O mal-estar está fermentando: “As pessoas estão enraivecidas e a crise aguça todos os sentimentos”. Entrevista com Waldir Quadros

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 2020 “revelam aquilo que já percebíamos e observávamos: uma grande mobilidade descendente, ou seja, uma piora significativa na estrutura social”, destaca Waldir Quadros, que anualmente analisa os indicadores sobre a renda e a estrutura ocupacional das famílias brasileiras.

Segundo ele, apesar de a massa trabalhadora e os miseráveis serem os estratos sociais que mais sofrem em qualquer tipo de crise, a novidade da crise pandêmica é que a alta classe média e a média classe média foram, diferentemente de outros momentos, diretamente afetadas. “A alta classe média que, até então, estava sendo preservada, caiu significativamente. Isso significa que desceu para uma classe inferior. Na média classe média aconteceu a mesma coisa: houve um grande rebaixamento social. De outro lado, a baixa classe média cresce, porque quem caiu da média foi para a baixa. Da mesma forma ocorre com a massa trabalhadora, que são os pobres”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o economista apresenta alguns dados que indicam a queda na renda desses estratos sociais. “Quem estava na alta classe média em 2019, tinha uma renda média de 17,7 mil reais por família”, exemplifica. Quem caiu “em 2020 para a média classe média passou a ter uma renda familiar de 6,2 mil reais”. Aqueles que eram da média classe média tinham uma renda familiar média de 6,2 mil reais em 2019. Os que foram para a baixa classe média passaram a ter uma renda média de 3,1 mil reais. Em contrapartida, “a renda média familiar dos miseráveis em 2019 era 360 reais e passou para 400 reais em 2020”.

Em termos políticos, pontua, o desafio consiste em saber quais serão as consequências dos dados. “Vemos um tremendo mal-estar na sociedade, gerado pela crise e pelas questões sanitárias. Agora, o sentido, qual será o resultado disso, não é possível observar a partir dos dados. Por exemplo, a alta classe média é conservadora e uma grande parcela é de direita. Portanto, é difícil dizer qual será o impacto da crise nesse segmento: ele vai mudar de posição ou a crise vai reforçar suas opiniões? Não sai do dado a visão política, mas o fato é que há um mal-estar muito grande que será canalizado nas eleições”.

Quadros também comenta rapidamente os efeitos da guerra entre a Ucrânia e a Rússia na vida política e social brasileira. “A guerra vai impactar agravando a nossa crise: o custo de vida, o preço dos combustíveis, da energia, a dificuldade de importação. A crise revela tudo que nós não fizemos. Por exemplo, a crise em torno dos fertilizantes: o Brasil teria condições de produzir fertilizantes, mas abandonou isso”, assegura.

Waldir Quadros. Fotografia: Arquivo Pessoal

Waldir Quadros é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.

O que os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 2020 indicam sobre a situação social do Brasil durante o primeiro ano da pandemia?

Os dados revelam aquilo que já percebíamos e observávamos: uma grande mobilidade descendente, ou seja, uma piora significativa na estrutura social. A alta classe média que, até então, estava sendo preservada, caiu significativamente. Isso significa que desceu para uma classe inferior. Na média classe média aconteceu a mesma coisa: houve um grande rebaixamento social. De outro lado, a baixa classe média cresce, porque quem caiu da média foi para a baixa. Da mesma forma ocorre com a massa trabalhadora, que são os pobres. Uma visão panorâmica nos mostra que 2020 teve um grande impacto na estrutura social. A situação social já não estava boa, a economia estava em crise desde 2015, mas estava se recuperando lentamente em 2018 e 2019.

Nas tabelas de exposição dos dados, o senhor compara o atual quadro aos anos anteriores até 2012. A partir dessas comparações anuais, diria que a regressão social é equivalente a qual período da história do país?

As tabelas se iniciam com a data de 2012 porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE mudou a metodologia de análise. Então, a nova série é de 2012 para frente. Mas 2014, por exemplo, foi o auge daquele período de expansão que iniciou em 2004. A crise de 2020 certamente nos jogou para um patamar social abaixo do que já tínhamos atingido até então, abaixo, inclusive, de períodos como 2012 e 2013. Houve uma regressão significativa, que ainda não tínhamos visto nesta década.

Quais foram as principais mudanças ocorridas entre 2019 e 2020 em relação à renda e à perda da renda entre os brasileiros, nas categorias que o senhor analisa, a alta classe média, a média classe média, a massa trabalhadora e os miseráveis?

Uma forma boa para analisarmos essa perda é comparar (ver a tabela 4) quem estava na alta classe média em 2019 e tinha uma renda média de 17,7 mil reais por família. Em 2020, quem caiu da alta para a média classe média passou a ter uma renda familiar de 6,2 mil reais. Veja a queda na renda. Então, a melhor forma de analisar é verificar qual era a renda em 2019 e como estava a renda em 2020. Quem estava na média classe média em 2019 tinha uma renda média familiar de 6,2 mil reais, e em 2020 esta renda caiu para 3,1 mil reais. Para quem cai, a perda é muito significativa. Para aqueles que continuaram na mesma classe, a perda foi suportável. Em 2019, quem estava na alta classe média tinha uma renda de 17, 7 mil reais, e quem continuou na alta classe média, em 2020, manteve uma renda de 17,4 mil reais. Não foi uma perda desastrosa nesse sentido.

A renda média geral das famílias era 4,6 mil reais em 2019, e caiu para 4,2 mil reais. É uma perda? É. Mas vemos o verdadeiro impacto entre aqueles que mudaram de patamar, porque sofreram uma queda muito maior.

Os miseráveis, por outro lado, tiveram um aumento de renda, mas isso não significa muita coisa porque a renda deles aumentou de 360 para 400 reais. Além disso, o crescimento dos miseráveis também ocorreu por causa da queda dos demais estratos sociais, que descenderam.

A condição de vida deles continua incomparavelmente pior do que a dos demais.

Muito pior, e a situação deles ainda piorou porque, além da questão da renda familiar, também é preciso considerar os efeitos da inflação e do custo de vida. Esses efeitos, seja na vida dos miseráveis ou das classes trabalhadoras, são uma catástrofe. O custo de vida e o desemprego aumentaram significativamente, sem falar nas dificuldades em relação às condições sanitárias. Então, as camadas populares sofreram e sofrem mais do que as demais classes porque todos os impactos sociais são piores entre os mais pobres.

O aumento da renda dos miseráveis neste período considera o recebimento do Auxílio Emergencial que receberam naquele período?

Sim. E veja que a renda média familiar deles em 2019 era 360 reais e passou para 400 reais em 2020. O que aliviou um pouco a situação deles foi justamente o recebimento do Auxílio Emergencial, que serviu como uma grande tábua de salvação. Pena que o valor inicial de 600 reais foi rebaixado e hoje já não existe uma situação de proteção social.

A perda de renda nos diferentes estratos sociais pode ter implicações políticas e sociais no sentido de reforçar os conflitos e as disputadas já existentes no país?

Excelente pergunta, porque o impacto que temos que analisar vai além do número, do dado expresso na pesquisa. Em termos políticos, vemos um tremendo mal-estar na sociedade, gerado pela crise e pelas questões sanitárias. Agora, o sentido, qual será o resultado disso, não é possível observar a partir dos dados. Por exemplo, a alta classe média é conservadora e uma grande parcela é de direita. Portanto, é difícil dizer qual será o impacto da crise nesse segmento: ele vai mudar de posição ou a crise vai reforçar suas opiniões? Não sai do dado a visão política, mas o fato é que há um mal-estar muito grande que será canalizado nas eleições.

Os candidatos à presidência deveriam se debruçar em cima dessa questão para tentar encontrar caminhos e captar esse descontentamento, esse mal-estar e até mesmo a raiva, porque as pessoas estão muito enraivecidas. A crise aguça todos esses sentimentos. Além disso, as pessoas estão se sentindo desamparadas, porque quem não tem uma posição muito boa está totalmente desamparado. Quantos pequenos negócios fecharam e não receberam apoio? Não houve apoio para evitar o fechamento de pequenos negócios, para aliviar o preço dos aluguéis, dos impostos, dos juros, para garantir mais acesso a crédito. Outros países fizeram isto: os EUA deram um apoio significativo aos pequenos negócios para evitar que fechassem. Setores de serviços, como lojas e restaurantes, quando fecham, demitem os trabalhadores. Os donos desses comércios, como são pequenos, muitas vezes não têm alternativa. Além disso, ao fechar esse tipo de negócio, boa parte dos aluguéis deixa de ser pago. As pessoas deixam de pagar porque não conseguem manter o pagamento. Quem vive de aluguel também sofre. Ou seja, há um encadeamento que deveria ser evitado ou minimizado com o apoio do governo; não tem outro jeito.

De outro lado, não se vê manifestação social como reação desse mal-estar, como também ocorreu no governo Dilma, quando havia um mal-estar que foi manifesto posteriormente em junho de 2013. O senhor aposta que o mal-estar possa eclodir de fato nas eleições?

Hoje, o mal-estar também está fermentando, mas, ao mesmo tempo, não há nenhum indício de explosão social. As manifestações foram devagar porque não há quem as puxe. Até agora tivemos a questão da pandemia e uma parte das pessoas não queria se expor ao risco da Covid-19, com exceção dos militantes e dirigentes. Tenho a impressão de que, nesta altura do campeonato, o mal-estar será canalizado para as eleições. Não vejo nenhum cenário de revolta social. Mas tudo é imprevisível.

O que os dados indicam sobre a estrutura ocupacional das famílias? O que mudou em 2020 em relação ao ano anterior?

Essa questão é interessante porque na tabela 3 as famílias são classificadas a partir do membro mais bem remunerado, e a modificação na estrutura ocupacional das famílias se refere ao membro mais bem remunerado.

A primeira categoria analisada são aqueles “sem ocupação, mas com renda”. Esse dado me surpreendeu porque diz respeito justamente àqueles que não têm ocupação, mas têm renda, como, por exemplo, quem recebe renda ou de aluguel ou de participação em lucros e dividendos. Nesses casos, que dizem respeito à alta classe média, as pessoas foram atingidas pelo fechamento dos pequenos negócios e das empresas. Aqui houve um impacto muito grande: de mais de 3 milhões destas, 1 milhão caiu de posição social, ou seja, mais de 1/3; 34% de pessoas que tinham renda de aluguéis ou de dividendos perderam renda. Esse é um impacto direto da recessão e da pandemia e do fechamento dos negócios.

Outro grupo que perdeu bastante foi o chamado “colarinho branco” porque muitas empresas fecharam e esses empregados, seja no comércio, no serviço ou na indústria, perderam renda e emprego e houve uma queda de aproximadamente 10% entre eles.

No grupo dos trabalhadores autônomos, os trabalhadores mais importantes são os caminhoneiros. Eles são enquadrados na alta classe média porque boa parte deles é dono do caminhão, portanto, não são empregados. Mas há uma queda significativa entre eles. Depois, há uma queda entre os pequenos e médios empresários, o pequeno negócio, o comércio, principalmente a área de serviços, como bares e restaurantes. Mais de 10% deles perderam posição social.

Os colarinhos brancos autônomos fazem parte de uma categoria similar a dos outros, com a diferença que eles não são assalariados. São executivos e técnicos especializados. Eles são os principais grupos que perderam espaço na alta classe média. Analiso a alta classe média porque isso reflete em toda a estrutura social e também porque ela, até 2020, tinha conseguido se preservar. A grande novidade é que em 2020 a alta classe média sofreu um impacto violento, o que não tinha acontecido em outras crises.

Como superar esses efeitos e retornar aos patamares sociais anteriores?

No momento, diria que as medidas dependem do governo federal e não há muito o que fazer porque o governo não quer e está impedido de agir por causa do teto de gastos. O que melhoraria a situação é o investimento em desenvolvimento econômico, mas o governo não tem recursos para investir em novas obras, que garantiriam empregos e ativariam a economia. Não vejo muita possibilidade de resolução enquanto não mudarmos o rumo.

Para mudar de rumo, é preciso de eleição. Minha única esperança são as eleições no final deste ano. Isso não significa que a situação será transformada e tudo ficará uma maravilha, mas há a possibilidade de ter um governo que possa se livrar dessa camisa de força imposta pelo setor financeiro e os rentistas, que é o teto de gastos. Hoje, não se pode gastar com questões urgentes; somente para poder pagar os juros. O pagamento dos juros está sendo feito com a desculpa de combater a inflação, mas isso não combate a inflação. Havendo a inflação, aumenta-se o juro para manter a remuneração real, ou seja, aquilo que os investidores ganham, descontando a inflação. O juro serve para preservar o ganho dos rentistas. Se a economia já está mal e ainda aumentam o juro desse jeito, não tem saída, a não ser que mude o rumo, o que não é algo simples.

Do que o senhor tem visto em preparação para a eleição deste ano, apostaria em alguma via que poderia mudar o rumo?

Entre os que se destacam nas pesquisas hoje, estão Lula e Bolsonaro. Bolsonaro não vai querer e não vai poder mudar nada disso. Lula está falando “coisa com coisa” e é uma boa perspectiva para alterar o rumo. As declarações dele estão sendo no sentido de acabar com o teto de gastos, investir nos pobres, cobrar impostos dos ricos. Esse é o caminho. Não significa que será fácil.

Já não ouvimos esse discurso no passado?

Sim. Porque a situação regrediu, voltamos para aquele cenário anterior. É preciso fazer aquelas coisas que foram feitas e, mais ainda, aquelas que não foram feitas. Se Lula ganhar, terá que fazer um governo mais avançado do que fez no passado. Ele fez um governo confortável porque tinha crescimento econômico, a China comprava nossas commodities. Agora, com a nova crise internacional, a situação ficou ainda mais difícil.

A guerra entre Rússia e Ucrânia pode gerar quais efeitos para o Brasil e de que modo pode influenciar na política interna, favorecendo ou não determinado espectro político nas próximas eleições?

A guerra vai impactar agravando a nossa crise: o custo de vida, o preço dos combustíveis, da energia, a dificuldade de importação. A crise revela tudo que nós não fizemos. Por exemplo, a crise em torno dos fertilizantes: o Brasil teria condições de produzir fertilizantes, mas abandonou isso. A Vale abandonou, a Petrobras abandonou; fecharam as plantas. É um absurdo depender da importação de fertilizantes, assim como dependemos da importação de medicamentos.

Desindustrialização

Este é o grande prejuízo da desindustrialização: é uma coisa concreta e não ideológica. O Brasil tinha destaque na indústria de medicamentos. Sempre tivemos uma indústria poderosa nesse sentido, com autossuficiência em muitas linhas. Hoje, temos que importar tudo e comprar remédios da China porque paramos de produzir. Essa bandeira da reindustrialização é central. Desejo que, se Lula vencer a eleição, cuide disso.

Reindustrializar o país é a nossa única possibilidade de ter uma economia de uma sociedade civilizada. Claro que tem o impacto da crise e todas as emergências e auxílios são necessários neste momento para que o povo não morra de fome. Mas para termos um cenário mais promissor, uma das medidas inadiáveis é a reindustrialização nas condições atuais do mundo, verificando quais são os setores importantes, retomando a parceria com o Brics. Veja o quanto a Índia avançou. Tudo que regredimos na indústria, a Índia avançou.

Além da reindustrialização, quais as questões urgentes de serem debatidas na eleição deste ano, a partir desta realidade que o senhor apresenta analisando os dados da PNAD?

Uma delas é a retomada das políticas sociais: retomar o investimento do Sistema Único de Saúde – SUS e da educação, que tem resultado imediato. Quando observamos os ganhos dos enfermeiros, que estão na linha de frente na área de saúde, vemos que a situação é catastrófica. Veja o que eles estão enfrentando e ganhando salários baixos. É preciso financiar o SUS, a educação e a segurança pública. Esses são os três setores que mais empregam nos estados. Tem que investir e gastar. Por isso não pode ter teto de gastos, porque ele impede o gasto social. Para ter dinheiro, é preciso recuperar as finanças públicas, cobrar impostos, fazer os ricos pagarem impostos e taxar dividendos e lucros. É uma vergonha eles não pagarem impostos. Os acionistas da Petrobras, com a crise do custo da energia, estão ganhando fortunas com dividendos e não pagam impostos. Isso é um crime. E aí não tem dinheiro para fazer política social.

Quais os desafios políticos na elaboração de programas para a esquerda, a direita e o centro, diante do mal-estar social que está fermentando?

Este é o grande desafio para os candidatos: quem vai conseguir se aproximar e cativar o eleitorado que vive uma situação social real. Quem vai conseguir ter propostas e programas que convençam, com pontos de programa que toquem na situação gravíssima que as pessoas estão vivendo? Esta é a grande preocupação: quem vai conseguir cativar e transmitir a confiança que vai tratar das questões mais urgentes.

Fonte: IHU
Texto: Patricia Fachin
Data original da publicação: 20/03/2022

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