Decisões recentes da Justiça do Trabalho, no Brasil, reforçam os seus vínculos com o mercado e mascaram o modo como o Estado-Juiz privilegia a barbárie à civilização
Zéu Palmeira Sobrinho
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 10/12/2020
Decisões recentes da Justiça do Trabalho, no Brasil, reforçam os seus vínculos com o mercado e mascaram o modo como o Estado-Juiz privilegia a barbárie à civilização. Dentre os elos recentes entre o Judiciário e o mercado, duas decisões podem ser destacadas: a primeira foi o julgamento do dissídio coletivo dos trabalhadores dos Correios; a segunda foi a referente ao caso de um empregado que, embora sendo beneficiário da justiça gratuita, foi condenado a pagar honorários e por fim teve a sua pena convertida em prestação de serviços à comunidade.
Ambas as decisões chocaram aqueles que romantizam a defesa dos direitos sociais sob o capitalismo. No caso dos Correios, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) chancelou o entendimento de que, ao término de um acordo ou convenção coletiva, se o empregador não negociar com a entidade sindical representativa dos trabalhadores, todos os direitos históricos de uma categoria podem ser jogados na lata do lixo. Essa postura fez o TST implodir a progressividade dos direitos sociais, ideia-força decantada em vários diplomas jurídicos, a exemplo do PIDESC – Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais.
Essa dificuldade de compreensão, em relação ao retrocesso interpretativo em matéria de diretos sociais, tem levado os estudiosos a buscar entender, para além da razão do Estado, qual é o perfil desse velho julgador que torna permeável a possibilidade concreta de sacrificar o projeto civilizatório. Será que é o retorno da práxis do julgador fascista?
Segundo Pachukanis[1], o Estado fascista não queria sindicatos e juízes como oponentes, mas como sua extensão, ou seja, como uma longa manus da vontade do poder de plantão. Para isso, o método mais prático de assimilação ideológica, para tornar os juízes e sindicatos em fascistas, consistia em obrigá-los a cumprir as leis fascistas e encorajá-los a se enxergarem, enquanto guardiães das leis, como cumpridores dos seus deveres patrióticos.
Nessa tarefa de interpretação do processo de assimilação ideológica, merece destaque o esforço do jurista belga François Ost em mapear os diversos tipos de magistrado: o juiz Hércules, o juiz Júpiter e o juiz Hermes.[2]
Para Ost, o juiz Hércules seria o juiz legislador, que criaria uma regra para solucionar o caso concreto, não se baseando na lei, mas na relação histórica dos litigantes. O juiz Júpiter seria aquele que não sai do esquadro, atua rigidamente para dar uma interpretação da norma e para evitar substituir ou derrogar a vontade do legislador. O juiz Hermes seria o juiz pós-moderno, que faz do direito uma bricolagem para que cada fragmento jurídico tenha validade, de modo que o peso do julgamento não esteja no fragmento invocado, mas na autoridade de quem o invoca, pois, a exemplo do Deus grego Hermes, o julgador seria o intérprete por excelência, isto é, o transmissor privilegiado da vontade dos deuses para os mortais.
Muito embora qualquer classificação sobre os tipos de julgador, a partir da conduta mais recorrente deste, seja uma caricatura ou um reducionismo do poder explicativo da atividade judicante, observa-se que a metáfora empregada por Ost é uma tentativa de se traçar uma crítica e de se compreender o perfil médio da magistratura. No Brasil, segundo Machado, a formação do magistrado é marcada pelo praxismo, ou seja, pela abstinência crônica de “uma cultura jurídica, crítica e politizada capaz de transcender os limites paradigmáticos do normativismo-positivista e do liberalismo individualista.”[3]
Sem negar os problemas advindos de tal caracterização, mas tentando compreender o momento presente da magistratura brasileira, urge acrescentar mais um modelo aos já apresentados por Ost. Trata-se do “juiz Eichmann” que relembra a figura do nazista Adolf Eichmann.
O juiz Eichmann é um velho modelo que reaparece com a roupagem de novidade apenas na aparência. É um “novo” modelo de juiz que tem se tornado tão presente no Brasil, no atual contexto de desconstrução da cidadania e de necropolítica, a despeito das exceções de magistrados que servem de referência à luta pela humanização do direito e contra a barbárie.
Eichmann, conforme descrição feita pela escritora judia Hannah Arendt[4], é o burocrata sem remorso, é alguém que somente pode ser reconhecido pelas pessoas capazes de compreender as entranhas dos crimes praticados pela mediação da burocracia.
Com base no exemplo de Eichmann, um burocrata na esfera judicial não existe para avaliar o conteúdo ou as repercussões de seus atos, mas para cumprir ou executar o que lhe foi atribuído pelo sistema legal. Ele é o protótipo da autoridade que respalda o poder de plantão e valoriza a hiperdisciplina judiciária, tornando a “lei ordinária” um fetiche a ser servilmente louvado e observado.
Eichmann achava-se um homem cumpridor dos seus deveres e, até a sua morte, nunca entendeu porque foi levado a um tribunal para julgamento por ter cumprido a lei. Em sua autoconcepção, Eichmann se via como o homem virtuoso e honrado, pois sequer se recusara a obedecer a razão do Estado cristalizada na legislação vigente. Em sua razão arrogante, Eichmann deixou explícito que se há ou não a justiça no texto legal, isso não era problema seu, mas do legislador que a fez.
Era assim que ele lavava as suas mãos ante o compromisso de ser indiferente ao mal ou ao bem, ante o dever que assimilou de não se achar no direito de fazer qualquer julgamento moral.
Um dos grandes desafios de Hannah Arendt foi mostrar Eichmann como julgador, e não meramente como o réu que um dia foi julgado em Jerusalém. Para além do nazismo, Eichmann sempre foi um julgador modelo inspirador para a burocracia. Ele julgava reiterando, e não julgava decidindo, quem iria ou não para os campos de concentração ou para as câmeras de gás. Nesse contexto, surge o desafio de se especular como Eichmann seria se retornasse aos tempos atuais.
Se Eichmann fosse o juiz de nossos tempos ele teria uma associação de juízes para esbravejar: “desculpe-me, eu cumpri a lei…” Ele chamaria a sua fidelidade de disciplina judiciária e a invocaria como escudo sempre que alguém lhe fizesse um apelo de misericórdia;
Se Eichmann fosse o juiz ele diria, da sua cabine ou gaiola de vidro, que era um homem incorruptível e que a história não deveria julgar os julgadores porque eles eram apenas os operadores do direito, eram os engenheiros ou as parteiras que davam vida aos efeitos decorrentes da aplicação dos textos legais.
Se Eichmann fosse o juiz dos tempos neoliberais, ele se autoqualificaria como um “homem de bem” e diria que suas decisões observam estritamente o aspecto jurídico, sem qualquer valoração moral.
Os “homens de bem” vestidos de toga, segundo a lógica do juiz Eichmann, podem ser identificados pela personalidade obtusa aos sentidos e letárgica em relação ao senso histórico.
Muitos juízes, a exemplo do Eichmann, continuam a ser selecionados para assumir a função de julgar segundo uma racionalidade que desconsidera os afetos, as condicionalidades históricas e as fraquezas humanas. Hannah Arendt diria que eles não são pervertidos, nem sádicos, mas são terrível e assustadoramente normais.
Do ponto de vista das instituições e dos atuais padrões morais de julgamento, essa normalidade continua a ser a mais apavorante de todas as atrocidades juntas, pois implica no dizer de Hannah Arendt “(…) um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir quem está agindo de modo errado“.[5]
Para Hannah Arendt conhecer a personalidade normal desafia conhecer a regra, isto é, o normativo. O apavorante, segundo a citada escritora judia, não é conhecer o anormal, mas a normalidade do perfil do burocrata que o Estado consegue construir a partir da superficialidade. O mal de Eichmann, segundo Arendt, não advém necessariamente da ideologia, dos instintos e sequer tem relação com a essência ou com alguma crença sobrenatural; para ela, o mal é algo banal e sem precedentes.
Hannah Arendt ao reduzir a sua explicação à banalidade do mal, recusou-se a enxergar a relação de causa e efeito na formação da naturalização da perversão. Ela achou que a banalidade do mal era algo que surgia sem inspiração e sem historicidade, no acaso da perversão humana. Arendt não percebeu que o nazismo, sob a influência da luta colonialista entre os países centrais, era uma disfuncionalidade da incontrolabilidade capitalista. Ela se negou a perceber, por exemplo, que o nazismo, Eichmann e o conflito de classe consubstanciavam a competição pela relação da exploração do trabalho.
Para que o equívoco de Arendt não se repita, a interpretação sobre o Juiz Eichmann nos dias atuais imprescinde da consideração sobre o modo como o Estado-Juiz e a forma jurídica atuam na processualidade histórica que existe para mascarar a relação de exploração capitalista.
Enfim, a cegueira produzida pela práxis conservadora e anti-histórica de parte da magistratura mantém os “juízes Eichmann” como armadilhas de classe, sujeitos da burocracia que naturalizam a perversão da exploração e da desigualdade social, partejadas pelo modo de produção vigente, e que abdicam de refletir sobre a relação sociohistórica entre as suas práticas e a reprodução da barbárie.
Notas
[1] PACHUKANIS, Evguiéni B. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020.
[2] OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: os tres modelos de juez. Academia: revista sobre enseñanza del derecho de Buenos Aires, ISSN 1667-4154, Año 4, Número 8, 2006, págs. 101-130.
[3] MACHADO, Antonio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 226.
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
[5] Op. Cit., p. 299.
Zéu Palmeira Sobrinho é Juiz do Trabalho e Professor da UFRN.