracia, da república e do desenvolvimento nacional. Será o fim da própria ideia de Estado como esfera pública e agente da transformação positiva de que tanto necessita o Brasil.


[1] Os resultados, problemas e as premissas de programas de remuneração variável por desempenho no setor público fazem parte de uma agenda internacional de estudos e pesquisas, no contexto das reformas administrativas ocorridas a partir do fim dos anos 1980, inspiradas, em maior ou menor grau, em teorias gerencialistas sobre gestão pública. Alguns exemplos podem ser vistos em: a) CAMARGOS, R. (2021). Reformas Administrativas no Brasil e no Mundo: revisão bibliográfica sugere cautela extrema com a importação de ideias e modelos estrangeirosIn: Cadernos da Reforma Administrativa n° 18. Brasília: FONACATE. b) CAMARGOS, R.; CARDOSO Jr., J.C. (2021). Reforma Administrativa na Europa: retração do Estado impacta negativamente capacidades e funções públicas, crescimento econômico e proteção social e laboralIn: Cadernos da Reforma Administrativa n° 22. Brasília: FONACATE. c) CARDOSO JR., J.C; PIRES, R.R. (2020). Gestão de Pessoas e Avaliação de Desempenho no Setor Público Brasileiro: crítica à proposta fiscal-gerencialista da reforma administrativa e diretrizes para um modelo de Estado orientado à reflexividade, inovação e efetividade. In: Cadernos da Reforma Administrativa n° 7. Brasília: FONACATE. d) CARAZZA. B. (2024). O país dos privilégios: os novos e velhos donos do poder. Volume 1. São Paulo: Ed. Cia das Letras. e) CORREA, I.; CAMÕES, M.; MEYER-SAHLING, J.; MIKKELSEN, K.; SCHUSTER, C. (2020). Distorções de incentivo ao desempenho e redução da motivação no serviço público federal no BrasilIn: Revista do Serviço Público. Brasília, jul/set 2020, p. 476-503. f) RAY, K.; FOLEY, B.; TSANG, T.; WALNE, D. e BAJOREK, Z. (2014). A review of the evidence on the impact, effectiveness, and value for money of performance-related pay in the public sector. London: Lancaster University’s Work Foundation. December.

[2] Williams, M. J., & Yecalo-Tecle, L. (2022). The (non-)implementation of performance management policies: Insights from longitudinal reform mapping in Ghana and Zambia. Blavatnik School of Government, University of Oxford. https://martinjwilliams.com/research/

[3] A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, realizou, em duas oportunidades, em 2010 e em 2022, análise sobre a gestão de pessoas do Governo Federal Brasileiro. Em ambas as ocasiões, foi destacada a deficiência do modelo de remuneração variável baseada em desempenho. De acordo com o documento de 2010, “Finalmente, o mau funcionamento do sistema de bônus por desempenho e as limitações do sistema de gestão do desempenho do pessoal indicam que provavelmente é contraproducente fazer o esforço necessário para implantar a remuneração por desempenho em todas as organizações do governo no nível atual, especialmente considerando a grande parte da remuneração supostamente ligada ao desempenho”. (https://www.oecd.org/pt/publications/2010/05/oecd-reviews-of-human-resource-management-in-government-brazil-2010_g1ghc56d.html). Por sua vez, o documento de 2022 afirma que: “In Brazil, good performance amounts almost exclusively to performance bonuses, with performance-related pay representing a variable share of total compensation in each career. Performance-related pay can represent in some cases between 50% and 70% of total pay. This high percentage, instead of creating a positive incentive, creates a system in which public servants expect to receive the full variable amount of the salary as standard unrelated to their performance”. (https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/7593/4/3.%20REVIEW%20OCDE%202022%20-%20ACHADOS%20E%20RECOMENDA%c3%87%c3%95ES%20-%20eng.pdf)

 

José Celso Cardoso Jr. é secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Técnico em Pesquisa e Planejamento do IPEA e doutor em Economia pelo IE/Unicamp

Regina Coeli Camargos é secretária-adjunta de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, foi técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Doutora em Ciência Política pela UFMG

Alexandre Gomide é diretor de Altos Estudos da Escola Nacional de Administração Pública. Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e doutor em Economia pela UFGRS

Douglas Andrade da Silva foi diretor de Carreiras e Desenvolvimento de Pessoas da Secretaria de Gestão de Pessoas do MGI. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental em formação pela Enap



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